A compaixão não basta
03/10/12 03:00O público ri bastante em “Intocáveis”, filme de Eric Toledano e Olivier Nakache, em cartaz há algum tempo em São Paulo. É bem engraçada, sem dúvida, a sem-cerimônia, a mistura quase brasileira de pureza e malandragem revelada pelo personagem Driss (Omar Sy).
Ele é um imigrante africano com passagem pela polícia, que encontra emprego como cuidador do milionário Philippe (François Cluzet), tetraplégico depois de um acidente.
Muitas cenas se constroem a partir da ignorância quase selvagem, quase “rousseauniana”, de Driss. Ele se espanta, por exemplo, com o preço altíssimo de uma obra de arte que lhe parece apenas uma série de respingos espalhados sobre a tela.
Em vários momentos, o filme recorre a um mesmo expediente cômico: Driss fecha questão sobre alguma tarefa que não irá desempenhar em hipótese nenhuma, para logo em seguida, depois de um corte, a plateia se divertir assistindo ao enfermeiro fazer exatamente aquilo que lhe tinha sido ordenado.
Imagino que, depois de algum tempo, a maior parte das tiradas do personagem tenham sido previstas pelos espectadores. Isso não importa muito, porque o riso é menos provocado pela surpresa do que pela simpatia.
A vontade de rir nasce do fato de que o próprio ator ri com uma facilidade maravilhosa, pelos motivos mais comuns. Driss tem um pouco do caipira, à la Mazzaropi, que fica de queixo caído ao ver o luxo de um banheiro e morre de medo de avião.
Para sorte dos espectadores, o tetraplégico de quem ele deve cuidar reduz a poucos minutos seus instantes de agonia e depressão. Prefere divertir-se com o empregado, assustando-o quando convém, enganando-o outras vezes, numa espécie de jogo intelectual.
Os dois, neste filme que é feito de pura felicidade e vida, saem ganhando muito do encontro. Baseando-se numa história real, ainda assim “Intocáveis” parece, não digo totalmente falso, mas um bocado artificial e construído.
Como em qualquer roteiro de “Sessão da Tarde”, surgem pequenas dificuldades no meio do entrecho, apenas para que, superadas, o fim do filme seja especialmente satisfatório.
O encontro do bom selvagem e do aristocrata em fim de linha poderia ser mais caricato, em todo caso, se os diretores não soubessem que o clichê precisa ser maquiado para um público que já não é tão ingênuo assim.
Desse modo, o bom selvagem é também um sujeito de maus antecedentes, e seria preciso um ricaço muito especial para admiti-lo em sua própria mansão. Por isso mesmo, Philippe surge como alguém que gosta de se arriscar —tanto que se acidentou num voo de parapente. Prefere a emoção, a loucura e o imprevisto à rotina médica em que está encarcerado.
Nada disso, a rigor, fugiria das fórmulas mais batidas do cinema “independente”. É o chamado filme “humano”, com personagens em situações muito raras de acontecer, por trás de cuja estranheza sempre estarão pulsando sentimentos essenciais e bons.
Houve um momento em “Intocáveis”, contudo, em que uma verdade, a meu ver, mais profunda, se deixa entrever.
É quando Philippe justifica, a um amigo, a escolha imprudente que fez. De todos os funcionários que cuidaram dele, Driss era o único, explica, que não lhe dirigia olhares de compaixão.
De fato, Driss tem sempre na ponta da língua alguma piada incorreta sobre tetraplégicos e chega a fazer experiências “científicas” com a insensibilidade nas pernas do seu paciente.
Falando sobre a velhice e a doença, Baudelaire evoca “o horror secreto” que existe no olhar dos que se dedicam aos inválidos. Pior ainda se lermos esse horror nos olhos de alguém que, no passado, desejáramos com avidez.
“Intocáveis” talvez traga com isso uma lição contra o “politicamente correto” e também contra os que o consideram uma hipocrisia.
Não é num espírito de compaixão (pelos pobres, pelos doentes) que surge um relacionamento humano autêntico. Nem mesmo num espírito de “respeito” convencional. Certamente, nada se pode esperar do contrário disso —do desrespeito, do desprezo, do preconceito.
O caminho, mais difícil, não nasce da superação forçada de uma assimetria. E sim da aproximação de duas misérias desiguais, de duas pobrezas diferentes, de duas dores incompatíveis, próprias a cada um, e que, sem trocarem de lugar, pertencem ao fundamento geral (e superável) da fragilidade humana.
parabens . você colocou com sabedoria a visão do romantismo e do Emile de Rousseau, sobre o”bom selvagem” e a bondade natural do ser humano.também mostrou o olhar “do outro”, um olhar bonito que viu a essencia do outro e não apenas um aleijado. e ainda por cima deu uma gozada sobre o politicamente correto, que na minha opinião é um saco. Aliás, onde se viu politico correto? existem uns poucos E ACABAM DE SER ELEITOS em todo o Brasil!!! Viva!!! um abraço.
