Marcelo CoelhoVersão impressa – Marcelo Coelho http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br Cultura e crítica Tue, 18 Aug 2015 12:23:18 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Debate sem fim http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/10/01/debate-sem-fim/ http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/10/01/debate-sem-fim/#comments Wed, 01 Oct 2014 05:00:02 +0000 http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/?p=1316 Continue lendo →]]> Para quem se irrita com os debates eleitorais, uma grande peça de teatro pode servir de antídoto.

O melhor da coisa, acho, é quando determinado personagem faz um discurso bem longo e elaborado, dando todas as razões que tem para se comportar como se comporta.

Ele explica, demonstra, justifica-se, exalta-se: o espectador está praticamente convencido de tudo, há um silêncio… E então o outro personagem toma a palavra, demolindo com perfeição os motivos do antagonista.

Um belo momento desse gênero ocorre em “Não se Brinca com o Amor”, peça que o poeta Alfred de Musset (1810-1857) escreveu aos 24 anos. O texto até hoje mantém muito de sua aparência primaveril e graciosa. Mas é só aparência; há belezas maiores em jogo. A peça está em cartaz em São Paulo, no teatro da Aliança Francesa, e gira em torno de um casalzinho de 20 anos.

Camille e Perdican são primos, passaram a infância juntos, e se amam. Reencontram-se depois de uma longa separação. Enquanto Camille ficou encerrada num convento, aprendendo religião e boas maneiras, o jovem Perdican foi estudar em Paris. Voltam para o castelo da família. O velho barão quer que os dois se casem; não há como o projeto não dar certo.

Mas Camille está mudada. Desconfia dos homens. Prefere se tornar freira a ter de suportar uma vida conjugal infeliz. Pressiona o primo: seria ele capaz de amá-la para sempre? Não vai arranjar amantes? Aliás, já não terá tido amantes enquanto estudava em Paris?

O jovem Perdican parece esmagado pelas perguntas e cobranças de Camille. Responde que sim, que já teve amantes. Esqueceu-as depois? Sim, o amor não durou. Não teve nenhuma que marcou mais profundamente o seu coração?

Perdican se esquiva. O que quer a prima? Obter uma fala de confessionário? Ele não acredita em Deus, acha que as freiras do convento contaminaram a menina com histórias amargas. O “debate”, se podemos dizer assim, vai se tornando cada vez mais inteligente e insolúvel. Perdican se levanta.

“Adeus, Camille, retorna a teu convento.” É um golpe e tanto, quando sabemos que o rapaz ama a prima perdidamente. Mas Perdican continua. “Quando as freiras vierem repetir suas histórias de maridos infiéis, de amores desfeitos, de traições e promessas falsas, responde-lhes o seguinte…”

Vem um desses grandes discursos que são a glória do teatro clássico. “Todos os homens são mentirosos, inconstantes, falsos, falastrões, hipócritas, orgulhosos ou covardes, desprezíveis e sensuais; todas as mulheres são pérfidas, cheias de artimanhas, vaidosas, bisbilhoteiras e depravadas; o mundo é um esgoto sem fundo…”

Ele toma fôlego. É verdade que, com frequência, as pessoas erram quando amam, saem feridas e infelizes de cada paixão. “Mas amaram.” Quando se voltarem para olhar o passado, poderão dizer para si mesmas: “Sofri muito, errei algumas vezes; ainda assim, amei. Fui eu que tive essa vida, e não uma pessoa inventada, criada por meu próprio orgulho e por meu próprio tédio”.

Fim do segundo ato.

Não vou contar o resto. Há mais do que um emocionante (e um pouco retórico) embate de vistas sobre as desventuras do coração. Esse momento de grande ênfase contrasta, na peça, com um entrecho bastante leve, do qual participam dois abades trapalhões, prontos à bebedeira e à inconfidência.

Em tese, o espectador não espera mais nada além de uma historiazinha no estilo do século 18, em que depois de algumas intrigas, cartinhas e mal-entendidos tudo termina dando certo.

Acontece que Musset escrevia mais de um século depois de Molière, e mesmo um inocente casal de apaixonados já tinha, em pleno período romântico, outras sombras e complexidades. O jovem que finge indiferença, ou que finge estar apaixonado por outra moça, já não sabe mais até que ponto, dentro de si mesmo, seu comportamento é puro jogo ou sentimento verdadeiro.

Como dizia o herói de “Lorenzaccio”, outro drama de Musset, a máscara já não se desgruda mais da face. Dentro da própria história, os personagens fazem teatro o tempo todo.

A ambiguidade entre amor real e amor fingido é traduzida admiravelmente na montagem de Anne Kessler, da Comédie Française, que ironiza as convenções do teatro, acentua a ligeireza quando o assunto é sério, e dá ritmo de comédia aos movimentos, muito sofridos, do amor com que se brinca.

Ou não? Vale a pena acompanhar esse debate.

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Pequenos profissionais http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/09/24/pequenos-profissionais/ http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/09/24/pequenos-profissionais/#comments Wed, 24 Sep 2014 05:00:45 +0000 http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/?p=1313 Continue lendo →]]> Se você reclama de seu filho passar horas e horas com joguinhos no computador, talvez seja melhor relaxar. Pode ser que ele não esteja apenas esmagando marshmallows falantes ou quebrando os ossos de algum malfeitor.

Pela minha experiência com filhos pré-adolescentes, existe também outra possibilidade. Com frequência, é menos de diversão que se trata, e sim de trabalho.

Tudo começou com um game chamado “Minecraft”. Apesar de ter inúmeras variantes (algumas das quais exigem armas mortíferas e ânimo implacável), a ideia toda do entretenimento é construtiva.

Não há correrias acrobáticas nem efeitos visuais de impacto. O que aparece na tela é bastante básico: cubos relativamente grandes, de cor escura, e ferramentas de trabalho, como pás e picaretas, de escasso realismo.

