Marcelo CoelhoLivros – Marcelo Coelho http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br Cultura e crítica Tue, 18 Aug 2015 12:23:18 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Leitura a jato http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/05/21/leitura-a-jato/ http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/05/21/leitura-a-jato/#comments Wed, 21 May 2014 05:00:53 +0000 http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/?p=1264 Continue lendo →]]> Ainda faço parte dos que leem jornal impresso e livros de verdade. Reconheço a utilidade dos iPads e kindles; acho bom, mas não uso.

No fundo, é o mesmo livro e a mesma leitura. No máximo, tem a página iluminada e o tamanho das letras ajustável.

A experiência talvez se altere muito no futuro, se der certo uma tecnologia que fiquei conhecendo na internet. Chama-se “Spritz”, e há uma demonstração em português no site da companhia.

Eles prometem acelerar loucamente a velocidade de sua leitura. Funciona do seguinte modo.

No papel ou no Kindle, a página fica parada: nossos olhos é que percorrem cada linha. Seguem, é claro, a velocidade de nossos músculos, de nossa concentração, de nosso tédio.

Com o Spritz, perdemos esse controle, ou essa vagareza. Nossos olhos não se movem. As palavras é que aparecem, uma a uma, como flashes. Uma/palavra/de/cada/vez. Só que com uma velocidade alucinante.

Segundo os inventores da tecnologia, 80% do tempo de nossa leitura se perde em paradinhas minúsculas do globo ocular quando percorre uma linha escrita. Com o olho imóvel, é possível ler livros a jato. As palavras surgem e somem sem que precisemos fazer nada.

Achei muito tentador, mas é possível prever alguns problemas. Uma coisa é ver um texto curto correndo desembestado em sua direção, numa escada rolante maluca fornecendo alimento para o cérebro.

Outra é ler um livro inteiro desse jeito; provavelmente o excesso de velocidade traz o preço de um cansaço em tempo recorde. Penso também nos efeitos sobre a memorização.

Será que, quanto mais rápido o aprendizado, também mais rápido será o esquecimento? Sinto isso quando assisto ao noticiário da televisão. Basta o locutor dizer “boa noite”, que me sinto incapaz de citar mais de dois ou três dos fatos relatados. Tudo passou diante de mim; nada se gravou.

Imagino que o Spritz irá transferir para a leitura o que acontece na TV. Favorece a passividade do olhar; seremos lidos pelo texto. Pode até ser conveniente, em todo caso, e não exclui outros tipos de leitura.

Vai no sentido oposto, por exemplo, da interação da palavra com a imagem, a foto, a ilustração —outra tendência de que os nostálgicos do “texto puro” reclamam bastante.

Em vez de se dar no espaço de uma página, o texto surge como enunciação abstrata num lapso curtíssimo de tempo. Deixa de ser “coisa” para ser visto como “evento”.

E, como as palavras ganham independência, desaparecem as linhas. Não é o pior; meu medo é que, com isso, deixemos também de ler as entrelinhas.

Ninguém está dizendo, em todo caso, que será interessante ler Proust ou Thomas Mann na tecnologia do Spritz. O objetivo há de ser o relatório, o artigo, a notícia, desde que você não precise anotar nada nem fixar no cérebro os dados principais.

É o caso da grande quantidade de coisas que temos de ler apenas “para saber do que se trata”. Com um aplicativo qualquer, tenho acesso ao texto de dezenas de jornais e revistas do mundo inteiro.

Foi num desses, aliás, que tomei conhecimento do tal Spritz. É a solução para a angústia diante de tanta coisa interessante para ser lida.

“Lida”? Vale substituir por um termo da moda: “Explorada”.

Associa-se a outra palavra com que topamos o tempo todo: “Experiência”. “Explore a experiência da Fast Fly Air Lines.” Fica melhor em inglês: “The McNought Experience”, “the Keystone Experiment”, “explore the new Dandruff Project”.

“Exploramos”, desse modo, novas “experiências”, dentro de algum “projeto”. Até na música clássica a moda pegou. Antes, um maestro gravava a integral das sinfonias de Beethoven. Agora, ele lança os “volumes” de seu “Beethoven Project”.

Percebe-se facilmente que está em jogo, na verdade, o oposto do que essas palavras sempre significaram. Um “projeto” não é uma agenda, um cronograma, mas algo que se pretende fazer sem saber se vai dar certo ou não.

“Explorar” um território era atividade que pressupunha algum tipo de risco; não se confunde com uma visita guiada, um “sightseeing”, um “test drive” (que nunca testou coisa nenhuma, aliás).

“Experiência” exige algum tipo de esforço, de troca pessoal, de perda e ganho subjetivo. Na sua versão contemporânea, “experience” é algo como “vivência”, ou menos ainda; trata-se de sentir passivamente o que nos é proposto.

Desse tipo de experiência, não somos os sujeitos, mas sim as cobaias. Vamos sobrevivendo, com os pelos eriçados e as patinhas correndo sem parar.

