Marcelo CoelhoEm cartaz – Marcelo Coelho http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br Cultura e crítica Tue, 18 Aug 2015 12:23:18 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Corpos em desalinho http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/03/26/corpos-em-desalinho/ http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/03/26/corpos-em-desalinho/#comments Wed, 26 Mar 2014 06:02:41 +0000 http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/?p=1237 Continue lendo →]]> Quem visitar o Instituto Tomie Ohtake até o dia 30 de março pode experimentar um bom susto. Digo melhor: um susto bom.

Basta entrar numa sala muito escura, no fundo de alguns corredores nada iluminados, tomada por uma espécie de som eletrônico, um bordão grave como o de um transformador elétrico sobrecarregado.

Calma. Nenhum monstro ou grito súbito pega de surpresa o espectador. O susto é bom: não estamos dentro de nenhum parque temático de Halloween. Uma parede inteira está ocupada por grandes fotos de corpos nus, iluminadas como na tela do computador mais nítido.

Cada imagem mostra, juntos ou distantes, os corpos de um homem e de uma mulher. Serão, talvez, uma dúzia de retratos diferentes, mas todos com o mesmo tipo de ângulo e de luz. Vemos, na verdade, detalhes de corpos: pés, canelas, panturrilhas, captados bem de perto e um pouco distorcidos.

O olhar passa de foto em foto, identificando aos poucos a diferença e a semelhança entre cada uma delas. Aí acontece o susto. O rabo do olho percebe, sem que o cérebro se dê conta inteiramente, que algo mudou naquela parede.

Uma foto (não a que estávamos olhando) começou a se mexer. Procuramos, na parede, qual foi a imagem que deu início ao movimento; mas enquanto isso outras já se mexeram também, caindo como um dominó lentíssimo de corpos até chegar nos retratos ao rés do chão. Tudo, em seguida, imobiliza-se de novo.

Susto bom, porque um movimento de arranjo e desarranjo apareceu do nada, sem aviso, conforme um comando invisível do computador. O espectador se pergunta o que está acontecendo, nada lhe explicam, e só depois de terminado o movimento é possível perceber que todo o ambiente —a escuridão, o som eletrônico— construía um suspense que, curiosamente, não punha nossos nervos em estado de tensão.

“Only You”, mostra-instalação com fotos de Leonardo Kossoy, apresenta nessa sala uma espécie de balé fotográfico. O encantamento visual dessas imagens ritmadas não precisa de palavras para ser fruído.

Mas a sala do painel computadorizado corresponde ao ponto culminante de uma história que começou a ser contada bem antes na exposição. Para fazer as fotografias de “Only You”, Leonardo Kossoy convidou um ator e uma atriz, nenhum dos dois especialmente notável pela beleza corporal.

Com exceção das cenas iniciais, que parecem tiradas de algum filme dos anos 1950 em technicolor, com o homem e a mulher se desentendendo e se entediando numa luxuosa mesa de jantar, todas as outras fotografias mostram o casal sem roupa nenhuma.

A exposição assume um caráter de “tema e variações”: a nudez do casal pode surgir emaciada e azul, como num quadro de El Greco. Outras vezes, um negror de Goya ameaça engolir os dois. Uma parede inteira é ocupada por suas figuras miniaturizadas, quase redondinhas, reluzindo como o ouro de Rembrandt contra camadas de púrpura e ferrugem.

Juntos ou separados, os dois atores nunca se comunicam. Podem espremer-se, encaixotados num espaço mínimo: não tomam conhecimento um do outro. Podem estar lado a lado, cada qual empurrando como Sísifo as pedras invisíveis de seu próprio cotidiano, de suas próprias neuroses: os olhares não se cruzam.

Podem mover-se, em cenas filmadas; podem ter sido captados em plena dança, com o cabelo e as mãos indistintas como numa névoa; seus gestos não convergem, sequer expressam intenções de fuga ou de separação. Numa absoluta igualdade de condições, no puro despojamento de seus corpos humanos, estão apenas lado a lado. Quanto mais nus, menos são capazes de se ver.

A sequência das salas se apresenta ao espectador quase como um romance, em que a vida de um casal prossegue às cegas, num clima que não é o do conflito, o do desentendimento, mas o da coexistência num labirinto sem paredes, em que ninguém se encontra.

Nem tudo está perdido, entretanto. Nas últimas imagens de “Only You”, a nudez desaparece, os corpos do homem e da mulher mal se percebem. Cobre-os uma nata branca, uma pátina cremosa de tecido, uma nuvem de lençóis hialinos. Adivinhamos, mais do que vemos, dois rostos que pela primeira vez parecem felizes.

Num poema célebre, Manuel Bandeira disse que “os corpos se entendem”, mas que “as almas, não”. Sem dúvida, os últimos tempos depositaram um excesso de energias e de esperanças na apresentação do corpo. A valorização da nudez representa uma aposta correta, mas custosa, numa vida mais natural, menos reprimida, mais exposta aos outros.