Apela-se menos para o espírito de aventura e destruição do que para os prazeres paleotécnicos da carpintaria, do tijolo, da viga e da argamassa. Brinca-se de trabalhar, sem dúvida, e de enriquecer também.

O passo seguinte é mais decisivo. Com programas adequados, é possível produzir vídeos nos quais você conta que procedimentos adotou para a construção de seu palácio. Alguns desses “gamers” pontilham suas demonstrações técnicas de comentários humorísticos e obscenos, tornando-se pequenas celebridades no Youtube.

Mais tarde, o computador oferece a qualquer menino ou menina condições de fabricar seus próprios desenhos animados. Pode produzir música de fundo para o filminho, ou apresentar os créditos de autoria por meio de introduções estroboscópicas e tridimensionais.

Daí para se envolver em alguma atividade lucrativa o passo é mínimo. O garoto que se envolve nisso não está perdendo tempo: com 12 anos ou menos, é quase um pré-profissional.

Mais impressionante é o caso dos pequenos cozinheiros. Uma série exibida na Discovery Home and Health põe à prova o talento culinário de meninos e meninas, com menos de 12 anos.

Apresentados a ingredientes como lagostas, ouriços ou costelas, aquelas crianças produzem pratos feéricos.

Turbantes de molusco em coulis de pêssego silvestre ou coulibiacs de polvo em massa crocante de macadâmia antecedem charlotes desconstruídas de tangerina com calda de jasmim. A vencedora foi uma loirinha banguela, sem idade sequer para começar a usar aparelho ortodôntico.

Com algumas doses de mel e lágrimas, próprias à Sessão da Tarde, o filme “Chef”, dirigido e estrelado por Jon Favreau, também mostra a ansiedade de um garotinho em se integrar ao mundo do trabalho adulto.

É uma produção bem simpática, aliando com delicadeza ingredientes caros ao cinema americano: a reconstituição de uma vida familiar minada pelo egoísmo produtivista, o reencontro entre pai e filho, a viagem de carro pelo interior dos Estados Unidos, a mensagem de que o trabalho duro é importante, mas nada se consegue sem a amizade.

“Last but not least”, demonstra-se o triunfo da livre iniciativa individual sobre os interesses predatórios do empresariado constituído (com o paradoxo de que esse triunfo se traduz em lucro e sucesso empresarial também).

Tudo isso, e mais uma visão positiva dos valores latinos, faz de “Chef” um bom programa para crianças de 10 ou 12 anos. O que há de mais sedutor, entretanto, é o fato de que o filho do protagonista (ótimo desempenho de Emjay Anthony) passa as férias ajudando o pai, ex-chefe de cozinha num restaurante metido, a vender sanduíches numa van.

Dito isto, retomo o tema de Hélio Schwartsman, em sua coluna de domingo passado. Ele se refere a uma verdadeira “histeria da pedofilia” na sociedade contemporânea.

Naturalmente, qualquer pessoa fica chocada com cenas de sexo envolvendo crianças de quatro ou cinco anos; coisas assim são hediondas.

O problema é que os ideais adultos de beleza (que se aproximam da androginia e da esqualidez) são tudo, menos adultos: no mundo contemporâneo, a luta contra o tempo se intensifica. Ninguém quer parecer três anos mais jovem: quer ter 15, 20 anos a menos.

A luta contra o tempo também se dá no sentido inverso. Aos 12 anos, ninguém mais quer ser criança; a escola é perda de tempo; no computador, ou na cozinha, ou na vida de modelo, qualquer um se sente mais útil. E, como qualquer adulto bem sabe, mercado de trabalho e competição sexual nem sempre são fáceis de separar.

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O homem da fibra ótica http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/09/17/o-homem-da-fibra-otica/ http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/09/17/o-homem-da-fibra-otica/#comments Wed, 17 Sep 2014 05:00:10 +0000 http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/?p=1311 Continue lendo →]]> Depois de vários colapsos, estou esperando que instalem a fibra óptica da internet aqui em casa. Mas reclamar desse tipo de coisa é cansativo. Não vale usar o espaço do jornal para advogar em causa própria.

Faço, primeiro, alguns elogios.

Como todo mundo, fico nervoso com o “call center”, e me confundo teclando opções e mais opções a respeito do serviço “que eu quero solicitar”. Mas uma coisa me desarma e tranquiliza.

As atendentes, pelo menos numa empresa, têm o mais maravilhoso sotaque mineiro. Tudo se torna calmo e racional com essa pronúncia. Não há pressa, claro. Nada se processa com a velocidade de que gostaríamos. Mas não há moleza tampouco.

Na escuridão da linha telefônica, imagino a paisagem recolhida e pausada dos cerros verdes, cobertos de neblina e musgo. No ar, cheirando a fogão de lenha e ainda fresco da manhã, suspende-se a esperança (“um momento, por favor”), como os doces balões de junho parados numa tela de Guignard.

Serão todas mineiras as moças da TIM? No próprio nome da companhia, há algo de tímido e diminuto, que evoca as terminações típicas do sotaque regional. Em vez de “Joãozinho”, é “Joãozim” que se fala.

Podem também ser mineiras as atendentes da Claro. Penso em quartzos, turmalinas, caxambus. É a limpidez de águas serenas que se cristaliza em fibra óptica.

Não entendo de eletrônica, mas quero acreditar que, em vez de impulsos elétricos, o novo cabeamento virá em forma de luz. Vale esperar, portanto –ao menos pela poesia da coisa.

E se for a Vivo? Também aqui a mineirice do nome diminui a minha belicosidade de paulista. O mineiro é matinal e desperto; se são esquivos os seus modos, isso não é dubiedade, mas cortesia. “Mais um momentim, p’favôh.” Há vivacidade, com efeito, mas não açodamento, nesse jeito de omitir as vogais.

Tudo vai dar certo, tenho certeza, ainda que o homem da instalação não chegue. Essas empresas sabem das coisas. Devem ter escolhido Minas de propósito para ser a sede do atendimento geral.

