Pajelanças homéricas
21/11/12 03:00 Para vencer a crueldade é preciso ser mais cruel ainda. Ajudar o próximo é tornar-se cúmplice da violência que o levou a pedir ajuda. Apesar de todo o progresso técnico, o preço do pão não diminui.
São ideias do velho Bertolt Brecht, em plena ebulição revolucionária europeia depois da Primeira Guerra Mundial.
Quem as ressuscita, a propósito da crise econômica de Espanha, Portugal e Grécia hoje em dia, é José Celso Martinez Corrêa, no espetáculo “Acordes”.
Com textos de Brecht e música de Paul Hindemith, além de muitas intervenções próprias, José Celso criou uma espécie de ópera-teatro multimídia, em cartaz no Oficina até 23 de dezembro, com transmissões ao vivo pela internet.
O público é convidado a participar moderadamente do espetáculo, respondendo “sim” ou “não”, como uma espécie de massa coral, às perguntas propostas pelo encenador.
Apesar das suas presumíveis convicções de esquerda, dificilmente alguém da plateia estaria disposto a levar às últimas consequências o elogio da crueldade revolucionária defendido no texto.
Nem mesmo o próprio José Celso, claro. Os atores e atrizes de sua companhia já foram mais bonitos do que atualmente, mas como sempre derramam o mel de seus olhares diretos sobre os espectadores alinhados na arquibancada do teatro.
Mais do que isso, oferecem pedaços de melancia à plateia, num momento em que a peça se abre para uma espécie de comunhão eucarística. Há outras referências ao imaginário cristão, aliás muito bem integradas à narrativa. Quando um ator se limpa da maquiagem que o desumanizava, para se tornar “apenas uma pessoa”, seu lenço sujo de tinta azul e vermelha se apresenta como um Santo Sudário.
Despir-se de si mesmo, deixar de se considerar alguém, tornar-se “ninguém”: a humildade cristã devora, nesse espetáculo, o materialismo de Brecht.
“Morte, onde está tua vitória?”, perguntava São Paulo na epístola aos Coríntios. José Celso não seria José Celso, de todo modo, se não misturasse à mensagem bíblica todo tipo de referências, criando uma vasta pajelança contra o capitalismo.
Assim, temos Santos Dumont pelado, mas de chapéu, tomando banho de água fria; o médico-legista Harry Shibata com uma serra elétrica; depoimentos de índios guarani-caiová; vídeos do ministro Gilmar Mendes; e homenagens a Henriette Morineau.
Poderiam aparecer Madame Satã e Giordano Bruno, Picasso e Friedenreich, pouco importa: a arte de José Celso, verdadeiramente grande, tem a capacidade de integrar tudo o que quiser numa bagunça que é apenas aparente.
E talvez sejam aparentes, também, as contradições e anacronismos da “mensagem” proposta pela peça. Com certeza, apesar de todo o desespero dos portugueses, dos espanhóis e dos gregos, a crise atual não se compara à de 1929; e o preço do pão, ainda que a barbárie continue, baixou muito daqueles tempos para cá.
Por isso mesmo, o Brecht vivido por Marcelo Drummond usa uma roupa dourada, e todo seu antigo esforço de mobilizar a massa da plateia é figurado, com grande poesia, pelo uso de serpentinas brilhantes que se trançam entre os espectadores, como uma rede carnavalesca e mágica, convidando-os delicadamente a sair de seus lugares.
Ideais mortos são assim revividos religiosamente, sincreticamente. Teatro e política não se unem numa coisa só, mas se transcendem numa catarse ritual.
Os mesmos problemas, com estilo parecido, mas sem a aspiração dionisíaca, estão presentes em outra excelente peça em cartaz. Trata-se da “Odisseia” de Homero, com dramaturgia de Samir Yazbek, direção de Marco Antonio Rodrigues e os esplêndidos atores (recém-formados) do grupo Estúdio da Cena.
Novamente, tudo pode entrar no espaço abafado do Galpão do Folias. Aquiles é Che Guevara, Penélope transformou Ítaca num vasto empreendimento imobiliário de luxo, a ilha dos lotófagos se traduz numa cracolândia admiravelmente realista.
Dentro de todos esses contextos, que não parecem nada forçados graças à encenação vibrante e criativa, Ulisses corresponderia ao velho ideal de esquerda procurando em vão uma terra firme nos dias atuais.
Poderia parecer apenas um sintoma de nostalgia ideológica, apesar da imaginação espantosa do espetáculo (que transforma, por exemplo, uma cena de estupro em verdadeira proeza de concisão poética). Mas a peça, na última hora, cria uma pausa (“tchecoviana”, diz o texto) –e as ilusões se dissipam.
Já o teatro, aqui como em “Acordes”, continua –evai bem de saúde.
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