Marcelo CoelhoMarcelo Coelho – Marcelo Coelho http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br Cultura e crítica Tue, 18 Aug 2015 12:23:18 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Jorge Furtado comenta http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/08/26/jorge-furtado-comenta/ http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/08/26/jorge-furtado-comenta/#respond Wed, 27 Aug 2014 02:13:06 +0000 http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/?p=1298 Continue lendo →]]> Recebo de Jorge Furtado, diretor de “O Mercado de Notícias”, um email discutindo o que escrevi no post anterior. Transcrevo-o.

Agradeço as boas referências ao “Mercado de Notícias”, que segue em cartaz em São Paulo. Ao contrário do que você afirma, considero você inteiramente insuspeito para falar do filme. Há, de fato, muitos outros deslizes jornalísticos e talvez fosse mesmo divertido um filme só sobre eles, mas o meu objetivo era também despertar algumas dúvidas, propor um debate sobre um assunto que me parece importante e é quase interditado na mídia. (A coluna do Ombudsman da Folha e o site/programa Observatório da Imprensa são louváveis exceções) .

O tema é vasto e o tempo do filme (84 minutos) é curto. Por isso o projeto inclui, desde sempre, um site, com a peça e as entrevistas na íntegra e muitos outros assuntos, até do mensalão se fala. Toda a pesquisa e fontes estão lá:

www.omercadodenoticias.com.br

No filme, evitei intencionalmente o assunto mensalão, apenas sobre ele se faria uma série, ou vários longas. (Na verdade, se farão, sei de pelo menos dois filmes sobre o mensalão a caminho). O mensalão, acho que ninguém ignora, inclui vários crimes (o de caixa dois foi, inclusive, confessado) mas é, antes de tudo, uma palavra. A palavra “mensalão”, criação de Roberto Jeferson tornada pública na Folha em reportagem de uma das minhas entrevistadas, Renata Lo Prete, é um poderoso hashtag, um buraco negro que suga o debate. Minha pauta, que pretendia ser uma conversa sobre os rumos do jornalismo, teria que ser inteiramente outra.

Por exemplo:

Alguém razoavelmente bem informado ainda acredita que os milhões da Visanet, pilar que sustenta a condenação dos réus do mensalão petista, eram dinheiro público?
Que estes milhões foram desviados de sua função e não gastos em publicidade, como atestam as notas fiscais de grandes empresas de comunicação e os eventos publicitários realmente realizados?
Que o único responsável pela liberação do dinheiro foi mesmo o diretor petista do banco e não os outros quatro diretores tucanos que assinaram as liberações mas não foram indiciados?
Que a teoria do domínio do fato faz sentido? E, se faz, explica por que Lula não foi indiciado?
Que pedir aos réus que provem sua inocência – e não ao tribunal que prove sua culpa – faz sentido?
Que um único julgamento, do qual os réus (comuns) não possam recorrer do resultado, faz sentido?
Que um julgamento criminal transmitido ao vivo pela televisão pode ser justo?
Que é moral e juridicamente defensável a posição do ex-ministro Joaquim Barbosa que confessou, no plenário do STF (está gravado) ter manipulado a dosimetria das penas com o objetivo de evitar a prescrição dos crimes?
Que é moral e juridicamente defensável a posição do ex-ministro Joaquim Barbosa que manteve “escondido”, longe do olhar de seus colegas da corte, o inquérito 2474, sob sua guarda, alegando que ele não tinha importância no julgamento do mensalão, apesar de conter, como se soube mais tarde, provas fundamentais para o julgamento de um processo criminal em curso?
Alguém desconhece o feito midiático (e cruel) que incluiu o ministro Luiz Gushiken entre os indiciados apenas para fechar a conta de 40 acusados, facilitando manchetes engraçadinhas? (Gushiken teve que enfrentar, nos últimos anos de sua vida, além do câncer, toneladas de calúnias só para esperar que o relator, ao apresentar a denúncia, reconhecesse que não havia nada contra ele, coisa que poderia ter feito dois anos antes.)
Alguém desconhece o caráter midiático de uma prisão arbitrária feita às pressas no dia 15 de novembro?
Alguém desconhece a arbitrariedade de conceder um habeas corpus ao perigoso psicopata Roger Abdelmassih, como fez o ministro Gilmar Mendes, e negá-lo ao pacífico cardiopata José Genoíno?
Alguém desconhece o desequilíbrio da mídia no tratamento aos mensalões petista e tucano, em Minas, anterior e com os mesmos “operadores”, onde não há dúvida alguma do uso de dinheiro público na tentativa de reeleger o então presidente do PSDB, Eduardo Azeredo?
Alguém ignora os descalabros e incoerências pronunciados por vários ministros da corte, em frente às câmeras, e depois suprimidos, a pedido dos próprios, dos autos do processo?
Alguém ainda defende, seriamente, o comportamento do ministro relator Joaquim Barbosa na condução do processo?