Um segundo elogio. Antigamente, era inútil: o dia e a hora marcada não tinham como ser levados a sério. Muitas vezes fiquei de plantão, sentinela de fuzil em punho, sem sinal do inimigo, muito menos sinal no cabo da TV.

Na verdadeira febre de modificações que acomete a minha vida digital, verifiquei um ganho de pontualidade nesses prestadores de serviço. Há os que, por determinação da empresa, chegam com protetores de pano nos sapatos, como se estivessem entrando numa UTI.

Certo, pois em quase todo apartamento há veias entupidas, estreitamentos coronários, escleroses capazes de inviabilizar o mais moderno wireless. A eletrônica, como a medicina, é ainda uma mecânica.

Luto pela minha sobrevivência digital, enquanto as empresas lutam pela sua. O modelo estatal das telecomunicações não tinha como prosseguir, sem dúvida. O governo perdeu, ao longo de décadas, sua capacidade de investimento.

Mas quando me ligam todo dia propondo novos combos e descontos, confesso que a livre concorrência também é capaz de incomodar um bocado. Acabo me acostumando; antes dizia que nada me interessava, hoje escuto e vou aderindo a todos os planos possíveis. Sou cliente simultâneo de várias marcas; quando uma pifar, tenho outra. Estatizei o meu consumo.

De qualquer modo, o modelo da livre concorrência continua guardando semelhanças com o sistema estatal. Um exemplo. O homem da fibra óptica trabalha para uma empresa terceirizada. Não consigo, entretanto, contratar eu mesmo o homem da fibra óptica.

Tenho de ligar para a TIM, a Vivo ou o que seja, passar por toda a burocracia das teclas, das confirmações, das esperas e dos CPFs, para que de lá, das profundezas de Minas, determinem ao homem terceirizado da fibra óptica que passe no meu endereço. Ele não chega; sua Kombi parou entre o Tucuruvi e a Anhaia Melo.

A quem reclamo? À central de tudo, que me conduzirá aos corredores e subdivisões dos que querem novos serviços ou interromper os que já tinham; dos que querem falar sobre a TV, ou o celular, ou o fixo, ou sobre o homem da fibra óptica. Não há um centralismo estatal em tudo isso? Estou na fila de uma espécie de cartório telefônico, vivendo a ilusão da modernidade.

Paro por aqui. Tocaram o interfone, que ainda funciona. Deve ser o homem da fibra óptica; ele está chegando.

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Temporada de caça http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/09/03/temporada-de-caca/ http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/09/03/temporada-de-caca/#comments Wed, 03 Sep 2014 05:00:20 +0000 http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/?p=1308 Continue lendo →]]> Como não podia deixar de ser, está aberta a temporada de críticas a Marina Silva. É saudável. Todo candidato com chances de ganhar a eleição deve passar por esse tipo de obstáculos.

Azar, na verdade, do comentarista que se aventura no debate. Algum tempo atrás, se falava mal do PT, via-se incluído imediatamente na lista do “PIG” (Partido da Imprensa Golpista). No caso de criticar Aécio, seria estigmatizado como “petralha”.

A ascensão da “terceira via” complica o jogo. O crítico que tentava escapar da dicotomia PT-PSDB precisa agora se afastar de Marina também.

Falar mal dos três ao mesmo tempo! Mas que jornalistas incontentáveis! Será que apoiam Levy Fidelix? Seja como for, o momento é de arregaçar as mangas contra Marina. A tentativa acaba produzindo críticas que me parecem forçadas.

Faço muitas ressalvas à candidatura do PSB, mas prefiro deixar isso para mais tarde. Começo com uma injustiça.

O físico Rogério Cezar de Cerqueira Leite, meu colega de Conselho Editorial, escreveu domingo passado que não se sentia confortável em ter como presidente da República “alguém que acredita concretamente que o universo foi criado em sete dias”.

O criacionismo de Marina Silva, diz Cerqueira Leite, “não decorre da ignorância, mas de um defeito de percepção”. “Os especialistas”, prossegue o cientista, “chamam essa condição de desordem do desenvolvimento neural”.

Fico assustado com um diagnóstico tão irrecorrível. Cerqueira Leite fala dos chamados “idiots-savants”. Pelo que sei, são aquelas pessoas com grande deficiência mental mas que, ao mesmo tempo, conseguem por exemplo decorar listas de nomes intermináveis, ou fazer contas dificílimas de cabeça.

Será que a capacidade política e verbal de Marina entraria nesse mesmo tipo de habilidades? E o que seria um “defeito de percepção”?

Se a candidata insistisse em dizer que, na mesa à sua frente, está sentado um tamanduá, quando todos podem ver que só existe um copo de água, eu chamaria isso de desordem neurológica.

Acreditar no relato bíblico do Gênese não me parece um fenômeno equivalente. Não tem nada a ver com uma percepção errada da realidade. Tem a ver com fé religiosa.

Sou o primeiro a considerar essa fé totalmente irracional. Não chego a ser cético, amistoso ou tolerante quanto a isso. Passo a eternidade no inferno, mas continuarei dizendo que a Bíblia está errada, que a ciência terá sempre a última palavra, e que acreditar em Adão, Eva, arca de Noé e tudo o mais não passa de total bobagem.

A questão é outra. O que significa “acreditar”? Milhões de pessoas acreditam em bobagens tremendas, mas levam sua vida de modo tão razoável e sensato quanto o mais austero cientista.

Acreditar, para essas pessoas, é quase uma reverência pessoal à tradição. Exceto em casos de fanatismo delirante, o religioso está pronto a aceitar que dois mais dois são quatro, e que se uma porta está aberta, não está fechada. Só não leva esses princípios ao reino misterioso da religião, onde Deus pode ser uno e trino, ou pode ter corpo de homem e cabeça de elefante ao mesmo tempo.

Aliás, o especialista em física quântica também aceita a realidade da porta e da parede à sua frente, ainda que no mundo subatômico as evidências pareçam contrariar o mais sólido senso comum.

