Marcelo CoelhoGeral – Marcelo Coelho http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br Cultura e crítica Tue, 18 Aug 2015 12:23:18 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Aviso http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/10/21/aviso/ http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/10/21/aviso/#respond Wed, 22 Oct 2014 01:00:32 +0000 http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/?p=1324 Este blog deixará de ser atualizado.

A partir desta quarta-feira (22), as colunas serão publicadas no endereço folha.com.br/colunas/marcelocoelho.

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Jorge Furtado comenta http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/08/26/jorge-furtado-comenta/ http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/08/26/jorge-furtado-comenta/#respond Wed, 27 Aug 2014 02:13:06 +0000 http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/?p=1298 Continue lendo →]]> Recebo de Jorge Furtado, diretor de “O Mercado de Notícias”, um email discutindo o que escrevi no post anterior. Transcrevo-o.

Agradeço as boas referências ao “Mercado de Notícias”, que segue em cartaz em São Paulo. Ao contrário do que você afirma, considero você inteiramente insuspeito para falar do filme. Há, de fato, muitos outros deslizes jornalísticos e talvez fosse mesmo divertido um filme só sobre eles, mas o meu objetivo era também despertar algumas dúvidas, propor um debate sobre um assunto que me parece importante e é quase interditado na mídia. (A coluna do Ombudsman da Folha e o site/programa Observatório da Imprensa são louváveis exceções) .

O tema é vasto e o tempo do filme (84 minutos) é curto. Por isso o projeto inclui, desde sempre, um site, com a peça e as entrevistas na íntegra e muitos outros assuntos, até do mensalão se fala. Toda a pesquisa e fontes estão lá:

www.omercadodenoticias.com.br

No filme, evitei intencionalmente o assunto mensalão, apenas sobre ele se faria uma série, ou vários longas. (Na verdade, se farão, sei de pelo menos dois filmes sobre o mensalão a caminho). O mensalão, acho que ninguém ignora, inclui vários crimes (o de caixa dois foi, inclusive, confessado) mas é, antes de tudo, uma palavra. A palavra “mensalão”, criação de Roberto Jeferson tornada pública na Folha em reportagem de uma das minhas entrevistadas, Renata Lo Prete, é um poderoso hashtag, um buraco negro que suga o debate. Minha pauta, que pretendia ser uma conversa sobre os rumos do jornalismo, teria que ser inteiramente outra.

Por exemplo:

Alguém razoavelmente bem informado ainda acredita que os milhões da Visanet, pilar que sustenta a condenação dos réus do mensalão petista, eram dinheiro público?
Que estes milhões foram desviados de sua função e não gastos em publicidade, como atestam as notas fiscais de grandes empresas de comunicação e os eventos publicitários realmente realizados?
Que o único responsável pela liberação do dinheiro foi mesmo o diretor petista do banco e não os outros quatro diretores tucanos que assinaram as liberações mas não foram indiciados?
Que a teoria do domínio do fato faz sentido? E, se faz, explica por que Lula não foi indiciado?
Que pedir aos réus que provem sua inocência – e não ao tribunal que prove sua culpa – faz sentido?
Que um único julgamento, do qual os réus (comuns) não possam recorrer do resultado, faz sentido?
Que um julgamento criminal transmitido ao vivo pela televisão pode ser justo?
Que é moral e juridicamente defensável a posição do ex-ministro Joaquim Barbosa que confessou, no plenário do STF (está gravado) ter manipulado a dosimetria das penas com o objetivo de evitar a prescrição dos crimes?
Que é moral e juridicamente defensável a posição do ex-ministro Joaquim Barbosa que manteve “escondido”, longe do olhar de seus colegas da corte, o inquérito 2474, sob sua guarda, alegando que ele não tinha importância no julgamento do mensalão, apesar de conter, como se soube mais tarde, provas fundamentais para o julgamento de um processo criminal em curso?
Alguém desconhece o feito midiático (e cruel) que incluiu o ministro Luiz Gushiken entre os indiciados apenas para fechar a conta de 40 acusados, facilitando manchetes engraçadinhas? (Gushiken teve que enfrentar, nos últimos anos de sua vida, além do câncer, toneladas de calúnias só para esperar que o relator, ao apresentar a denúncia, reconhecesse que não havia nada contra ele, coisa que poderia ter feito dois anos antes.)
Alguém desconhece o caráter midiático de uma prisão arbitrária feita às pressas no dia 15 de novembro?
Alguém desconhece a arbitrariedade de conceder um habeas corpus ao perigoso psicopata Roger Abdelmassih, como fez o ministro Gilmar Mendes, e negá-lo ao pacífico cardiopata José Genoíno?
Alguém desconhece o desequilíbrio da mídia no tratamento aos mensalões petista e tucano, em Minas, anterior e com os mesmos “operadores”, onde não há dúvida alguma do uso de dinheiro público na tentativa de reeleger o então presidente do PSDB, Eduardo Azeredo?
Alguém ignora os descalabros e incoerências pronunciados por vários ministros da corte, em frente às câmeras, e depois suprimidos, a pedido dos próprios, dos autos do processo?
Alguém ainda defende, seriamente, o comportamento do ministro relator Joaquim Barbosa na condução do processo?