Leonardo Kossoy parece enfatizar o oposto disso tudo. Na nudez de seus personagens, prevalece a incomunicação, o peso do convencionalismo, das prisões de cada um. A intimidade se recupera, todavia, quando constrói o espaço incorpóreo da escuridão, do recolhimento e do silêncio.

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Mocinhos e bandidos http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/03/19/mocinhos-e-bandidos/ http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/03/19/mocinhos-e-bandidos/#comments Wed, 19 Mar 2014 06:02:54 +0000 http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/?p=1235 Continue lendo →]]> “Alemão”, de José Eduardo Belmonte, é um filme que merece ser visto e revisto. Fiquei com uma impressão errada da história quando vi o trailer: dava-se tanto destaque à presença de Antonio Fagundes no elenco (como o delegado que organizava a célebre ocupação do complexo de favelas carioca), que o compromisso em retratar o “mundo real” saía um pouco prejudicado.

O problema volta e meia acontece quando se recorre a atores muito famosos da televisão. Por melhores que sejam, fica esquisito quando encarnam personagens reais. Lembro-me de um filme sobre Canudos, em que Antônio Conselheiro era ninguém menos do que José Wilker.

Arranjaram uma barba preta para ele, que parecia feita com um escovão de piaçava. Podia ser o Antônio Conselheiro mais perfeito do mundo, mas como espectador eu não conseguia deixar de perguntar: “Mas o que é que o José Wilker está fazendo de batina e barba postiça?”.

De todo modo, Antonio Fagundes nem aparece tanto assim no filme. Numa notável mistura entre realidade e ficção, o roteiro situa o delegado procurando controlar, da distância do gabinete, uma investida perigosíssima contra Playboy, o chefe do tráfico da favela, vivido por Cauã Reymond.

Enquanto isso, cinco policiais infiltrados na favela têm de sobreviver escondidos, por longos dias, até o momento em que o Exército finalmente possa invadir o império de Playboy. O tráfico já conhece a identidade desses informantes; todos os recursos são utilizados para expulsá-los do esconderijo. Já nessa situação se pode ver muito da arte do roteirista.

Em vez de mostrar o traficante cercado pela polícia, “Alemão” mostra os policiais cercados pelos traficantes. A salvação só pode vir “do céu”, o que se representa pelo ruído dos helicópteros sobrevoando o morro.

Playboy aparece quase sempre ao ar livre, tomando banho de piscina no terraço de seu “apartamento de cobertura” em pleno coração da favela. As pesadas correntes de ouro que —como seus comparsas— carrega consigo simbolizam ao mesmo tempo os seus hábitos de ostentação e o fato de estar “com a corda no pescoço”, como se diz.

Outra corrente de ouro —essa bem modesta e fininha— passará das mãos de um jovem policial para outros personagens, em momentos de grande impacto emocional da história. Mas o núcleo dramático do filme está nos conflitos, nas diferenças extremas de personalidade, nas alternâncias de medo e inatividade que marcam o convívio dos policiais escondidos.

Tem-se tudo, aqui, para fazer um excelente filme com baixo orçamento, misturando suspense e drama psicológico. “Alemão” atinge esse objetivo com pulso e velocidade.

Em vez de considerar os policiais em bloco, o roteiro acaba distinguindo tipos sociais e psicológicos muito distintos. Cada um desconfia dos outros: quem terá denunciado sua identidade ao tráfico?

Um dos informantes é garoto mestiço da própria favela. Como não pensar que foi ele quem se aliou, no sufoco, ao tráfico? O outro é gorducho, medroso e dissimulado. Um terceiro é inexperiente, imbuído de ideais e cultura universitária. O quarto é um “tira” da velha guarda, capaz de bater e fuzilar sem hesitação. O quinto, mais sedutor, aposta em táticas de longo prazo.

O problema é que, numa situação dessas, cada um desses estilos pode se revelar o mais adequado num determinado momento, e um desastre total minutos depois. “Alemão” joga magistralmente com essa ambiguidade.

Há uma ambiguidade maior cercando o filme, entretanto, que talvez seja mais difícil de resolver.

Pouca gente há de discordar que as UPPs foram uma coisa muito boa. “Alemão”, assim como o belíssimo documentário “Morro dos Prazeres”, de Maria Augusta Ramos, não tem como não deixar de mostrar o quanto de necessário, de correto e de heroico foi feito para tirar as comunidades do domínio do tráfico e das milícias.

Fazer um filme “a favor”, entretanto, nunca é fácil. O caso Amarildo surgiu exatamente na época em que “Morro dos Prazeres” era lançado em São Paulo. “Alemão” termina com um discurso de Lula, anunciando a vitória sobre o tráfico na favela. O filme já devia estar pronto quando ocorreram as manifestações de junho e os episódios de violência policial que as acompanharam. Cuidou-se, assim, de acrescentar cenas da repressão enquanto passam os créditos do filme.

Hoje, a maré da opinião pública já virou novamente. Os black blocs atraem a antipatia que, meses atrás, se voltava contra os excessos da PM e as insensibilidades de Sérgio Cabral. O tráfico volta a atacar no Complexo do Alemão.