Perceba que, fosse falar do mensalão neste filme, sem tratar do assunto apenas como um mantra anti-petista repetido acriticamente por quem quer agradar seus fãs e patrões ou apenas fazer picuinha, o tema tomaria conta do filme. Falar seriamente sobre o mensalão, este evento político-jurídico-midiático que emburrece o debate no país desde 2005, requer um tempo que o filme não tinha. Espero que os filmes que se farão sobre o tema tratem de aprofundá-lo.

Procuro filmes brasileiros, de qualquer época, sobre este assunto, o jornalismo, e não encontro. (Há muitos bons filmes americanos sobre o tema, só o Billy Wilder fez dois.) O filme que você imagina sobre “os problemas da imprensa” nos tempos de Fernando Henrique realmente não foi feito. Os exemplos que uso no filme são de barrigas (erros), não reportagens críticas que se mostraram verdadeiras. Na entrevista do Fernando Rodrigues (na íntegra no site) ele conta em detalhes a grande matéria da Folha que revelou a compra de votos para a reeleição de FHC, por exemplo. E o Jânio conta o caso da denúncia de maracutaia na licitação da ferrovia Norte-Sul, outro grande feito da Folha. Mas não foram barrigas, os casos se comprovaram plenamente, nunca foram desmentidos. Ao contrários das incontáveis barrigas contra Lula e Dilma, há algumas no filme, outras tantas no site (e muitas outras, semanalmente).

Nos debates que tenho participado sobre o filme peço a quem souber – e reforço o pedido a você – de alguma barriga séria da imprensa contra FHC e seu governo que me avise, gostaria muito de publicar no site do filme. Ou, quem sabe, fazer um curta.

A vontade implícita do filme eu não sei (o filme é de quem vê). Minha vontade implícita e explícita era, e é, a defesa do bom jornalismo. Bom jornalismo na minha opinião, é claro.

Não sou nem me pretendo apartidário (embora nunca tenha sido filiado a qualquer partido) nem independente (dependo do meu trabalho, desde sempre.)