Perceba que, fosse falar do mensalão neste filme, sem tratar do assunto apenas como um mantra anti-petista repetido acriticamente por quem quer agradar seus fãs e patrões ou apenas fazer picuinha, o tema tomaria conta do filme. Falar seriamente sobre o mensalão, este evento político-jurídico-midiático que emburrece o debate no país desde 2005, requer um tempo que o filme não tinha. Espero que os filmes que se farão sobre o tema tratem de aprofundá-lo.

Procuro filmes brasileiros, de qualquer época, sobre este assunto, o jornalismo, e não encontro. (Há muitos bons filmes americanos sobre o tema, só o Billy Wilder fez dois.) O filme que você imagina sobre “os problemas da imprensa” nos tempos de Fernando Henrique realmente não foi feito. Os exemplos que uso no filme são de barrigas (erros), não reportagens críticas que se mostraram verdadeiras. Na entrevista do Fernando Rodrigues (na íntegra no site) ele conta em detalhes a grande matéria da Folha que revelou a compra de votos para a reeleição de FHC, por exemplo. E o Jânio conta o caso da denúncia de maracutaia na licitação da ferrovia Norte-Sul, outro grande feito da Folha. Mas não foram barrigas, os casos se comprovaram plenamente, nunca foram desmentidos. Ao contrários das incontáveis barrigas contra Lula e Dilma, há algumas no filme, outras tantas no site (e muitas outras, semanalmente).

Nos debates que tenho participado sobre o filme peço a quem souber – e reforço o pedido a você – de alguma barriga séria da imprensa contra FHC e seu governo que me avise, gostaria muito de publicar no site do filme. Ou, quem sabe, fazer um curta.

A vontade implícita do filme eu não sei (o filme é de quem vê). Minha vontade implícita e explícita era, e é, a defesa do bom jornalismo. Bom jornalismo na minha opinião, é claro.

Não sou nem me pretendo apartidário (embora nunca tenha sido filiado a qualquer partido) nem independente (dependo do meu trabalho, desde sempre.)

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O Mercado de Notícias http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/08/21/o-mercado-de-noticias/ http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/08/21/o-mercado-de-noticias/#respond Thu, 21 Aug 2014 19:55:29 +0000 http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/?p=1291 Continue lendo →]]> Sou naturalmente suspeito para comentar “O Mercado de Notícias”, documentário de Jorge Furtado sobre os problemas da imprensa brasileira.
Fiquei bastante embaraçado com uma das principais “descobertas” do filme: uma matéria escandalosamente errada que saiu na “Folha” há anos, apontando a existência de um quadro de Picasso na parede de um corredor burocrático do INSS.
Não era um Picasso autêntico, evidentemente, e a ideia da notícia –mostrar o descaso do poder público com o próprio patrimônio—caía por terra.
Não me lembro de ter visto a reportagem, que saiu com foto e tudo. O suposto quadro de Picasso era a reprodução de uma obra razoavelmente famosa, de um museu em Nova York, e quero imaginar que eu teria reconhecido o engano. Só agora, passados anos da notícia, saiu na “Folha” um “erramos” sobre o caso.
É um dos momentos mais interessantes do filme, ainda que incômodos para quem é da Folha.
Mas “O Mercado de Notícias” (veja horários no Guia da Folha) não se dedica muito ao divertido recenseamento dos deslizes jornalísticos. O principal do filme –e aqui surge um segundo motivo para minha suspeição ao comentá-lo—está numa série de entrevistas com jornalistas, seja os da grande imprensa (Fernando Rodrigues, Renata Lo Prete, Cristiana Lôbo), seja os que a criticam (Mino Carta, Luis Nassif, Raimundo Pereira).
Para quem é jornalista, muitos dos temas abordados nessas entrevistas trazem pouca novidade. “Existe imparcialidade?” “Existe liberdade de expressão nos grandes jornais?” “Os interesses econômicos prevalecem sobre a verdade?” “O que é verdade?”
Há opiniões radicais, e outras menos, sobre isso. Talvez para o público mais amplo seja interessante ouvir tantos jornalistas expondo seus pontos de vista. De minha parte, acho que tudo termina abstrato demais, com frases que tendem à exposição de princípios ou de julgamentos já consolidados.
Talvez sabendo desse risco, Jorge Furtado entremeia os depoimentos com cenas da montagem de uma peça, intitulada justamente “O Mercado de Notícias”, escrita por Ben Jonson (1572-1637). É outra descoberta muito boa do diretor –além do caso Picasso. A comédia mostra um jovem perdulário que se envolve na empreitada de comprar e vender “notícias”, (“novidades”?) numa época anterior à da consolidação dos jornais tais como os entendemos hoje.
Vendo a peça e pensando nos jornais de hoje, pode-se sempre traçar aquele gênero de paralelos que leva uma pessoa a dizer: “puxa, já naquela época, hein!” Mas a aproximação não é das mais esclarecedoras, e novamente escapamos do concreto, do real, para um plano de julgamentos mais ou menos fáceis.
Como a perspectiva adotada é sempre a da generalidade, é um alívio quando se vê Luis Nassif, por exemplo, apontar um caso específico de miopia jornalística. Ele se refere à excessiva atenção dos jornais com respeito às oscilações do mercado financeiro, e de que modo se deu pouca importância a uma queda violentíssima na venda de máquinas agrícolas, em 2008 se não me engano.
Mais exemplos como esse enriqueceriam o filme de Furtado.
Sem dúvida, o grande exemplo, que “O Mercado de Notícias” recalcou, não é o das máquinas agrícolas. Metade dos entrevistados, mais ou menos, considera que os jornais perseguem o governo do PT, e teria longas considerações a fazer sobre o caso do mensalão.
Imagino que um filme sobre “os problemas da imprensa” sequer teria sido feito nos tempos de Fernando Henrique, quando choviam denúncias contra os tucanos.
A vontade implícita deste documentário é colocar em questão uma imprensa que foi duríssima contra Lula. Por que não falar disso de uma vez? Curiosamente, o tema do mensalão foi recalcado, abafado, suprimido (auto-censurado?) em “O Mercado de Notícias”. Por esse cuidado do diretor, que talvez tenha querido parecer “apartidário e independente”, o filme me pareceu ficar girando na periferia de seu assunto real.