]]>
7
Dane-se o padrão Fifa http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/04/30/dane-se-o-padrao-fifa/ http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/2014/04/30/dane-se-o-padrao-fifa/#comments Wed, 30 Apr 2014 05:02:54 +0000 http://marcelocoelho.blogfolha.uol.com.br/?p=1254 Continue lendo →]]> O jogo entre o Legião e o Atlético Ceilandense, pelo campeonato de futebol de Brasília, foi às dez da manhã de um dia útil.

No estádio Bezerrão, o público era de nove pessoas, rendendo um total de R$ 90. Talvez o público de Brasília se ressinta do fato de que o estádio não tem, digamos, um padrão Fifa.

Não faz mal; com vistas à Copa do Mundo, foi construída uma “arena” nova, o estádio Mané Garrincha, com capacidade para 71 mil espectadores. Só que, como alerta o jornal “Valor”, a média de público no campeonato estadual de Brasília, o “Candangão”, é de pouco mais de mil pagantes por jogo.

Continuo lendo o que escreve Patrick Cruz, em reportagem publicada na sexta-feira passada. Seu objetivo é mostrar a “face real” do futebol brasileiro.

Veja-se o caso do goleiro Adeilson, do União Cacoalense, de Rondônia. Ele chegou a passar nove meses sem time (e sem salário); arranjou-se como servente de pedreiro e entregador de folhetos publicitários.

Há também a história de um torcedor como Tibério Barret, torcedor do Auto Esporte de João Pessoa. Comemorava um gol de seu time contra o Sousa, no campeonato paraibano, quando caiu da arquibancada do estádio Almeidão —que desobedece ao padrão Fifa. Morreu de traumatismo craniano.

Personagens assim poderiam aparecer nas crônicas de Luiz Guilherme Piva, colaborador do blog de Juca Kfouri, que lança agora a coletânea “Eram Todos Camisa Dez” (ed. Iluminuras).

Ele se volta, assim como a reportagem do “Valor”, para o mundo dos campinhos humildes, dos meninos descalços e das bolas feitas de papel velho enrolado em fita crepe.

O assunto se presta a muita pieguice, mas Luiz Guilherme Piva sabe driblar esse perigo. Primeiro, porque é muito bom quando se trata de descrever as coisas com precisão.

“O campinho de terra, depois de uns dias de chuva, resseca no sol forte. Tem uns pedaços do barro que endurecem e ficam como lascas de ovo de páscoa. Outros pedaços cedem sob os pés e esguicham barro esmagado entre os dedos.”

Mesmo um garoto urbano, acostumado às quadras de prédio, pode reconhecer essas cenas da experiência simples, feitas ao mesmo tempo de precariedade e força, de fragilidade e abundância.

Não se está lamentando a falta de gramados perfeitos para as crianças do Brasil; que ninguém derrame lágrimas por isso. Trata-se, quem sabe, de lembrar que o jogo é mais importante do que o sucesso, e que a sensação da terra úmida nos pés é mais importante do que o jogo. Dane-se, portanto, o padrão Fifa.

Piva tem outra tática para evitar o sentimentalismo. Trata-se de reservar para o finalzinho do jogo a surpresa decisiva.

Tome-se, por exemplo, a história do camisa 5 que “morava e comia de favor numa oficina”, que tem “cabelo de estopa, pingando óleo”. É um miserável, que nunca se aventura além do meio de campo.

Serve, diz o narrador, como um escudo a proteger o seu gol. “Fora dali não tinha nada”, conclui o texto —mas acrescenta que, para o personagem, “talvez fosse uma bênção ter o que guardar”…

Em outro texto, Piva reflete sobre os saudosistas do futebol. Os saudosistas de hoje não são grande coisa, diz. Bons são os saudosistas de antigamente: “falavam de um futebol que eu não vi”.

Ele prossegue. Quanto mais passa o tempo, mais extraordinárias as jogadas. Vem o arremate. “Fica cada vez mais provável que o seu time venha, enfim, a vencer aquela decisão perdida, dolorosamente, em algum momento da sua infância.”

Um comentário final. É curioso que, num país ébrio de ufanismo futebolístico, seja tão forte a paixão pela derrota —pelo jogador fracassado, pelo time de várzea, pelos anos sem conquista de campeonato estadual.

Talvez porque, ao contrário do famoso lema, acreditemos que “o povo unido sempre será vencido”. A esquerda viciou-se na derrota.

Assim, rejeitamos o espetáculo global, os bilhões de dólares em jogo; não serão nossos. Há alguma usurpação nisso tudo.

Simpatizo com a atitude, mas vejo seus limites. Apesar das misérias da várzea, é provável que nunca tenhamos tido tantos times e jogadores como hoje em dia. De todo modo, não me deprimo com quem está na quarta divisão; ainda que a gastança com a Copa seja uma estupidez, o problema da injustiça se resolve em outro jogo, em outro campo.

]]>
5