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O Mercado de Notícias http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/08/21/o-mercado-de-noticias/ http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/08/21/o-mercado-de-noticias/#respond Thu, 21 Aug 2014 19:55:29 +0000 http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/?p=1291 Continue lendo →]]> Sou naturalmente suspeito para comentar “O Mercado de Notícias”, documentário de Jorge Furtado sobre os problemas da imprensa brasileira.
Fiquei bastante embaraçado com uma das principais “descobertas” do filme: uma matéria escandalosamente errada que saiu na “Folha” há anos, apontando a existência de um quadro de Picasso na parede de um corredor burocrático do INSS.
Não era um Picasso autêntico, evidentemente, e a ideia da notícia –mostrar o descaso do poder público com o próprio patrimônio—caía por terra.
Não me lembro de ter visto a reportagem, que saiu com foto e tudo. O suposto quadro de Picasso era a reprodução de uma obra razoavelmente famosa, de um museu em Nova York, e quero imaginar que eu teria reconhecido o engano. Só agora, passados anos da notícia, saiu na “Folha” um “erramos” sobre o caso.
É um dos momentos mais interessantes do filme, ainda que incômodos para quem é da Folha.
Mas “O Mercado de Notícias” (veja horários no Guia da Folha) não se dedica muito ao divertido recenseamento dos deslizes jornalísticos. O principal do filme –e aqui surge um segundo motivo para minha suspeição ao comentá-lo—está numa série de entrevistas com jornalistas, seja os da grande imprensa (Fernando Rodrigues, Renata Lo Prete, Cristiana Lôbo), seja os que a criticam (Mino Carta, Luis Nassif, Raimundo Pereira).
Para quem é jornalista, muitos dos temas abordados nessas entrevistas trazem pouca novidade. “Existe imparcialidade?” “Existe liberdade de expressão nos grandes jornais?” “Os interesses econômicos prevalecem sobre a verdade?” “O que é verdade?”
Há opiniões radicais, e outras menos, sobre isso. Talvez para o público mais amplo seja interessante ouvir tantos jornalistas expondo seus pontos de vista. De minha parte, acho que tudo termina abstrato demais, com frases que tendem à exposição de princípios ou de julgamentos já consolidados.
Talvez sabendo desse risco, Jorge Furtado entremeia os depoimentos com cenas da montagem de uma peça, intitulada justamente “O Mercado de Notícias”, escrita por Ben Jonson (1572-1637). É outra descoberta muito boa do diretor –além do caso Picasso. A comédia mostra um jovem perdulário que se envolve na empreitada de comprar e vender “notícias”, (“novidades”?) numa época anterior à da consolidação dos jornais tais como os entendemos hoje.
Vendo a peça e pensando nos jornais de hoje, pode-se sempre traçar aquele gênero de paralelos que leva uma pessoa a dizer: “puxa, já naquela época, hein!” Mas a aproximação não é das mais esclarecedoras, e novamente escapamos do concreto, do real, para um plano de julgamentos mais ou menos fáceis.
Como a perspectiva adotada é sempre a da generalidade, é um alívio quando se vê Luis Nassif, por exemplo, apontar um caso específico de miopia jornalística. Ele se refere à excessiva atenção dos jornais com respeito às oscilações do mercado financeiro, e de que modo se deu pouca importância a uma queda violentíssima na venda de máquinas agrícolas, em 2008 se não me engano.
Mais exemplos como esse enriqueceriam o filme de Furtado.
Sem dúvida, o grande exemplo, que “O Mercado de Notícias” recalcou, não é o das máquinas agrícolas. Metade dos entrevistados, mais ou menos, considera que os jornais perseguem o governo do PT, e teria longas considerações a fazer sobre o caso do mensalão.
Imagino que um filme sobre “os problemas da imprensa” sequer teria sido feito nos tempos de Fernando Henrique, quando choviam denúncias contra os tucanos.
A vontade implícita deste documentário é colocar em questão uma imprensa que foi duríssima contra Lula. Por que não falar disso de uma vez? Curiosamente, o tema do mensalão foi recalcado, abafado, suprimido (auto-censurado?) em “O Mercado de Notícias”. Por esse cuidado do diretor, que talvez tenha querido parecer “apartidário e independente”, o filme me pareceu ficar girando na periferia de seu assunto real.