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Tragédias políticas http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/08/17/tragedias-politicas/ http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/08/17/tragedias-politicas/#respond Sun, 17 Aug 2014 15:49:41 +0000 http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/?p=1288 Continue lendo →]]> (artigo publicado na “Folha” de hoje)
Lembrar de carreiras políticas atingidas pela morte repentina, como a de Eduardo Campos, é tarefa relativamente fácil: logo vêm à mente os exemplos de Tancredo Neves e Getúlio Vargas –para não falar dos acidentes com Juscelino Kubitschek e Castello Branco e dos casos médicos de Carlos Lacerda, Jango ou Costa e Silva.
Sim. Mas com todo o respeito que se possa ter pela figura de Eduardo Campos, a comparação parece muito exagerada. O candidato do PSB não era o favorito nas pesquisas, e sua representatividade política, pelo menos em São Paulo, ainda era coisa a ser construída.
A possibilidade de que Campos viesse a empolgar a classe média e os empresários paulistas se baseava no fato de que, pela primeira vez, a oposição tucana tinha um candidato nascido “fora do ninho”.
Esgotados os cartuchos de Serra, de Alckmin e de Fernando Henrique, o mineiro Aécio Neves deixou o eleitorado antipetista de São Paulo órfão de um candidato “natural”.
Por isso, Eduardo Campos apostava (ou “era apostado”) numa proximidade com o poder econômico paulista que poucos políticos fora do Sudeste puderam alcançar. Havia muito a ser trabalhado, contudo, para que esse projeto se consolidasse até outubro.
O maior assemelhado de Campos, dessa ótica, não seria nenhuma dessas grandes lideranças desaparecidas tragicamente, mas outro ex-governador nordestino de olhos azuis: o tucano cearense Tasso Jereissati. Que se contenta, atualmente, em ser candidato a senador por seu Estado, numa coligação monstro que tem Eunício de Oliveira (PMDB) disputando o governo.
As comparações iniciais com Tancredo e Getúlio, motivadas sem dúvida pela emoção do choque e pela simpatia que Campos despertava, vão assim se atenuando. Os casos que surgiram imediatamente à memória se revelam menos pertinentes. Para dimensionar o caso de Eduardo Campos, temos de buscar nos arquivos –o que não deixa de ser triste— tragédias políticas um bocado obscuras.
Foi lembrado, assim, o acidente de helicóptero com Clériston Andrade, candidato ao governo da Bahia em 1982, ou o desastre aéreo que matou Salgado Filho, postulante gaúcho nas eleições estaduais de 1950.
Mas aí já estamos escavando muito fundo nas camadas arqueológicas da história regional.
Podemos ir mais longe, contudo. E aí as coisas ficam especialmente cruéis para todos os envolvidos na comparação.
É estranho que um nome de outro político muito promissor, que também morreu de repente, não seja lembrado de imediato quando se analisa o destino de Eduardo Campos. Estou pensando em Luiz Eduardo Magalhães, do DEM, vitimado por um enfarte aos 43 anos.
Não era candidato à presidência da República –aspirava ainda ao governo baiano. Mas tinha sido presidente da Câmara dos Deputados e surgia como um nome mágico, capaz de garantir uma alternância entre PSDB e DEM no Palácio do Planalto. Quando morreu, em 1998, muitos comentários aludiam a seu papel insubstituível como articulador no governo Fernando Henrique.
Tornou-se, como Salgado Filho em Porto Alegre, nome de um aeroporto (que Deus nos livre desse destino)—e de um município na Bahia.
Indo mais para o passado, o PTB de João Goulart depositava muitas esperanças no nome de um jovem político fluminense, Roberto Silveira. Dizia-se que era um grande talento. Morreu num acidente de helicóptero em 1961, deixando seu legado político a familiares de expressão local.
Outro acidente de helicóptero matou Ulysses Guimarães e Severo Gomes em 1992. Ambos já tinham cumprido missões históricas na redemocratização do país.
Não foram lembrados agora –e nem nome de município, pelo que eu sei, terminaram virando. A política, por mais cruel que seja dizer isso agora, é sobretudo a arte da sobrevivência.