O religioso, se não for maluco, sabe fazer a separação entre o mundo real e o plano de sua fé. Pode haver duplicidade mental nisso, mas não se trata de uma percepção deformada da realidade.

O problema não é cognitivo, mas prático. O religioso se complica quando age mais em função da fé do que do bom senso. Segue, por exemplo, a teoria da indissolubilidade do casamento, mesmo que isso seja fonte de infelicidade para toda a família. Sofrerá culpas inúteis porque sua religião não aceita a homossexualidade.

É esse plano prático, e não o funcionamento cerebral de Marina Silva, que cumpre avaliar. Do ponto de vista subjetivo, ela pode acreditar nas maiores tolices. Mas não é tola como candidata.

Aliás, é uma candidata nada inovadora nesse aspecto. Segue, em suas declarações, o que lhe der mais votos, e especialmente aquilo que não lhe tirar os votos que já tem.

Oscila e enrola tanto quanto os outros; um pouco mais, talvez. Incomoda-me, na verdade, mais sua esperteza do que sua tolice. Mas vejo que, para falar disso, preciso do espaço de outro artigo.

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As barbas de volta http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/08/27/1301/ http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/08/27/1301/#comments Wed, 27 Aug 2014 05:00:17 +0000 http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/?p=1301 Continue lendo →]]> Comecei a reparar no fenômeno durante a Copa do Mundo. Não era apenas o italiano Pirlo (esse usava uma barba aparada, de arquiteto, de economista ou apresentador de TV). Alguns jogadores gregos —ou croatas, não sei bem— mais pareciam seguidores de Bin Laden, tal o comprimento de suas barbas.
Primeiro, tivemos a moda das cabeças raspadas. Seguiu-se, e agora diminui, o capricho de apresentar um penteado diferente a cada jogo —do moicano ao garnizé.

A moda vai deixar saudades, porque ao menos permitia variações divertidas. Não será apenas por motivos religiosos que imensas barbas pretas entram em campo, quase todas iguais.

Não se limita, é claro, aos jogadores de futebol. Talvez signifique a rejeição definitiva da metrossexualidade, já um pouco “out” desde a aposentadoria de Beckham, e mais ainda depois do fracasso de Cristiano Ronaldo.

Um aspecto mais bárbaro, e por enquanto bastante avesso à estética publicitária, ganha força no jovem público masculino.

Razões políticas podem estar presentes. Depois de tanto tempo cultuada, a imagem de Che Guevara sai das paredes.

Passemos, terá dito alguém, da teoria à prática! Dos contestadores com rosto de anjo, dos atletas de brinco e dos skatistas críticos do sistema, transita-se para uma versão mais enfezada e radical.

A volta da barba grande coincide, não sei se por acaso, com o retorno a táticas mais violentas de protesto. Assim como as balaclavas, a barba corresponde ao desejo de dificultar a identificação policial.

Claro que a explicação não se resume a isso. Nos anos 1970, a barba era ao mesmo tempo uma defesa do “mundo natural” —onde não vigorasse a obediência às convenções repressivas da gilete e do sabonete— e uma homenagem aos mestres pensadores do passado: Marx, Darwin, Freud.

Não deixa de ser estranho, aliás, que uma das épocas mais repressivas em termos de sexualidade, como a vitoriana, tenha conhecido tamanha exacerbação da pelagem masculina.

A respeitabilidade do adulto se impunha, talvez, pelo ato de marcar sua completa diferença com relação à criança e ao adolescente. A partir dos 25 ou 30 anos, o homem aparecia com uma barba capaz de fazê-lo parecer um sábio de 60.

Raspar o próprio rosto terá surgido, aí por 1920, como um ato liberador. Barbas cerradas tinham os combatentes nas trincheiras da Grande Guerra —os chamados “poilus”, “peludos”. O rosto glabro talvez correspondesse a uma nova vida, ou à tentativa de recuperar a própria mocidade, violentada no “front”.

Seria, ademais, uma rejeição a tudo o que houvesse de brutal e autoritário naqueles governantes de antigamente: o rei da Inglaterra, o czar da Rússia, o imperador austríaco com suas imensas suíças brancas submergiam no passado, depois que o quase adolescente Gavrilo Princip —um mal esboçado buço no rosto— desferira seus tiros em Sarajevo.

A surpresa, neste centenário da Primeira Guerra, foi ver em alguns lugares a volta de barbas barrocas, enceradas e ostensivas. Recentemente, no aeroporto, vi um rapaz de ares europeus levando avante seu bigode de pontas para cima, no estilo do kaiser Guilherme 2º.

Aqui, nada de contestação de esquerda parece estar em jogo. O estilo é imperial, retrógrado, prussiano.

Alguma saudade do século 19 já se manifesta há tempos. A onda do “steampunk”, por exemplo, associa cartolas, locomotivas a vapor, parafernálias de Júlio Verne a uma música de rock sutilmente cômica.

O Sherlock Holmes de Robert Downey Jr. e “A Invenção de Hugo Cabret” elaboram esse gosto pela tecnologia antiga. É a velha Europa que, mais uma vez, estrebucha, cem anos depois da Primeira Guerra.

Mas é também o Velho Testamento que renasce. Com barba bíblica e manto de rabino, Edir Macedo inaugura seu Templo de Salomão num estilo que não é mais o de quem deseja identificar-se com o empresariado moderno.

Não se trata propriamente de um figurino reacionário. É o fundamentalismo, em inúmeras versões, o que vai sendo apropriado pela moda destes dias. Guevara, Moisés, Darwin, Guilherme 2º renascem na exaustão da modernidade “clean”.

Na culinária, depois de longa ausência, molhos espessos substituem a limpeza minimalista da “nouvelle cuisine”. Com os molhos, vêm as barbas. Não é a combinação mais inteligente, em termos de modos e de higiene à mesa —mas eis um sinal, sem dúvida, de que a racionalidade está mesmo saindo de moda.

