Uma viagem romântica
23/09/12 00:46Acabo de escrever, depois de muito adiamento, uma orelha para a “Viagem ao Harz”, de Heinrich Heine, que logo sairá em tradução de Mauricio Mendonça Cardozo, pela editora da Universidade Federal do Paraná.
Vai um trechinho:
“Clássico inquieto e fantasioso, a “Viagem ao Harz” traça um zigue-zague entre a alma poética e o espírito crítico do autor. De um lado, Heine se encanta com as mocinhas rosadas do povo, que encontra pelas estradas e estalagens. De outro, sua pena se diverte em sarcasmos contra seus contemporâneos.”
Mas o melhor é transcrever um trecho do livro. Heine acaba de abandonar a faculdade de Direito, e em sua caminhada pelo interior da Alemanha, em meados da década de 1820, visita desde as alturas do Blocksberg (a montanha onde se reúnem as feiticeiras no “Fausto” de Goethe até as profundezas de uma mina. É depois de pousar na casa de uns mineiros que ele escreve isto.
Por mais que a vida dessa gente pareça sossegada e desprovida de qualquer agitação, trata-se, na realidade, de uma vida verdadeiramente autêntica e animada. É possível que a senhora anciana e trêmula, sentada atrás do fogão a lenha, em frente ao grande armário de cozinha, já estivesse sentada ali há mais de um quarto de século. E não resta a menor dúvida de que seus pensamentos e sentimentos estejam intrinsecamente ligados a cada entalhe do armário, a cada canto daquele fogão. Armário e fogão tinham vida agora, pois um ser humano incutiu-lhes uma parte de sua alma.
Somente uma vida profundamente contemplativa como esta, uma relação não mediada do homem com o mundo, poderia dar origem aos fabulosos contos de fadas alemães, cuja característica mais distintiva reside no fato de que, nessas narrativas, não são apenas os animais e as plantas que agem e falam como humanos, mas também os objetos, aparentemente inanimados.
Foi para um povo pensativo e pacato, na mansidão dos recônditos tranquilos de seus lares na alta montanha ou no meio da floresta, que a vida interior de tais objetos se revelou. Estes ganhariam, então, uma personalidade necessária e consequente, uma doce mistura de humor fantástico e gênio humano.
E é assim que, nos contos de fadas, o maravilhoso é contado com toda naturalidade: uma agulha e um alfinete perdem-se no escuro ao voltarem da alfaiataria; a palha e o carvão acidentam-se ao tentar a travessia dum riacho; a pá e a vassoura brigam no degrau da escada; o espelho, quando inquirido, mostra a imagem da mais linda mulher; e até mesmo gotas de sangue começam a dizer palavras sombrias e tenebrosas da mais compungida compaixão.