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Olhos azuis http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/08/16/olhos-azuis/ http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/08/16/olhos-azuis/#respond Sat, 16 Aug 2014 16:15:38 +0000 http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/?p=1285 Continue lendo →]]> Apareceu na televisão, e depois no jornal, o depoimento de um cidadão que estava perto do acidente de Eduardo Campos. O homem, com lágrimas nos olhos, dizia ter visto uma bola de fogo –a queda do jatinho –os corpos espalhados no chão. Aproximou-se de um corpo. Abriu as pálpebras do morto: os olhos eram azuis. “Era o meu candidato…”, disse para as câmeras, forçando o choro.
O problema é que a identificação dos corpos não poderá ser feita nem mesmo pelo exame das arcadas dentárias, segundo a perícia.
A “testemunha” simplesmente delirava.
Qual será o impulso de alguém para mentir sem levar nenhuma vantagem com isso? Queria só aparecer na televisão? Não acho muito plausível. Talvez a vontade não seja exatamente de mentir; é a vontade de ver se o outro acredita. O homem buscava, no repórter que o entrevistou, um olhar que expressasse, digamos, uma “ausência de desconfiança”.
“Acreditam em mim!” Esse é o maior prazer do mentiroso; procura, no fundo, acolhimento.
Não por acaso fixou-se no detalhe dos olhos azuis. Nada disso é quantificável, acho, mas o fato de Eduardo Campos ter olhos azuis também contribuiu para sua popularidade. Talvez para nós, brasileiros, nos pareçam mais “verdadeiros”, mais “sinceros” os olhos claros.
O cidadão que “testemunhou” o acidente queria que acreditassem nele –nada melhor do que olhos azuis para dar veracidade a seu depoimento.

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Nicolau Sevcenko http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/08/14/nicolau-sevcenko/ http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/08/14/nicolau-sevcenko/#comments Thu, 14 Aug 2014 22:00:43 +0000 http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/?p=1283 Continue lendo →]]> Quando a morte de alguém importante aparece no jornal, já estamos mais ou menos preparados para a leitura: a notícia já circulou, diminuindo o choque da letra impressa.
Meu susto, ao ler o jornal de hoje, foi dar com outra morte, ocupando página inteira do “Cotidiano”: a do historiador Nicolau Sevcenko, aos 61 anos. Conheci-o na “Folha”, em meados da década de 80; tinha sido convidado para escrever editoriais no jornal, o que fez com brilho no mesmo dia –mas não tinha disponibilidade, naquela época, para um compromisso regular na atividade.
Era muito magrinho, jovem, simpático e esquisito. Depois ele me contou que, na infância, fora forçado a escrever com a mão direita. Sendo um caso extremo de canhotice, isso viria a atrapalhá-lo bastante. Era comum que gastasse várias folhas de cheque antes de preencher uma corretamente. Trocava letras e números o tempo todo, e na própria postura física e na expressão facial trazia as consequências dessa reorientação neurológica forçada.
Parecia, ao mesmo tempo, absolutamente confortável no mundo. Chegou à Folha com um paletó preto justo, camisa acho que xadrez, e uma gravatinha moderníssima, não sei se de couro ou de borracha; na lapela, uma estrela vermelha do PT.
Era o tempo do “PT light” e charmoso, atraindo pessoas com simpatias libertárias e visceralmente anti-estalinistas. Era também o tempo em que a intelectualidade da USP ia ficando mais “pop” e roqueira. Sevcenko era um historiador acadêmico respeitado, mas seu figurino e atitude nada mais tinham a ver com o jeito mais enfarruscado, quase de ex-militante argentino, que era (e talvez ainda seja) característico da área de humanas da USP.
Nesse mesmo espírito dos anos 80, Sevcenko se destacou por eleger a história cultural, especialmente o campo da modernidade urbana, como objeto de estudos. Tomava-se um fartão (pelo menos era o meu sentimento na época) de estudos coloniais e discussões sobre economia sucro-cafeeira. “Orfeu Extático na Metrópole” (um livro que critiquei na época, e não mudo de opinião) tinha o mérito de destacar assuntos menos austeros, como a paixão pelo futebol nos anos 20…
História do cotidiano, história das mentalidades. Walter Benjamin. Maio de 68. Desse caldo iam surgindo, pela editora Brasiliense, os livros de Sevcenko, de Olgária Matos, de Nelson Brissac Peixoto –e, naturalmente, já pela Companhia das Letras, o de Marshall Berman. Isso, mais as coleções “Encanto Radical” e “Cantadas Literárias” (Marcelo Rubens Paiva, Leminski, Reinaldo Moraes) ia formando uma geração –e Sevcenko foi uma de suas estrelas.