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Tragédias políticas http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/08/17/tragedias-politicas/ http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/08/17/tragedias-politicas/#respond Sun, 17 Aug 2014 15:49:41 +0000 http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/?p=1288 Continue lendo →]]> (artigo publicado na “Folha” de hoje)
Lembrar de carreiras políticas atingidas pela morte repentina, como a de Eduardo Campos, é tarefa relativamente fácil: logo vêm à mente os exemplos de Tancredo Neves e Getúlio Vargas –para não falar dos acidentes com Juscelino Kubitschek e Castello Branco e dos casos médicos de Carlos Lacerda, Jango ou Costa e Silva.
Sim. Mas com todo o respeito que se possa ter pela figura de Eduardo Campos, a comparação parece muito exagerada. O candidato do PSB não era o favorito nas pesquisas, e sua representatividade política, pelo menos em São Paulo, ainda era coisa a ser construída.
A possibilidade de que Campos viesse a empolgar a classe média e os empresários paulistas se baseava no fato de que, pela primeira vez, a oposição tucana tinha um candidato nascido “fora do ninho”.
Esgotados os cartuchos de Serra, de Alckmin e de Fernando Henrique, o mineiro Aécio Neves deixou o eleitorado antipetista de São Paulo órfão de um candidato “natural”.
Por isso, Eduardo Campos apostava (ou “era apostado”) numa proximidade com o poder econômico paulista que poucos políticos fora do Sudeste puderam alcançar. Havia muito a ser trabalhado, contudo, para que esse projeto se consolidasse até outubro.
O maior assemelhado de Campos, dessa ótica, não seria nenhuma dessas grandes lideranças desaparecidas tragicamente, mas outro ex-governador nordestino de olhos azuis: o tucano cearense Tasso Jereissati. Que se contenta, atualmente, em ser candidato a senador por seu Estado, numa coligação monstro que tem Eunício de Oliveira (PMDB) disputando o governo.
As comparações iniciais com Tancredo e Getúlio, motivadas sem dúvida pela emoção do choque e pela simpatia que Campos despertava, vão assim se atenuando. Os casos que surgiram imediatamente à memória se revelam menos pertinentes. Para dimensionar o caso de Eduardo Campos, temos de buscar nos arquivos –o que não deixa de ser triste— tragédias políticas um bocado obscuras.
Foi lembrado, assim, o acidente de helicóptero com Clériston Andrade, candidato ao governo da Bahia em 1982, ou o desastre aéreo que matou Salgado Filho, postulante gaúcho nas eleições estaduais de 1950.
Mas aí já estamos escavando muito fundo nas camadas arqueológicas da história regional.
Podemos ir mais longe, contudo. E aí as coisas ficam especialmente cruéis para todos os envolvidos na comparação.
É estranho que um nome de outro político muito promissor, que também morreu de repente, não seja lembrado de imediato quando se analisa o destino de Eduardo Campos. Estou pensando em Luiz Eduardo Magalhães, do DEM, vitimado por um enfarte aos 43 anos.
Não era candidato à presidência da República –aspirava ainda ao governo baiano. Mas tinha sido presidente da Câmara dos Deputados e surgia como um nome mágico, capaz de garantir uma alternância entre PSDB e DEM no Palácio do Planalto. Quando morreu, em 1998, muitos comentários aludiam a seu papel insubstituível como articulador no governo Fernando Henrique.
Tornou-se, como Salgado Filho em Porto Alegre, nome de um aeroporto (que Deus nos livre desse destino)—e de um município na Bahia.
Indo mais para o passado, o PTB de João Goulart depositava muitas esperanças no nome de um jovem político fluminense, Roberto Silveira. Dizia-se que era um grande talento. Morreu num acidente de helicóptero em 1961, deixando seu legado político a familiares de expressão local.
Outro acidente de helicóptero matou Ulysses Guimarães e Severo Gomes em 1992. Ambos já tinham cumprido missões históricas na redemocratização do país.
Não foram lembrados agora –e nem nome de município, pelo que eu sei, terminaram virando. A política, por mais cruel que seja dizer isso agora, é sobretudo a arte da sobrevivência.

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Olhos azuis http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/08/16/olhos-azuis/ http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/08/16/olhos-azuis/#respond Sat, 16 Aug 2014 16:15:38 +0000 http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/?p=1285 Continue lendo →]]> Apareceu na televisão, e depois no jornal, o depoimento de um cidadão que estava perto do acidente de Eduardo Campos. O homem, com lágrimas nos olhos, dizia ter visto uma bola de fogo –a queda do jatinho –os corpos espalhados no chão. Aproximou-se de um corpo. Abriu as pálpebras do morto: os olhos eram azuis. “Era o meu candidato…”, disse para as câmeras, forçando o choro.
O problema é que a identificação dos corpos não poderá ser feita nem mesmo pelo exame das arcadas dentárias, segundo a perícia.
A “testemunha” simplesmente delirava.
Qual será o impulso de alguém para mentir sem levar nenhuma vantagem com isso? Queria só aparecer na televisão? Não acho muito plausível. Talvez a vontade não seja exatamente de mentir; é a vontade de ver se o outro acredita. O homem buscava, no repórter que o entrevistou, um olhar que expressasse, digamos, uma “ausência de desconfiança”.
“Acreditam em mim!” Esse é o maior prazer do mentiroso; procura, no fundo, acolhimento.
Não por acaso fixou-se no detalhe dos olhos azuis. Nada disso é quantificável, acho, mas o fato de Eduardo Campos ter olhos azuis também contribuiu para sua popularidade. Talvez para nós, brasileiros, nos pareçam mais “verdadeiros”, mais “sinceros” os olhos claros.
O cidadão que “testemunhou” o acidente queria que acreditassem nele –nada melhor do que olhos azuis para dar veracidade a seu depoimento.