O filme é bacana,sim.Ele até aponta que há saídas muito mais humanas do que essa imbecilidade do “politicamente correto” que limitada a obrigar os cidadãos a dar lugar na fila a deficientes físicos.Dificulta a aproximação,portanto se desvia a atenção do que o deficiente realmente demanda! Mas…vamos lá:”Perfume de Mulher” e outros filmes já fizeram isso.
o filme ainda está em cartaz por aqui, em hamburgo (alemanha), mais eu o vi na internet … é um belo passatempo… rola até um baseado… coisa que os caretas de plantão ainda vêem como coisa anormal…
Olá Marcelo, vejo sua crítica como parte da diversidade que compõe o mundo. Viva as diferenças, inclusive as de opiniões. Sou tetraplégico nas mesmas condições físicas do ator, só não na financeira, risos. Porém, ainda assim, sou um cara feliz e de bem com a vida. Talvez, se minha história se tornasse um filme, sua crítica fosse 10 vezes mais severa, não tendo minha jornada tempo para tristeza. Sei que parece clichê e compreendo sua visão de homem que não consegue nem se quer hipoteticamente colocar nessa situação. Depender não é fácil, mas amadurecer é possível. Minhas pedras são degraus e minhas dificuldades onde mais tenho aprendido. A nossa força só se manifesta quando convocada, por isso, não há como imaginar qual seria nossa reação. Viva as diferenças, que nos faz seres de inúmeras personalidades e possibilidades. Se reclamar me fizesse voltar a andar, eu reclamava todo dia, mas, ao invés disso favoreço minha ec possibilidades. Não clamo por perfeição p/ exortar satisfação. Vivo com o que tenho, logo me mantenho no contentamento de quem enxerga gratidão. Só nos damos conta do que temos, quando o perdemos. Fiquei 6 meses em uma UTI ligado a um respirador. Um dia fui re-convidado a respirar, pois, enfim, estava apto para singela condição. Nesse dia fui apresentado ao AR, algo antes consentido embora não concebido. Hoje agradeço pelo que tenho e não reclamo do mal tempo. Sempre dias melhores virão, onde sorriso e gratidão são a melhor forma de encarar a vida. Não tenho tudo, porém, não me falta nada, porque meu caminho eu construí com os passos de minha alma. Em novembro lanço meu livro: Minha Boca Meu Caminhar, uma autobiografia que muitas risadas irá roubar. Creio que muitos acharão forçação de barra, mas minha verdade não pude ocultar. Peço desculpas se minha felicidade vier a incomodar, mas toda crítica para quem é otimista se torna construtiva. O importante é amar, com a certeza de que a vida tem muito a lhe ofertar seja qual for a situação. PS.: O único defeito do filme é a zona erógena de Philipe ser nas orelhas, pois já temo quando for transar, vir alguma “mina” nas minhas orelhas querer “ordenhar”, risos.
Seu comentário foi muito pertinente e inspirador, de fato, apesar de eu mesmo tes identificado alguns clichês e formulas, não posso negar que o filme mostra muito disso tudo que falou, e de fato não consigo me imaginar nessa situação, parabéns pela escolha de ser feliz e com isso inspirar outros a serem mais felizes, mais leves, se importar mais com as pequenas vitórias, não nos deixar abater ou irritar por qualquer coisa.. enfim, obrigado pelo relato, abraço!
muito bem!!!! gostei de você!!! é isto aí, a gente é feliz APESAR DOS PEZARES e ter problemas pode não destruir nossa essência, pode até torna-la melhor. Um abraço!!!!
Só quem necessita da ajuda de outra pessoa para fazer qualquer coisa corriqueira a um simples mortal sabe o quanto machuca e o quanto dói na alma enxergar a compaixão nos olhos de quem nos rodeia. Ninguém precisa ter pena de ninguém. É disso que o filme trata e ponto final.
Belo e sensível!
As personagens são simpáticas, mas o filme é bem mais ou menos. Penso ser interessante você ter começado o artigo indicando que a plateia ri bastante, ao longo da sessão. Também percebi isso. No meu caso, o pior foi que não tive vontade de acompanhar o riso na grande parte das vezes, e fiquei me perguntando se, quando as personagens riem, existe algum mecanismo psicológico que faça com que a plateia se sinta constrangida a rir junto. Foi a impressão que tive neste filme. De resto, as expressões do Cluzet estavam parecidíssimas com as de Dustin Hoffmann, o que me fez simpatizar ainda mais com ele; e Omar Sy é bastante carismático. Mas, só. E eu só acabei vendo este filme ontem, porque os ingressos para Pietà, no Festival do Rio, estavam esgotados. A pipoca do Arteplex valeu a sessão… 🙂
P.S.: de entretenimento ou mais aos moldes de Hollywood ou mais mainstream… não sou muito conhecedora dessas classificações…
Não o vejo como um filme independente, mas como um excelente filme francês de entretenimento. Já vi ótimos filmes na antiga “sessão da tarde”, de “Bonequinha de luxo” a “My fair lady”…
O último paragrafo desta sua análise, profundo, nos ajuda assim como o filme na compreensão da vida e das questões que ela nos apresenta.
Às vezes é através do olhar alheio que se torna mais fácil esta compreensão.
Este relacionamento autêntico a que te referes surge, quando percebemos que o outro que passamos a cuidar é mais do que um corpo em feridas, que precisamos limpar várias vezes por dia, de onde saem canos com líquidos mal-cheirosos e que nem sempre conseguimos compreender. É o repositório de um ser humano, às vezes muito amado, que se entrega a nós não por opção, mas porque não há mais nada a fazer. Outras vezes, um desconhecido, cujo olhar aprendemos a entender e cuja matéria cuidamos como obra de Deus.