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Imagine depois da Copa http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/05/14/imagine-depois-da-copa/ http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/05/14/imagine-depois-da-copa/#comments Wed, 14 May 2014 05:00:38 +0000 http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/?p=1261 Continue lendo →]]> O tempo cria suas armadilhas na cabeça da gente. Nem sempre os relógios e calendários coincidem com o pulso e a expectativa da vida interior. Tenho sempre a impressão, a cada ano que passa, que o Natal está chegando mais cedo. Da Páscoa, então, nem se fale: um dia depois do Carnaval já parece que o teto dos supermercados está coberto de ovos de chocolate.

Vou sentindo o contrário com esta Copa do Mundo. Falta menos de um mês para o primeiro jogo, e aqui por onde moro são raríssimos os lugares que já ostentam decorações em verde e amarelo.

Pode ser que a minha expectativa esteja um pouco exagerada. Pior ainda, corro o risco de já ter escrito as mesmas coisas em alguma Copa anterior.

Claro que, com o Natal e a Páscoa, interessa promover ao máximo as compras antecipadas; os estabelecimentos comerciais não têm nada a ganhar antecipando a torcida pela seleção.

De resto, apostar no oba-oba parece a adesão ao governo e aos interesses privados; a vontade de ser manipulado anda bastante baixa no país. Antes tarde do que nunca, muita gente percebeu o quanto há de inútil, de farsesco, de incompetente em toda a iniciativa.

Não quero parecer mal-humorado; de resto, minha tendência é achar que tudo vai correr bem com a organização do evento. Em 1956, quando Juscelino resolveu construir Brasília, havia todos os motivos para achar que aquilo nunca ficaria de pé.

Também é possível que o inferno astral esteja acontecendo agora, com o máximo de manifestações e greves que for possível, antes de recair sobre todos o pálio auriverde do esquecimento.

Vejo coisas dando errado todo dia: terminais de aeroporto, caixas eletrônicos, transportes. Imagine na Copa, diz o senso geral. Não, a Copa não me preocupa. Tudo pode azedar depois.

A primeira hipótese, muito improvável, é que o Brasil seja desclassificado logo. Aí será inevitável a sensação de que todos esses estádios e esses gastos foram feitos “para a festa dos outros”. O que era desnecessário irá revelar-se estúpido.

Mas isso dificilmente acontecerá. Em 2002, quando sediava a Copa ao lado do Japão, a Coreia do Sul chegou ao quarto lugar, vencendo a Itália e a Espanha, entre outras seleções. O juiz anulou um gol da Espanha para ajudar.

Os “erros de arbitragem” não são poucos em ocasiões, digamos, tão cheias de interesse. Sendo impossível provar o que quer que seja em matéria de conspiração, professo de qualquer forma minha fé no apito salvador.

Passada a Copa é que veremos tudo voltar ao anormal. A sensação de farsa, que já pressentimos, haverá de vir mais forte.

Enquanto os cérebros publicitários dão ainda seus últimos retoques à euforia programada, basta um exemplo preliminar.

Uma rede de shopping centers anuncia a tocante iniciativa. “Vamos vestir o Brasil de verde e amarelo”, diz a campanha. Consiste no seguinte.

Primeiro, você faz doações de roupas velhas. Elas serão distribuídas a moradores de rua. Essa é a parte sentimental da coisa.

A parte verde e amarela acontecerá antes da distribuição. As roupas serão “customizadas” por uma equipe de costureiras. Mas o termo é incorreto.

Serão preparadas, não conforme o desejo dos indigentes, mas conforme o espírito cívico-futebolístico que se quer incutir na população. A indumentária canarinho será dada aos infelizes.

Em vez de pagar um miserável para que segure o dia inteiro a placa de um novo empreendimento imobiliário com nome francês, teremos uma massa de pobres coitados pintada com as cores nacionais, dando um toque de vibração aos covis debaixo da ponte e às entranhas de algum lixão irregular.

Que tal distribuir plásticos verdes e amarelos para substituir aqueles, tão pretos, dos acampamentos de sem-terra? O melhor seriam máscaras de Neymar, para esconder o sorriso dos desdentados.

A golpes de chicote, os labregos da Rússia czarista eram tangidos para demonstrar entusiasmo na coroação do novo soberano. É assim que começa a ópera “Boris Godunov”, de Mussorgski. O stalinismo aperfeiçoou a técnica, e a Coreia do Norte ainda arrasa nos desfiles militares.