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Mulheres http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/08/20/mulheres/ http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/08/20/mulheres/#comments Wed, 20 Aug 2014 05:00:45 +0000 http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/?p=1295 Continue lendo →]]> A viúva de Eduardo Campos, Renata, recebeu condolências do senador petista Lindbergh Farias, candidato ao governo do Rio de Janeiro. Diz a Folha que ela vestia uma blusa com estampa floral —e que respondeu a Lindbergh sem chorar.

“Esse negócio de tristeza, aqui, não combina”, afirmou. “Aqui é força, alegria e coragem.” Tem sido esta, segundo se informa, a atitude de Renata Campos ao longo destes dias.

Na Flip deste ano, assisti a uma mesa sobre os 50 anos do golpe militar, da qual participava Marcelo Rubens Paiva. Ele começou lendo um artigo de Antônio Callado sobre sua mãe, Eunice.

O autor de “Quarup” lembrava ter encontrado Eunice em Búzios, nadando de biquíni, bronzeada e magra. O marido dela, Rubens Paiva, estava preso. O ano era 1971.

Eunice estava animada, depois de ter passado ela própria um tempo na prisão. Recebera informações de que Rubens Paiva estava bem e seria libertado nos dias seguintes. Não era verdade. Àquela altura, seu marido já estava morto, não tendo resistido às sessões de tortura no DOI-Codi.

Marcelo Rubens Paiva leu o artigo de Callado com muita dificuldade, parando para chorar; solidária, a plateia o aplaudia longamente. Ele pediu desculpas, mencionando o fato de estar agora com um filho de poucos meses —o que mudava a sua perspectiva diante da tragédia.

Pediu desculpas, também, porque sua mãe fizera recomendações enfáticas a toda a família. Ela e os filhos nunca seriam fotografados com lágrimas nos olhos.

Sorrir sempre e demonstrar força pessoal seriam a melhor resposta, dizia Eunice, aos assassinos de Rubens Paiva. “Nossa família não será fraca, e não será vencida.”

Marcelo deu um sorriso de autoironia, como a dizer “e olhem para mim agora, chorando…”, mas continuou sua participação no debate, com a notável informalidade que o caracteriza.

Não apenas Rubens Paiva estava longe de ser um “comunista”, como a direita gostava e ainda gosta de dizer, mas sua mãe não passava de uma “dondoca”. Jogava vôlei na praia com a Marieta Severo, conta o filho. Depois do assassinato, Eunice pôs-se a pedir informações, a procurar o corpo do marido. Envolveu-se com a causa indígena e, naturalmente, com a luta pela redemocratização.

Marcelo tirou desse relato a conclusão surpreendente. “Não foi meu pai quem lutou contra a ditadura”, disse ele.

Pelo menos a seus próprios olhos, os de um menino que estava com onze anos na época do desaparecimento do pai, quem lutara de fato tinha sido a sua mãe.

O que impressiona, no caso de Eunice ou de Renata, viúva de Eduardo Campos, é essa disposição para falar de alegria —ou, ao menos, para não chorar.

Talvez se tenha tornado mais comum entre as mulheres uma atitude que, em tempos antigos, correspondia apenas a outro sexo.

Refiro-me à ideia de “homem não chora”. Ao contrário, hoje cai bem certa sentimentalidade no sexo masculino. Cai melhor ainda, entretanto, a capacidade de uma mulher para o enfrentamento e a resistência.

O clichê da “viúva inconsolável” vai sendo esquecido. Que o diga, aliás, a própria Marina Silva. Tomou para si o legado e as lutas de Chico Mendes, líder ambientalista assassinado em 1988; agora, sem ser exatamente uma “viúva” política de Eduardo Campos, vem a substituí-lo com a própria força renovada pelo imprevisto histórico.

Cabe falar ainda de outra mulher, a própria Dilma Rousseff. Goste-se ou não de seu governo e de sua pessoa, uma circunstância merece ser colocada, no meu modo de ver, acima de qualquer outra.

Refiro-me ao fato, que por diversos motivos não se explora nem se menciona suficientemente no confronto político, de ela ter sido torturada durante o regime militar. Sempre penso que, se isso tivesse acontecido comigo, eu seria incapaz de superar a experiência.

Eis que vemos Dilma priorizar, contudo, sua estratégia política, e os projetos de seu partido, sem tomar em termos pessoais o entusiasmo com que muitos de seus aliados (especialmente o ministro Edison Lobão) defenderam o que havia de pior na ditadura.

Força pessoal das mulheres, sem dúvida; força da política, também. Não conhecemos melhor forma de superar uma perda do que pensar no futuro, tentando submetê-lo ao nosso poder. Candidatos, por definição, dedicam-se a coisas desse tipo.

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O recado de Neymar http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/07/09/o-recado-de-neymar/ http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/07/09/o-recado-de-neymar/#comments Wed, 09 Jul 2014 05:00:56 +0000 http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/?p=1281 Continue lendo →]]> Disfarçando a tristeza com um sorriso simpático e hesitante, Neymar transmitiu num vídeo de pouco mais de um minuto sua mensagem à torcida, à comissão técnica e aos jogadores da seleção.

Foi um dos momentos mais tocantes desta Copa, e talvez diga um bocado sobre o nosso país.

Neymar começou se dirigindo, para usar suas palavras, à “rapaziada brasileira”. Soava um pouco antiquado, mas a escolha do termo tinha sua razão de ser.

Com a camiseta preta e o boné de pala virada para trás, Neymar correspondia mais uma vez ao visual adolescente que o caracteriza. Talvez tenha falado em “rapaziada” —incluindo nisso Felipão e outras autoridades—de modo a que todos, de alguma maneira, se igualassem no seu estado juvenil, o de quem sabe que há sempre um longo futuro pela frente.

Ao mesmo tempo, era um modo de se apresentar como alguém mais velho, mais maduro do que o público a que se dirigia. Sua tristeza não poderia tomar as cores de uma frustração infantil; era um adulto, afinal, quem se rendia à evidência médica e aos imprevistos do futebol.