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Nicolau Sevcenko http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/08/14/nicolau-sevcenko/ http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/08/14/nicolau-sevcenko/#comments Thu, 14 Aug 2014 22:00:43 +0000 http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/?p=1283 Continue lendo →]]> Quando a morte de alguém importante aparece no jornal, já estamos mais ou menos preparados para a leitura: a notícia já circulou, diminuindo o choque da letra impressa.
Meu susto, ao ler o jornal de hoje, foi dar com outra morte, ocupando página inteira do “Cotidiano”: a do historiador Nicolau Sevcenko, aos 61 anos. Conheci-o na “Folha”, em meados da década de 80; tinha sido convidado para escrever editoriais no jornal, o que fez com brilho no mesmo dia –mas não tinha disponibilidade, naquela época, para um compromisso regular na atividade.
Era muito magrinho, jovem, simpático e esquisito. Depois ele me contou que, na infância, fora forçado a escrever com a mão direita. Sendo um caso extremo de canhotice, isso viria a atrapalhá-lo bastante. Era comum que gastasse várias folhas de cheque antes de preencher uma corretamente. Trocava letras e números o tempo todo, e na própria postura física e na expressão facial trazia as consequências dessa reorientação neurológica forçada.
Parecia, ao mesmo tempo, absolutamente confortável no mundo. Chegou à Folha com um paletó preto justo, camisa acho que xadrez, e uma gravatinha moderníssima, não sei se de couro ou de borracha; na lapela, uma estrela vermelha do PT.
Era o tempo do “PT light” e charmoso, atraindo pessoas com simpatias libertárias e visceralmente anti-estalinistas. Era também o tempo em que a intelectualidade da USP ia ficando mais “pop” e roqueira. Sevcenko era um historiador acadêmico respeitado, mas seu figurino e atitude nada mais tinham a ver com o jeito mais enfarruscado, quase de ex-militante argentino, que era (e talvez ainda seja) característico da área de humanas da USP.
Nesse mesmo espírito dos anos 80, Sevcenko se destacou por eleger a história cultural, especialmente o campo da modernidade urbana, como objeto de estudos. Tomava-se um fartão (pelo menos era o meu sentimento na época) de estudos coloniais e discussões sobre economia sucro-cafeeira. “Orfeu Extático na Metrópole” (um livro que critiquei na época, e não mudo de opinião) tinha o mérito de destacar assuntos menos austeros, como a paixão pelo futebol nos anos 20…
História do cotidiano, história das mentalidades. Walter Benjamin. Maio de 68. Desse caldo iam surgindo, pela editora Brasiliense, os livros de Sevcenko, de Olgária Matos, de Nelson Brissac Peixoto –e, naturalmente, já pela Companhia das Letras, o de Marshall Berman. Isso, mais as coleções “Encanto Radical” e “Cantadas Literárias” (Marcelo Rubens Paiva, Leminski, Reinaldo Moraes) ia formando uma geração –e Sevcenko foi uma de suas estrelas.

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Mensalão, um rápido balanço final http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/03/15/mensalao-um-rapido-balanco-final/ http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/03/15/mensalao-um-rapido-balanco-final/#comments Sat, 15 Mar 2014 22:46:42 +0000 http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/?p=1224 Continue lendo →]]> Esta terá sido (espero) minha última coluna sobre o julgamento. Saiu na “Folha” de hoje.