Aqui, os “moradores de rua” receberão seus uniformes “customizados”. Aceitarão o que lhe derem, claro. Mas, como eu digo, é bom não adiantar muito o cronograma. Caso contrário, as roupas já estarão esfarrapadas antes das oitavas de final. E veremos que o mendigo, não o rei, é que está nu.

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O milagre das galinhas http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/05/07/o-milagre-das-galinhas/ http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/05/07/o-milagre-das-galinhas/#comments Wed, 07 May 2014 05:02:00 +0000 http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/?p=1257 Continue lendo →]]> De forma respeitosa, mas como sempre implacável, Hélio Schwartsman escreveu sobre os milagres atribuídos a João 23 e João Paulo 2º, na edição deste domingo da Folha.

É complicado, disse ele, envolver comissões de médicos e cientistas nos processos de canonização. Os cientistas têm de atestar que o feito, a cura, os prodígios atribuídos ao candidato a santo “não têm explicação natural”.

É aí que o bicho pega, diz o articulista. Uma coisa que hoje não tem explicação científica pode ser explicada amanhã. A ciência progride sempre, e o caráter provisório de suas conclusões não combina com a força, em tese irreversível, de uma decisão papal.

Tendo a concordar com Hélio Schwartsman, mas abro espaço para dificultar um pouco as coisas. A igreja também “progride”, ou pelo menos vai mudando, ainda que com grande lentidão.

Até o século 10, diz o “Dicionário Crítico de Teologia” (ed. Paulinas/Loyola), a santidade era declarada muito mais informalmente. Bastava a “aclamação do povo” ou o decreto de um bispo.

“A multiplicação desses cultos levou o papado a intervir”, diz o autor do verbete. As regras para canonizar alguém foram sendo formalizadas, e o processo se centralizou.

Sístoles e diástoles: depois de muita rigidez, o Vaticano resolveu “tornar mais ágil” o procedimento para a canonização . Foi iniciativa de João Paulo 2º, em 1983. Talvez por isso já estejamos com três santos brasileiros.

O mais curioso é que, no caso de José de Anchieta, nem milagre específico se pediu. É a “canonização equipolente”, que segue três requisitos. Exige-se que exista um culto antigo ao santo, que ele tenha fé e virtudes comprovadas, e que por fim haja uma “fama” contínua de milagres em torno dele. Não se investiga nenhum caso concreto.

Fico feliz assim. Para que escarafunchar tanto o eletrocardiograma de Fulano, o exame de sangue de Beltrana, quando as pessoas querem apenas rezar por um santo? Talvez seja até meio vulgar, no sentido de excessivamente físico e grosseiro, esse interesse “científico” pela santidade.

Quem explora o tema com muita sabedoria é George Bernard Shaw (1856-1950), na sua peça “Santa Joana”. Em plena Guerra dos Cem Anos, a donzela de Orléans insistia com os poderosos para ganhar uma armadura e lutar pela expulsão dos ingleses que invadiram seu país.

Enquanto os nobres hesitam, nenhuma galinha bota ovo. Dão-lhe as armas e a permissão; imediatamente surge o bastante para alimentar de omeletes um exército inteiro.

Milagre? Mas o que é um milagre? Um dos personagens da peça, o arcebispo de Reims, toma a palavra. Milagre, diz ele, é um acontecimento que produz fé.

Mesmo se for uma mistificação, uma mágica, um truque? O arcebispo é sutil. “Truques produzem decepções quando descobertos.” O verdadeiro milagre, não.

Não existe, nesse raciocínio, um milagre “puramente físico”. Se um par de asas nascesse agora nos meus ombros, eu poderia desfilar pela Redação da Folha ou, quem sabe, marcar presença no Dia do Orgulho Gay —e só aumentaria, com isso, a incredulidade geral.

O mundo dos prodígios, em que galinhas deixavam de botar ovo ou criavam dentes, está terminado; sabemos, aliás, que nunca existiu. A questão é que, nos primórdios do cristianismo, tudo era prodígio. Como a ciência não explicava nada, ou pouquíssima coisa, o âmbito do “sobrenatural” tinha uma extensão inimaginável para nós.

Depois de João Paulo 2º e João 23, corre o processo de canonização de Paulo 6º, ajudado por um caso médico que os especialistas não foram capazes de elucidar. A rigor, seguindo Bernard Shaw, não importa se, no futuro, a ciência explicar o que aconteceu.

O silêncio dos cientistas, sua falta de resposta, ajudou na “produção da fé”. Nesse sentido, jogo água no moinho de Hélio Schwartsman: a fé sobrevive no vazio da ciência, no silêncio da medicina.

Não sei se a igreja seria tão tola a ponto de esperar o aval dos cientistas para saber se uma coisa é milagre ou não. Quando se fala de cura “milagrosa”, imagino que o importante seja evitar os riscos, e o vexame de desmascaramento no dia seguinte.