Esses filmes são muito bons. Mas a realidade que retratam certamente tem a forma de um seriado —que está longe de ter chegado à sua última temporada.

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Duas felicidades http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/03/12/duas-felicidades/ http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/03/12/duas-felicidades/#comments Wed, 12 Mar 2014 05:00:32 +0000 http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/?p=1222 Continue lendo →]]> De Santos Dumont, o normal seria ver fotos num aeroplano, ou sentado à mesa de trabalho. Mas nunca tinha visto imagens do pai da aviação… dirigindo um carro de corrida, ou —pior ainda— praticando equitação num dos parques mais chiques de Paris.

As duas fotografias aparecem numa exposição do Instituto Moreira Salles, dedicada a Jacques Henri Lartigue (1894-1986). Chama-se “A Vida em Movimento”, e não por acaso Santos Dumont surge como um personagem fugaz nas incontáveis fotografias que Lartigue tirou ao longo de sua vida quase centenária.

Os primeiros aviões, os primeiros carros de corrida, os campeonatos de balonismo, muitas festividades do turfe, jogos de tênis e tombos de bicicleta fazem parte do cotidiano encantado desse filho da alta burguesia francesa.

O pai, engenheiro e diretor da Companhia Franco-Argelina de Estradas de Ferro, era ele próprio entusiasta do automobilismo. Deu a Lartigue sua primeira câmera fotográfica em 1902, quando o menino tinha oito anos.

O culto da velocidade, dos aviões e dos esportes é bem típico, como se sabe, da estética modernista —em especial antes da Primeira Guerra, momento em que se percebeu o potencial assassino de tantas invenções técnicas.

Apesar de sentir a perda de vários amigos no morticínio de 1914-1918, Lartigue não parece guardar, em suas fotografias, nenhum vestígio das grandes tragédias do seu século.

A Segunda Guerra o encontra na Côte d’Azur, clicando os grandes hotéis brancos entre palmeiras, assentados nas praias de cascalho. No castelo da família, todos organizam palhaçadas na piscina.

Futilidades, sem dúvida. Um dia, Lartigue passou uma boa meia hora tentando fazer seu gatinho dar o salto justo para ser fotografado em pleno voo. Pendurou uma bola de papel na linha de uma vara de pesca, de modo a atrair o bichano.

A foto, de 1918, associa-se na exposição à grande quantidade de pessoas também surpreendidas em pleno ar. Num grupo que joga bola na praia, alguém se estica para realizar uma defesa acrobática; um primo gordo se imobiliza no papel de prata logo depois de largar o trampolim; mulheres adultas brincam de pula-sela.

Na foto que com justiça foi escolhida para o cartaz da exposição, um menino sorridente e descabelado, fora de foco devido à rapidez do movimento, se arremessa sobre um grande castelo de areia, rodeado de um daqueles fossos com que se espera manter domada a água do mar.

A praia, como tantas do litoral europeu, é longa, triste, chuvosa. O menino se destaca contra a água prateada e calma, num lampejo escuro de ideograma japonês.

Traduzir o ideograma não é difícil: para Lartigue, é a felicidade. Vale a pena prestar atenção, contudo, na parte inferior de cada foto. Ou temos uma areia úmida, quase negra, que só de olhar nos enregela, ou se trata da água da piscina, onde todos se divertem sem sentir o quanto é espessa, sombria e sem fundo.

Eram piscinas antes de se descobrir, creio, o uso do cloro. Não há nada de californiano, de solar, de leve nesses verões franceses.

Os personagens de Lartigue estão sempre sobrevoando a realidade —mas ele deixa pressentir que esse voo é curtíssimo, dura apenas o tempo de um clique fotográfico, e faz parte do programa, logo em seguida, estatelar-se no chão.

Bem diversas, sem dúvida, são as imagens de felicidade feitas por Cartier-Bresson (1908-2004). Penso nas fotos que ele tirou celebrando, nos anos 1930, a recente conquista das férias coletivas para os trabalhadores, no breve governo de esquerda da Frente Popular.

Não há sensação de fugacidade ali; o inigualável senso de Cartier-Bresson para a composição espacial parece acomodar grupos de pessoas, objetos, paisagem e gestos num equilíbrio sem fim.

Sabemos que as harmonias de Cartier-Bresson também foram resultado do acaso; são precárias, irão desfazer-se logo depois de tirada a foto. Lartigue não parece pensar, entretanto, em simetria: tudo é uma sucessão de instantes, a reencenar sempre —mas nenhum será abençoado pela perfeição.

Duas ideias de felicidade, talvez. A de Lartigue feita de excitabilidade insaciável, de explosões de energia, de desafio às leis da gravidade e da vida. A de Cartier-Bresson mais feita de estados que de instantes, de pacificação consentida e de aceitação do tempo.

Nenhum dos dois haverá de estar errado, apesar de visões tão distintas a respeito do assunto. Viveram, ambos, quase até os cem anos —e o que a vida pode ter de negativo eles deixaram, sem dúvida, no estúdio de revelação.

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