Contas feitas

Para quem esperava penas rigorosíssimas, de preferência a cadeira elétrica para os principais acusados, o final do julgamento do mensalão foi um bocado decepcionante, ou ao menos anticlimático.
Verdade que as decisões recentes do Supremo Tribunal Federal (inocentando José Dirceu do crime de quadrilha e livrando João Paulo Cunha do de lavagem de dinheiro) não podem ser consideradas absurdas.
Deixemos de lado a polêmica, já bastante explorada, do conceito de “quadrilha” –no qual o senso comum e a definição jurídica parecem ir em direções opostas. Não é despropositado dizer que, quando a mulher de um corrupto saca o dinheiro da corrupção no banco e o leva para casa, seria forçado considerar que houve lavagem.
Com paciência, o ministro Marco Aurélio Mello leu o texto que define o crime. Trata-se de “ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade” do dinheiro ou dos bens resultantes de atividade criminosa. João Paulo Cunha não elaborou nenhuma ficção, do tipo bilhete premiado na loteria, para justificar seus proventos. Simplesmente abocanhou-os, com a intermediação da própria esposa.
O plenário, graças à nova maioria composta por Teori Zavascki e Luís Roberto Barroso, . aceitou as teses da defesa. Nada de especial a reclamar quanto a isso.
Do mesmo modo que muita gente reclama da brandura dos novos ministros, no campo oposto existe quem continua afirmando que todo o julgamento foi político, e que José Dirceu, Genoino e Pizzolato nada fizeram de errado.
No fundo, a primeira lição que se tira de todo o processo é que tudo depende, sempre, do entendimento de cada juiz. Há quem se convença, e quem não se convença, das provas apresentadas contra José Dirceu. Foram suficientes para alguns, não foram para outros.
O que não dá para acreditar é na tese de que o STF “inventou” teorias novas para condenar esses acusados em particular. A famosa tese do “domínio do fato” não foi um expediente para condenar José Dirceu sem provas.
Houve provas, só que não tão fortes como uma gravação telefônica ou uma filmagem com câmera escondida. Testemunhas confirmaram o papel de Dirceu no esquema, confirmou-se a existência de reuniões entre Dirceu e Marcos Valério.
Podem não ter sido para tratar de nenhum crime, podem ter sido apenas para conversar sobre o mundo. Mas o célebre princípio da “presunção de inocência” tem seus limites –um deles é o grau de credulidade ou de burrice do juiz encarregado de examinar o caso.
Por outro lado, o Ministério Público deixou passar os favores recebidos pela ex-esposa de José Dirceu, que seriam capazes de embasar uma condenação do ex-ministro por outro crime, o de corrupção passiva.
Julgamento “político”? Como dizer isso, se Gushiken foi inocentado e se Lula sequer foi acusado pelo Ministério Público?
Feitas as contas, mesmos os ministros mais favoráveis aos acusados foram capazes de condenar Pizzolato e Genoino. Feitas as contas, foram altíssimas as penas contra alguns acusados, em especial os banqueiros. Feitas as contas, e esta é uma última surpresa para tantos que acompanharam o julgamento, mesmo quem amargou vinte e tantos anos de prisão pode livrar-se em pouco tempo.
Entende-se, assim, a vontade punitiva de Joaquim Barbosa e outros que seguiram na sua linha. Há tantos meios de diminuir o tempo de cadeia, que a severidade de seus julgamentos resulta mais aparente do que real.
Não poderia ser muito diferente. Tudo nesse julgamento –queiramos ou não—foi feito de acordo com a lei, e com as interpretações que os ministros têm o dever e o direito de seguir.
Foi pela lei que o julgamento demorou absurdamente. Foi pela lei que se deu o paradoxo de um mesmo tribunal ser encarregado de fazer a revisão dos próprios julgamentos (o caso dos embargos infringentes). Foi pela lei –pelas muitas leis— que as penas para corrupção terminam menos graves do que as de lavagem de dinheiro.
Pressão da “mídia conservadora”? Quem reclama disso ignora voluntariamente a tese contrária, segundo a qual Barroso e Zavascki foram sensíveis à pressão de quem os nomeou. Partes da opinião pública pressionaram claramente Celso de Mello para que ele não aceitasse os últimos recursos da defesa. Ele –que queria a condenação dos envolvidos por quadrilha—aceitou os embargos infringentes, que inocentaram os mensaleiros dessa acusação.
A Justiça, com falhas e erros, funcionou. Nenhum dos ministros estará plenamente contente com o resultado a que se chegou no plenário; bom sinal.
Funcionará no futuro? O julgamento servirá para alguma coisa? Pessoalmente, tenho muitas dúvidas. Mas a sociedade mudou suas expectativas com relação ao papel do Supremo; de algum modo, concordando ou não com o veredito, entendeu-se mais sua importância, sua lógica própria, sua independência.