Num paradoxo, a ciência é quem dá o “nihil obstat”, “nada proíbe”, à crença no milagre de quem quer que seja. Depois de feito o santo, pode vir o dilúvio; já não importa mais.

De todo modo, a igreja parece estar colocando as burocracias e exigências de lado. Se os milagres produzem fé, não é menos certo dizer que a fé produz santos como nunca.

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O outro problema http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/04/02/o-outro-problema/ http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/04/02/o-outro-problema/#comments Wed, 02 Apr 2014 06:02:00 +0000 http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/?p=1241 Continue lendo →]]> Um escritor policial da velha guarda chamado John Dickson Carr (1906-1977) era especialista nos chamados “mistérios do quarto fechado”. A vítima é encontrada morta, no seu gabinete de estudos, sem sombra de arma nem pegadas do assassino por perto.

Pior que isso, o lugar estava trancado por dentro; nenhum sinal de que janelas ou portas tivessem sido arrombadas. Como o assassino entrou? Como saiu? Como matou o milionário?

Crimes assim perfeitos terminavam resolvidos pelo obeso dr. Fell, que numa tarde de verão manteve estranha conversa com um homenzinho “grave e sincero”. O homenzinho conta ao detetive um crime complicadíssimo, no gênero “quarto fechado”.

Poucas páginas são necessárias para que o dr. Fell reconstrua mentalmente todo o mecanismo do assassinato. A vítima havia se encostado na janela, no ponto mais alto da mansão. Levara um binóculo aos olhos.

Dentro do binóculo, um mecanismo preparado anteriormente fizera saltar uma flechinha especialmente pontiaguda, que penetrou por um olho da vítima até perfurar-lhe o cérebro. O detetive prossegue em seus raciocínios, e conclui que o assassino tinha sido o próprio homenzinho que acabava de lhe contar o caso.

Vem dessa circunstância o título do conto, “O Outro Problema”. Por que, afinal, o próprio assassino procurou o detetive para lhe propor o enigma? Talvez quisesse se certificar de que ninguém, nem mesmo o dr. Fell, seria capaz de desvendar o crime.

“Ele é um exibicionista, um sádico”, disse o advogado José Carlos Dias a respeito do coronel Paulo Malhães, depois do depoimento em que este admitiu à Comissão Nacional da Verdade as torturas e assassinatos que cometeu durante a ditadura militar.

Disse ter matado “tantas pessoas quanto foram necessárias”; não soube se lembrar quantas torturou, só que foram “muitas”; contou que quebrava os dentes e cortava os dedos dos cadáveres, para impedir que fossem identificados.

Fico pensando, em todo caso, no “outro problema”, para usar o título daquele conto policial. O que leva um ex-torturador a comparecer diante da Comissão?

Imagino que certo machismo militar se misture à teimosia de suas convicções políticas. “Não sou homem de me acovardar; vou à Comissão e enfrento essa comunistada.” De resto, está afastado o perigo de que sejam presos depois do que disserem.

A construção mental vai além disso, entretanto. Ao longo de muitas décadas, o torturador teve tempo para repetir a si mesmo o que já dizia ao fim de cada sessão de interrogatório: estou cumprindo o meu dever, estou salvando o país da ameaça comunista.

É difícil, sem dúvida, imaginar que alguém fosse capaz de convencer-se disso depois de ter feito o que o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra fez com Maria Amélia Teles, segundo esta contou à Folha.

Ustra levou os dois filhos de Maria Amélia, Edson e Janaína, à sala onde ela estava sendo torturada, junto com o marido. As crianças tinham 5 e 4 anos de idade. “Mamãe, por que você está azul?”, perguntou a criança para Maria Amélia, coberta de hematomas.

O ex-dirigente do DOI-Codi silenciou na Comissão da Verdade quando perguntado sobre torturas, mas repete o que todos os personagens da repressão dizem sempre. “Lutávamos pela democracia.”

A contradição, embora salte aos olhos, é das mais comuns. Para defender a democracia, faço uma ditadura. Para que o comunismo não acabe com os direitos humanos, acabo eu com os direitos humanos.

Nós matamos, mas “eles mataram também”. Até aí é fácil de ir. Não sei se algum torturador chegou a afirmar que “eles torturavam também”.

“Era uma guerra”, dizem os generais e os civis mais graduados do sistema, como se ignorassem que até nas guerras vale a Convenção de Genebra. Nós não inventamos a tortura, dizem outros. A Gestapo também usava… Por que tanta perseguição contra nós?

Uma frase do coronel Malhães acrescenta novo ingrediente a esse espetáculo de cinismo, de deboche e impunidade. “A tortura é um meio”, afirmou aos membros da Comissão. “Se o senhor quiser saber a verdade, tem que me apertar.”

Talvez seja essa a maior provocação. “Não conto tudo o que sei a respeito da ditadura. Vocês terão de me torturar para saber. Torturem-me. Mostrem que vocês são no fundo iguais a mim. Só desse modo conseguirei provar que eu estava certo ao fazer o que fiz.”