Daí em diante, as palavras de Neymar se encaminharam para um terreno bastante íntimo, pessoal, personalista até.

“Só queria dizer”, começou ele, “que eu vou voltar o mais rápido possível, quando menos se esperar eu estou de volta…”

Agradeceu, naturalmente, as manifestações de carinho recebidas.

Em seguida, tomando fôlego, fez a declaração mais enfática: “O meu sonho ainda não acabou. Foi interrompido por uma jogada, mas ele continua. Tenho certeza que meus companheiros vão fazer de tudo para que eu possa realizar o meu sonho…”

Talvez seja exagero de minha parte, mas não imagino com facilidade um alemão, um francês, com esse tipo de discurso. O mais comum seria o craque estrangeiro minimizar o aspecto pessoal do problema, e partir logo para a conclamação patriótica.

Algo como “venceremos”, “a Pátria será mais forte”, “vive la France”, “Deutschland über alles”.

Mesmo num instante difícil como esse, é como se nossa cultura rejeitasse a mobilização ultranacionalista, a ordem unida de marchar avante. Neymar falou, sobretudo, de si mesmo —e, na hora de se referir à seleção, confiou na possibilidade de que esta realizasse o “seu” sonho.

Longe de mim querer fazer uma crítica ao que ele disse. Ao contrário, ele foi absolutamente natural e sincero. Sabia de sua importância para a seleção, e ao longo de toda uma carreira marcada pelo talento excepcional, seria muito hipócrita se dissesse que o coletivo é mais importante do que o indivíduo.

Para bem ou para mal, tendemos a concordar com ele. O Brasil não teria tantos craques de fama internacional (e tão poucos técnicos importantes atuando na Europa) se não fosse, antes de tudo, um país que confia menos na organização do conjunto do que na inspiração do momento.

Não entendo nada de futebol, mas desconfio que o grande desafio de quem dirige um time brasileiro é o de arrumar uma tática na qual os jogadores possam sobressair individualmente. As tentativas de submeter os craques a um esquema rigoroso provavelmente não são as que dão certo.

Há também, naturalmente, o fato de Neymar ser muito paparicado pela publicidade e pela imprensa. Isso fortalece o destaque dado, na mensagem, à sua própria pessoa. No início de sua trajetória, ele teve mesmo a fase “monstro”, em que algumas declarações arrogantes chegaram a assustar os que primeiro confiaram em seu talento.

Foi admirável, entretanto, a rapidez com que superou aquela fase. Paparicado ou não, Neymar estava jogando com muita garra nesta Copa, corria para baixo e para cima do campo, mostrava estar mais disposto do que qualquer um a ganhar o jogo.

Pode ser implicância minha, mas nada me irritava mais do que a atitude de outro grande craque, Ronaldinho Gaúcho, que costumava sorrir sempre que perdia um gol. Embaraço, vergonha, talvez. Mas, para mim, muitos craques internacionais pareciam descomprometidos quando vestiam a camisa da seleção brasileira.

Neymar, não. Era como se tivesse vestido a sua camisa, e a dos outros dez jogadores também. Lutou como se fosse o Brasil inteiro, embora sabendo que era único.

Imitando a famosa frase de Brecht, caberia dizer que é infeliz o povo que precisa de craques. Ou não?

Talvez seja precisamente uma coisa boa do Brasil, a de que o personalismo das relações, o improviso e a falta de rigor militar nos seus esquemas possam de quando em quando se transformar em garra, em vontade de vencer, em realizar um sonho coletivo, muitas vezes adiado.

P.S.: Férias. Volto dia 20 de agosto.

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Um fordeco em 1970 http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/07/02/um-fordeco-em-1970/ http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/07/02/um-fordeco-em-1970/#comments Wed, 02 Jul 2014 05:00:28 +0000 http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/?p=1279 Continue lendo →]]> Sem pensar no que estava fazendo, uma amiga da família vestiu uma saia verde e uma blusa amarela e saiu para trabalhar. Estávamos em 1970, plena Copa do Mundo.

Sua roupa causou comoção. Pessoas buzinavam enquanto ela andava na Paulista. Gritos, acenos e manifestações eufóricas fizeram com que ela passasse a maior vergonha de sua vida.

Hoje em dia, claro, nada haveria de anormal em usar as cores do Brasil. Anormal, de fato, seria pensar que em alguma época isso era diferente.

É que a memória engana muito. As surpresas seriam imensas se uma máquina do tempo nos levasse para 40 anos atrás.

Eu mesmo custo a acreditar, mas tenho certeza do que vi, numa aula de inglês em 1967 ou 1968. A classe reunia crianças e pré-adolescentes; seria algo como um curso “kids”, mas a palavra não se utilizava na época. Era o “Juvenil 2”, ou coisa parecida.

Em pleno Itaim, na rua das Fiandeiras, o quintal da escola se desfazia, sem muros, num matagal; não muito longe, na neblina da manhã, via-se um riacho limpo e luminoso como uma pintura.

Sonho ainda com isso. Pode ser que tenha imaginado a cena —a memória da infância, como se sabe, veste-se de algumas fantasias.

Mas não foi fantasia a entrada de uma menina, mais velha do que eu, bastante feiosa e meio gorducha, naquela sala matinal do Juvenil 2.

Um murmúrio correu pela classe. De calça jeans, ou melhor, rancheira, e com um casaco azul, que aliás era uma japona, ela não usava nada que chamasse a atenção.

Exceto pelo detalhe escandaloso: estava de tênis! Ou melhor, de Keds! Ou, melhor ainda, como dizia minha mãe: de chancas! Preto, cano alto, o horroroso Bamba progredia pela sala até a carteira da menina, que se sentou sorrindo, mas incomodada, à espera da aula e do futuro.

Três ou quatro anos depois, o futuro ainda não tinha chegado plenamente. Estávamos esperando as mães (raro o pai que aparecesse) na porta do colégio, em 1971 ou 1972, quando novo ato revolucionário se deu.