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As fotos de Lartigue http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/03/14/as-fotos-de-lartigue/ http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/03/14/as-fotos-de-lartigue/#comments Fri, 14 Mar 2014 10:21:18 +0000 http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/?p=1225 Continue lendo →]]> Vão aqui algumas fotos de Jacques-Henri Lartigue, cuja exposição no Instituto Moreira Salles comentei no post anterior.

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Existe quase sempre, nas imagens de Lartigue, essa procura de captar alguém “fora do ar”, em pleno voo, mas microssegundos antes de estatelar-se no chão (ou na água).

Outra coisa que não deu tempo de comentar é que o instante do “voo” muitas vezes vem acompanhado do registro de um reflexo –na água, na terra molhada –como se o reflexo, nítido ou impreciso, representasse a própria realidade fotografada. Desse modo, o reflexo parece simbolizar a ação de quem fotografa, é a imagem do próprio negativo fotográfico, do esforço de registrar o que está acontecendo. Imagem da fugacidade da imagem, fotografia da fragilidade da fotografia…

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(Se não há reflexo, há pelo menos a sombra…):

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Esta é a foto de que mais gosto, e que comentei mais extensamente no texto:

 

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(fotos pinterest)

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Black blocs, um depoimento http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/02/22/black-blocs-um-depoimento/ http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/02/22/black-blocs-um-depoimento/#comments Sat, 22 Feb 2014 17:43:35 +0000 http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/?p=1211 Continue lendo →]]> Um leitor do Rio de Janeiro me escreve, deixando valioso depoimento.

Na curiosidade de cientista social e de quem vê a filha de 13 anos questionar os gastos com a construção de estádios para a Copa, comparando-os com os parâmetros internacionais (…) fui tentar entender estes jovens, em especial os Black Blocs.

Acampei por 3 dias na frente da casa do governador junto a eles.

Nesta ocupação, havia desde movimentos organizados, nucleados por lideranças, até infiltração de gente de oposição. Havia participantes puramente ideologizados, com algum conhecimento de pensadores como Gramsci, Marx, Chomsky e até mesmo o pop agitado do Zizek. Nesta mistura, nada de diferente do que conhecemos, ao menos desde meus tempos de faculdade.

Nesta ocupação você também encontrava jovens que, apesar de achar que tinham um pensamento de esquerda, não se viam representados pelas organizações e movimentos sociais. Quando você conversava um pouco, via que eles nada mais representavam que um “neo-udenismo”, um conservadorismo com algumas ações de mobilização.

E havia os Black Blocs. Eles se aproximaram, e pude conversar com eles.

Alguns pontos pareciam ser comuns a todos, e acho interessante ressaltá-los.

1. Eles não têm liderança. Não da forma que conhecemos. Logo, negociar com eles é quase impossível. A pauta é difusa.

2. Eles não percebem a diferença entre um Lula e um Sarney. Para eles, os dois representam o poder constituído.

3. O ascenso da classe C, num quadro onde o consumo foi o indicador de inserção social, tornou inevitável a existência de pautas específicas e pragmáticas. Digamos que, ao “aburguesar a periferia”, a política social do governo na verdade criou um gigantesco pensamento classe média que tende a ser muito mais pragmático que ideológico.

4. Boa parte dos black blocs tem emprego. Outros apenas estudam. Mas não têm uma organização de presença de rua de fato. E não foram instrumentalizados por quem teria intenção de fazer a ocupação. Tudo é como se eles tivessem lido um tutorial da internet. E junto a isto, sim, um rancor contra a sociedade da forma em que é constituída. Eles não leram Proudhon nem Bakunin. No máximo citam frases soltas, que bem poderiam ser da Clarice Lispector. Mas eles são sim, um caldeirão passível de instrumentalização. Este é o meu receio.

 

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Mutilação e outros tipos http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/02/22/mutilacao-e-outros-tipos/ http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/02/22/mutilacao-e-outros-tipos/#comments Sat, 22 Feb 2014 17:10:21 +0000 http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/?p=1209 Continue lendo →]]> Num post anterior, escrevi que em Cingapura a mutilação genital feminina é legalizada. Um leitor, que mora lá, escreve para esclarecer o ponto.
Há quatro tipos de circuncisão genital feminina, e só o primeiro, mais leve, seria permitido em Cingapura. O link é muito esclarecedor.