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Mocinhos e bandidos http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/03/19/mocinhos-e-bandidos/ http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/03/19/mocinhos-e-bandidos/#comments Wed, 19 Mar 2014 06:02:54 +0000 http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/?p=1235 Continue lendo →]]> “Alemão”, de José Eduardo Belmonte, é um filme que merece ser visto e revisto. Fiquei com uma impressão errada da história quando vi o trailer: dava-se tanto destaque à presença de Antonio Fagundes no elenco (como o delegado que organizava a célebre ocupação do complexo de favelas carioca), que o compromisso em retratar o “mundo real” saía um pouco prejudicado.

O problema volta e meia acontece quando se recorre a atores muito famosos da televisão. Por melhores que sejam, fica esquisito quando encarnam personagens reais. Lembro-me de um filme sobre Canudos, em que Antônio Conselheiro era ninguém menos do que José Wilker.

Arranjaram uma barba preta para ele, que parecia feita com um escovão de piaçava. Podia ser o Antônio Conselheiro mais perfeito do mundo, mas como espectador eu não conseguia deixar de perguntar: “Mas o que é que o José Wilker está fazendo de batina e barba postiça?”.

De todo modo, Antonio Fagundes nem aparece tanto assim no filme. Numa notável mistura entre realidade e ficção, o roteiro situa o delegado procurando controlar, da distância do gabinete, uma investida perigosíssima contra Playboy, o chefe do tráfico da favela, vivido por Cauã Reymond.

Enquanto isso, cinco policiais infiltrados na favela têm de sobreviver escondidos, por longos dias, até o momento em que o Exército finalmente possa invadir o império de Playboy. O tráfico já conhece a identidade desses informantes; todos os recursos são utilizados para expulsá-los do esconderijo. Já nessa situação se pode ver muito da arte do roteirista.

Em vez de mostrar o traficante cercado pela polícia, “Alemão” mostra os policiais cercados pelos traficantes. A salvação só pode vir “do céu”, o que se representa pelo ruído dos helicópteros sobrevoando o morro.

Playboy aparece quase sempre ao ar livre, tomando banho de piscina no terraço de seu “apartamento de cobertura” em pleno coração da favela. As pesadas correntes de ouro que —como seus comparsas— carrega consigo simbolizam ao mesmo tempo os seus hábitos de ostentação e o fato de estar “com a corda no pescoço”, como se diz.

Outra corrente de ouro —essa bem modesta e fininha— passará das mãos de um jovem policial para outros personagens, em momentos de grande impacto emocional da história. Mas o núcleo dramático do filme está nos conflitos, nas diferenças extremas de personalidade, nas alternâncias de medo e inatividade que marcam o convívio dos policiais escondidos.

Tem-se tudo, aqui, para fazer um excelente filme com baixo orçamento, misturando suspense e drama psicológico. “Alemão” atinge esse objetivo com pulso e velocidade.

Em vez de considerar os policiais em bloco, o roteiro acaba distinguindo tipos sociais e psicológicos muito distintos. Cada um desconfia dos outros: quem terá denunciado sua identidade ao tráfico?

Um dos informantes é garoto mestiço da própria favela. Como não pensar que foi ele quem se aliou, no sufoco, ao tráfico? O outro é gorducho, medroso e dissimulado. Um terceiro é inexperiente, imbuído de ideais e cultura universitária. O quarto é um “tira” da velha guarda, capaz de bater e fuzilar sem hesitação. O quinto, mais sedutor, aposta em táticas de longo prazo.

O problema é que, numa situação dessas, cada um desses estilos pode se revelar o mais adequado num determinado momento, e um desastre total minutos depois. “Alemão” joga magistralmente com essa ambiguidade.

Há uma ambiguidade maior cercando o filme, entretanto, que talvez seja mais difícil de resolver.

Pouca gente há de discordar que as UPPs foram uma coisa muito boa. “Alemão”, assim como o belíssimo documentário “Morro dos Prazeres”, de Maria Augusta Ramos, não tem como não deixar de mostrar o quanto de necessário, de correto e de heroico foi feito para tirar as comunidades do domínio do tráfico e das milícias.

Fazer um filme “a favor”, entretanto, nunca é fácil. O caso Amarildo surgiu exatamente na época em que “Morro dos Prazeres” era lançado em São Paulo. “Alemão” termina com um discurso de Lula, anunciando a vitória sobre o tráfico na favela. O filme já devia estar pronto quando ocorreram as manifestações de junho e os episódios de violência policial que as acompanharam. Cuidou-se, assim, de acrescentar cenas da repressão enquanto passam os créditos do filme.

Hoje, a maré da opinião pública já virou novamente. Os black blocs atraem a antipatia que, meses atrás, se voltava contra os excessos da PM e as insensibilidades de Sérgio Cabral. O tráfico volta a atacar no Complexo do Alemão.

Esses filmes são muito bons. Mas a realidade que retratam certamente tem a forma de um seriado —que está longe de ter chegado à sua última temporada.

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