Quieta, dentro do carro, a mãe de um colega produzia o mesmo espanto da menina do inglês. Também ela usava tênis! Parece que jogava vôlei num clube ali perto. Mesmo assim, era inédito.

Tentando manter a discrição, todos passavam perto do carro estacionado para ver a motorista calçada como um menino. O mundo estava perdido.

Logo as mulheres passariam a jogar futebol, a televisão deixaria de ser um objeto feio demais para ficar na sala, e na casa dos colegas conheci um novo item do mobiliário. Tinha o nome estranhíssimo de “caixa de som”.

Poderia continuar nas reminiscências, mas o importante está em outro lugar. Dizem que nossa memória é seletiva, no sentido que esquecemos os fatos de que não queremos nos lembrar.

Mas a memória não é só seletiva desse modo. Ao contrário do que parece, o presente lança a sua sombra sobre o passado. Mudanças graduais nos costumes vão sendo absorvidas; tornam-se tão dadas, tão óbvias, que quando evocamos o passado colocamos em cena detalhes impossíveis de estar ali.

Um encanador italiano, muito velhinho, veio consertar alguma coisa em casa no exato dia em que a seleção de Pelé e Jairzinho marcava 4 a 1 contra a “Azzurra”. Para piorar as coisas (já disse que ele era bem velhinho), seu carro era um fordeco de 1930, verdadeiro calhambeque.

Não sei por que, minha mãe e eu pegamos uma carona no carro do encanador, que subiu alegre e irresponsavelmente uma rua que dava na Paulista. Ninguém atinava com o que estava acontecendo.

“É uma passeata!”, exclamou minha mãe, ainda presa às memórias de 68 ou 64. Claro que não; eram as comemorações do tri. A população paulistana, efusiva como tinha sido no caso da amiga de verde e amarelo, celebrou a passagem do calhambeque. Alguns montaram no estribo.

O encanador —chamava-se Olímpio— pediu delicadamente que o deixassem passar. “Per favore, eu voleva atravessare questa via, estavo com pressa…” O rosto de um torcedor desfigurou-se.

“O cara é italiano!” Minha mãe, cujo senso de humor era por vezes inadequado, resolveu responder: “no, io sono brasiliana…!” Quase viraram o calhambeque de cabeça para baixo.

Nada aconteceu, por sorte; o Ford seguiu adiante, atravessou a Paulista e desceu por uma ladeira interminável, até mergulhar no riacho prateado e nebuloso do tempo.

 

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As previsões dos outros http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/06/25/as-previsoes-dos-outros/ http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/06/25/as-previsoes-dos-outros/#comments Wed, 25 Jun 2014 05:00:17 +0000 http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/?p=1276 Continue lendo →]]> No mercado financeiro, disse o jornal “Valor” desta segunda-feira (23), também correm apostas sobre a Copa do Mundo.

A consultoria KPMG, por exemplo, desenvolveu um modelo que dava à Espanha 19% de chances de ganhar o campeonato, quase ao lado do Brasil, com 21%.

O modelo matemático do Lloyd’s, empresa britânica que é craque no campo dos seguros, teve desempenho pior: confiava numa final entre Espanha e Alemanha.

Feito o balanço desta fase do Mundial, quem se mostra mais confiável é a velha e boa Goldman Sachs, dando 48,5% de chances ao Brasil, com Argentina e Alemanha bem atrás.

Seria injusto tripudiar sobre tais erros: pouca gente imaginava o total fiasco dos espanhóis.

Os modelos não foram construídos aleatoriamente. Como toda previsão, partem dos dados do passado. Uma vez que, nos últimos meses ou anos, a Espanha andava jogando bem, o razoável era supor que continuaria indo bem durante a Copa.

O razoável se torna absurdo, entretanto, se pensarmos nos raciocínios em que se fundamenta. A saber: quem vai bem sempre irá bem, o passado é prolongável no futuro, e nenhuma novidade jamais acontecerá.

O futuro, em suma, reproduzirá o passado; eis um belo conservadorismo, embora alguns possam chamá-lo de lições da experiência humana.

Exagero um pouco ao dizer isso. Claro que, se os economistas pensassem desse modo, eles não estariam apostando apenas na Copa de 2014, mas também na de 2026.

Além disso, eles não levam em conta só o desempenho recente das seleções. Consideram que o fato de ser sede da Copa aumenta as chances do Brasil, por exemplo —com o que concordo plenamente.

Outro fator seria a “tradição” dos competidores —o que também é razoável, na medida em que desacredita de uma final entre Coreia e Irã. Mas o que isso significa? Apenas que a previsão funciona se não houver nenhuma surpresa.

Haveria dois modos, acho, de melhorar os palpites desse tipo. O primeiro seria incluir no modelo outras variáveis, como a idade dos jogadores, o desempenho do técnico e assim por diante, até o computador aguentar.

Uma segunda forma de aperfeiçoar o sistema seria usá-lo apenas como ponto de partida. Identificados os favoritos, digamos Brasil e Espanha, caberia analisar em profundidade suas condições reais de jogo.

A isso se dedicam, naturalmente, os especialistas em futebol, menos confiantes no poder da estatística. Talvez se saiam ainda pior do que os economistas, entretanto.

Quanto às minhas próprias previsões, começo com a mais errada de todas. Previ que estaria longe do Brasil nesta Copa do Mundo; que não suportaria o oba-oba, a patriotada, a manipulação obscena dos sentimentos nacionais.

Cá estou, acompanhando não só os jogos do Brasil, mas de seus eventuais adversários. Digo em meu favor que, primeiro, o oba-oba tem sido muito menor do que das outras vezes. O bombardeio da “corrente pra frente” foi mitigado pelo movimento do “não vai ter Copa”, e entre os dois extremos chegamos a uma atitude aceitável de torcida com algum realismo.

Em segundo lugar, eu não queria saber de Copa do Mundo porque, desde a derrota por pênaltis do Brasil em 1986, irritava-me o misto de displicência e imaturidade de tantos jogadores brasileiros —mais interessados, a meu ver, em farras e Ferraris do que nas cores nacionais.