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O avesso e o direito http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/02/21/o-avesso-e-o-direito/ http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/02/21/o-avesso-e-o-direito/#respond Fri, 21 Feb 2014 22:50:43 +0000 http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/?p=1203 Continue lendo →]]> O avesso e o direito

Dirceu, Genoino, Delúbio cometeram vários crimes juntos. Contaram, ademais, com a ajuda de dirigentes do Banco Rural, que se encarregaram da lavagem do dinheiro do mensalão.
É o bastante para chamar o grupo de “quadrilha”? A resposta a essa pergunta vale dois anos e pouco no cálculo das penas, o que para alguns réus significa a diferença entre ficar em regime fechado ou poder ficar fora da cadeia durante o dia.
Com vários argumentos, os advogados iniciaram os debates na sessão de ontem do Supremo. Oscilou muito, entretanto, a qualidade das suas intervenções.
Com ares de tenor enfurecido, o advogado de José Genoino chamou Roberto Jefferson de “mentiroso”, e foi longe na politização do debate. Os petistas não formaram quadrilha nenhuma. Formaram, isso sim, um “partido político”, que desde 1980 luta por seu “projeto de poder”.
Projeto vencedor, frisou Luiz Fernando Pacheco, e que tem o apoio da maioria do povo brasileiro. Se fosse quadrilha, estaria o povo disposto (como dizem algumas pesquisas de opinião) a reeleger Dilma já no primeiro turno?
A pergunta do advogado –bastante otimista, aliás—esquecia que a presidente nunca foi acusada de participar do mensalão; partiu do pressuposto, sem dúvida o de muitos petistas, de que é o PT inteiro quem está em julgamento.
Os advogados dos banqueiros puderam colocar a discussão em termos mais adequados. Ainda que tímida e sem fluência oratória, a jovem Maria Saloni desenvolveu com clareza o problema conceitual em torno da “formação de quadrilha”.
Uma coisa é cometer crimes com a ajuda de outras pessoas. Na linguagem jurídica, trata-se de “co-autoria”, ou “concurso de agentes”. Roubar um banco é coisa que não se faz sozinho.
Outra coisa é montar uma equipe, que existirá de forma estável, ao longo do tempo, com o fim de realizar diversos crimes.
Para a advogada de José Roberto Salgado, o dirigente do Banco Rural não pode ser acusado de pertencer a quadrilha nenhuma. Mesmo aceitando a sua condenação por lavagem de dinheiro e gestão fraudulenta, não é que ele participasse de todo o “projeto”, digamos assim, do PT e dos mensaleiros.
Fez-se, na verdade, uma acusação de “ponta-cabeça”, imaginou-se uma quadrilha “às avessas”. Verifica-se a ocorrência de vários delitos, vê-se que várias pessoas os praticaram em conjunto, e constrói-se, a partir daí, a acusação de que houve quadrilha.
O certo, segundo o raciocínio da defesa, seria começar da outra ponta. Primeiro, é preciso provar a existência de uma associação estável, visando a cometer crimes. Depois, se for o caso, cumpre provar os crimes cometidos, que se somariam ao crime inicial, o de ter formado uma quadrilha.
Representando Kátia Rabello, o advogado Theodomiro Dias Netto resumiu a mesma ideia. Haverá crime de quadrilha quando existir essa organização estável, até mesmo se nenhum crime for cometido. Elimine-se, por hipótese, a lavagem de dinheiro cometida por Kátia Rabello: não restaria nada indicando que ela pertencesse à “quadrilha” de Dirceu.
Seria, portanto, apenas um mecanismo para aumentar a pena de crimes já cometidos e julgados.
Foi a vez de Rodrigo Janot, pela acusação, responder a esses argumentos. Para o Ministério Público, não houve “quadrilha às avessas”, nem raciocínio de ponta-cabeça.
O que houve foi a conclusão, com base nos crimes provados, de que tudo só foi possível graças à constituição de uma organização criminosa. Deduziu-se, com lógica difícil de contestar, a existência de uma quadrilha –uma vez que lavagem de dinheiro, gestão fraudulenta e outros delitos só ocorreram porque havia uma quadrilha em funcionamento…
Modos diversos, como se vê, de qualificar os mesmos fatos. Na semana que vem, os ministros decidem de vez a questão.

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