A música de Guerra-Peixe
29/06/12 20:45Eu era bem criança, e estava assistindo a um programa de música clássica na televisão –acho que nem a TV Cultura existia naquela época, mas pode ser que sim. O apresentador, à frente da orquestra, anunciou a presença do próprio autor da música que seria tocada. Um compositor vivo? Era a primeira vez que eu via um. Subiu ao palco o maestro César Guerra-Peixe, naquela época com seus cinquenta anos, bastante corpulento e de uma simplicidade completa.
Era uma pessoa comum! Apesar do nome, que nunca me sairia da cabeça. Guerra-Peixe. Da música apresentada não me lembro; só bem mais tarde apareceu um LP dele, com seu concertino para violino e orquestra de cordas, e várias peças para piano. Na época eu gostava bastante da música nacionalista brasileira (ainda gosto), na medida em que, apesar de moderna, tinha muito de reconhecível em termos de melodia e harmonia.
O concertino era rápido, nordestino e ríspido, com o violino imitando sons de rabeca; ouvi-o agora, depois de muito tempo, ainda com prazer.
Escrevo isso porque amanhã, às 16h, na Laseland (av. Rebouças, 2210), a pianista Guida Borghoff e a violinista Eliane Tokeshi lançam um CD com obras para violino e piano de Guerra-Peixe. Quis recordar das minhas impressões sobre o compositor, enquanto ouço sua “Sonata no. 2”, de 1978, que é a primeira peça da gravação.
Guerra-Peixe é um daqueles casos que, começando no dodecafonismo, mudaram de estética, optando por uma linguagem mais “atrasada” (isso para os cânones vigentes aí por 1950, 1960).
Violinista ele mesmo, Guerra-Peixe trabalhou como arranjador e instrumentista em emissoras de rádio, com muito contato com a música popular. Houve a fase de estudos com o professor Hans-Joachim Koellreuter, defensor rigoroso das ideias de Schoenberg.
Nos debates políticos da época, Koellreuter conheceu a oposição de Camargo Guarnieri, maior representante do nacionalismo; digo políticos porque a esquerda, em que o Partido Comunista era predominante, se inclinava pela defesa da “arte popular” (como se sinfonias e sonatas para violino e piano ficassem mais ou menos populares se adotassem ritmos de baião).
De todo modo, há peças ainda dodecafônicas no CD lançado agora. Não vejo muita graça não, porque essas coisas parece que poderiam ter sido feitas por qualquer compositor em qualquer parte do mundo. Ainda que datadas, as peças nacionalistas pelo menos representam um momento, um espírito, da história brasileira.
Nesse caso, Camargo Guarnieri tem uma capacidade de elevação, de abstração, maior que Guerra-Peixe, a meu ver. Mas o nacionalismo deste, um pouco mais tardio no tempo, traz sem dúvida alguma dose maior de agonia; há algo de “murro em ponta de faca” no uníssono misterioso com que começa a segunda sonata para violino e piano, e o final da primeira sonata (1951) não é tão alegre quanto deveria.
São impressões iniciais, apenas. Guida Borghoff, a pianista, tolerou minha total falta de talento durante seis meses, em 1977, na escola Pró-Arte. Seu bom humor era notável. Fico contente de reencontrá-la nesse CD. Eliane Tokeshi é prova de como se aperfeiçoou a arte do violino no país. Os velhos LPs de música nacionalista brasileira sofriam muito com as desafinações dos instrumentistas da velha geração. Aqui, tudo é ao mesmo tempo preciso e vigoroso.
É pena que grande parte da obra de muitos desses compositores nacionalistas ainda não tenha sido adequadamente registrada, só contando com gravações antigas e raras, às vezes precárias em qualidade de execução e som. Os mexicanos, me parece, têm dado uma atenção bem maior a seus compositores, até a alguns que consideraríamos “obscuros” se comparados a Revueltas e Carlos Chávez.
É, acho que a cultura mexicana é quase uma prioridade de Estado… Basta pensar nos muralistas. Mas além de Revueltas e Chávez, não achei muitos CDs quando estive no México há dez anos. Coincidência: estou passando uma semana no México agora! Ainda não fui fazer compras, quem sabe acho alguma coisa.