Eis que Neymar, justamente a estrela mais mimada da seleção, luta com todas as forças para dar o campeonato ao Brasil; os outros jogadores, com brilho variável, mostram garra equivalente.

De modo geral, os jogos estão muito mais emocionantes do que nas outras Copas, a média de gols tem sido alta, minha velha sensação de estar sendo iludido desaparece.

Meu método de prever o resultado dos jogos tem sido o mais aleatório possível. Acertei, pelo jeitão da coisa, o empate entre Brasil e México. Acertei Bélgica um, Rússia zero, com base na teoria de que a Bélgica é pequena demais para ir além de um gol.

Imaginei qual a melhor final, num sistema de cartas marcadas, para garantir uma vitória brasileira. Pois, convenhamos, o Brasil vai ter de ganhar de qualquer jeito.

Apostei então em Portugal —nada mais simbólico e estético do que isso, além de trazer pouco perigo a nosso país, com um embate entre Neymar e Cristiano Ronaldo para melhorar as coisas. Brasil e Portugal? Vê-se que não tenho muita moral para zombar do Lloyd’s e dos economistas do mercado financeiro.

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Tempo de viradas http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/06/18/tempo-de-viradas/ http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/06/18/tempo-de-viradas/#comments Wed, 18 Jun 2014 05:00:23 +0000 http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/?p=1274 Continue lendo →]]> Acompanho pouco o futebol, mas pelo que me lembro a seleção brasileira tinha uma coisa bem irritante alguns anos atrás.

Ficava enrolando, enrolando, sem conseguir marcar nenhum gol quase até o final do primeiro tempo. Claro que acabava dando chance para o adversário. Perdendo de um a zero, o Brasil se descontrolava; já não sabia mais o que fazer em campo.

Talvez se sentisse tão predestinado à vitória que nem se preocupava em atacar. Levando um gol, caía na realidade. Mas a realidade não surgia como algo a ser enfrentado; tratava-se de um labirinto, uma armação, um pesadelo. Tudo corria como se a realidade fosse uma coisa irreal.

Escrevo sem saber o resultado do jogo Brasil e México. Mas nesta Copa do Mundo o comportamento geral (não só dos brasileiros) parece bem diverso. Está predominando o espírito da “virada”: depois de um gol contra, a seleção venceu a Croácia.

De virada, a Costa Rica superou o Uruguai, a Suíça fez o mesmo contra o Equador, e a Costa do Marfim, o Japão. Os jogos melhoram muito.

Fora dos campos de futebol, talvez esteja acontecendo algo parecido. Veja-se a “virada” produzida nos meios de comunicação depois dos xingamentos a Dilma Rousseff.

Os candidatos de oposição enxergaram, inicialmente, uma oportunidade para se dizer afinados com o “sentimento popular”. Nas redes sociais, entretanto, o jogo virou com rapidez. Tornou-se reprovável, quase hediondo, xingar a presidente. Aécio e Eduardo Campos recuaram.

Coisa semelhante ocorreu durante as manifestações de junho. O jogo das opiniões foi movimentadíssimo. No começo, tudo se inscrevia na rotina dos pequenos protestos que causam grande congestionamento. A truculência da PM foi o gol contra que virou a partida em favor dos manifestantes. A radicalização dos black blocs decidiu o jogo.

Boa parte dessa velocidade se deve às redes sociais. Acelera-se o fluxo das opiniões “públicas” —no sentido de que não se confinam a um grupo de ouvintes a quem conhecemos pessoalmente, mas se espalham para indivíduos que nunca vimos na vida.

Não é impossível que, com isso, os habitantes do velho universo público —comentaristas de TV, articulistas de jornal, candidatos a cargos eletivos— sejam pegos no contrapé.

O caso de Arnaldo Jabor, em junho passado, foi o mais notório: começou chamando os manifestantes de playboys, burguesinhos ou coisa parecida, e teve de voltar atrás.

Não é que não tenha direito a mudar de ideia; os próprios fatos, aliás, mudavam de figura. O problema, para continuarmos no mundo futebolístico, é que quando o ataque desembesta tudo fica muito atrapalhado na hora de recuar.

Ao mesmo tempo, a multiplicação dos “opinadores” nas redes sociais impõe uma concorrência brutal. Como todos competem pela atenção, pode sair ganhando quem fala mais alto. Os comentários crescem em extremismo e estridência.

Há o risco de ter de recuar mais tarde. Não chega a ser dos mais sérios, porque, como há muita velocidade e quantidade de opiniões, ninguém se lembra direito nem do que leu nem do que escreveu.

Mas aí ocorre outro paradoxo. Como a internet funciona por ondas, um velho boato ou uma antiquíssima besteira renascem, meses depois de terem sido arquivadas. A mentira pode ter pernas curtas, mas volta sempre.
Há ao mesmo tempo uma hipertrofia da memória —tudo pode ser lembrado— e uma atrofia da memória, porque tudo será esquecido. Na política, Fulano denuncia um caso de corrupção, que equivale ao outro em que ele próprio estava envolvido.

Claro que isso sempre aconteceu no Brasil, mas a internet contribui como nunca para eliminar as distâncias de espaço e tempo.

Parecem paquidérmicos, em contraste, os esforços dos marqueteiros tradicionais para construir as campanhas de seus candidatos na propaganda do rádio e da TV. O “micromarketing” de twitters e postagens talvez não seja capaz de alterar as grandes tendências do eleitorado neste ano, mas não deve ser desprezado.

Uma última metáfora esportiva: como num jogo de basquete, os minutos finais contam mais que o jogo inteiro. A política vai ficando instantânea —e me arrisco a dizer que o futebol também. Todos correm muito, o gol contra de cinco minutos atrás já foi esquecido, e cada jogo parece constituir-se de noventa minutos de uma decisão por pênaltis. Só não sei se nas eleições há tantos craques assim.

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