Mais um conservador
22/11/12 19:43Apesar de escrito logo depois da vitória de Obama em 2008 (daí seu título), “After the Hangover –The Conservatives’ Road to Recovery” parece fixado nas piadinhas sobre o comportamento sexual de Bill Clinton, entre outras fofocas do gênero.
O autor do livro, R. Emmett Tyrrell Jr., é o fundador do “American Spectator”, uma revista mensal de direita. Para ele, falar do “coletivismo” de Obama é falar de um fato consumado; menos usual é sua opinião de que o presidente democrata projeta um futuro “peronista” para os Estados Unidos.
O tom delirante é amenizado pelo bom humor. E azedado pelo gosto de Tyrrell por falar mal de seus próprios correligionários. Característica que, segundo ele mesmo, é um dos piores defeitos dos conservadores, que deveriam fazer como a esquerda, sempre disposta ao jogo do elogio mútuo.
Os conservadores deveriam, ademais, prestar mais atenção neles mesmos
. Cada conservador ignora os demais, diz Tyrrell, que parece quase se queixar de que não leiam os livros que ele próprio
No meio das fofocas, uma curiosa. O escritor William Bennett, que fez sucesso com seu “Livro das Virtudes” e com o “Livro das Virtudes para Crianças”, pode defender bem o ideário conservador –mas foi encontrado gastando 8 milhões de dólares numa mesa de jogo em Las Vegas.
Dado esse tipo de revelações, soa bastante falsa a crítica do autor à “vulgaridade” da cultura moderna, que ele não se importa em acomodar com seus elogios às redes de rádio e TV conservadoras –as quais transmitem a boa causa “num nível popular”.
Resta pouco de aproveitável do ponto de vista teórico de toda essa falação. O capítulo 5 do livro esboça uma definição do conservadorismo americano. A origem do movimento no pós-guerra se deve, segundo Tyrrell, ao concurso de três grupos diferentes: os advogados do Estado mínimo (contra a política de Roosevelt), os anticomunistas e os tradicionalistas.
Naquela época, foram acusados de pessimismo e de nostalgia pela Idade Média. Nada mais falso, diz Tyrrell; afinal, a confiança no desenvolvimento industrial americano e o otimismo quanto ao futuro foram as marcas do governo Reagan. São os conservadores, lembra Tyrrell com razão, os verdadeiros liberais (isto é, adeptos do laissez-faire). É uma confusão tipicamente americana, como sabemos por aqui, chamar de “liberal” quem é de esquerda.
A narrativa “teórica” de Tyrrell logo se perde, entretanto. O autor não resiste ao fato miúdo, e se lança a várias páginas de argumentação para mostrar que os anticomunistas estavam certos ao apontar a presença de espiões soviéticos no governo americano. Alger Hiss, por exemplo, continuou sendo considerado inocente pelos esquerdistas, enquanto tudo indicava que ele era comunista mesmo.
Temas como a luta contra a discriminação dos negros no Sul dos EUA recebem menos atenção, nesse histórico das ideias conservadoras, do que fatos desse tipo.
A discussão volta a um nível mais amplo quando Tyrrell adota a definição do britânico Michael Oakeshott do conservadorismo. Não um conjunto de ideias, mas uma atitude, uma disposição.
Os conservadores focam “numa propensão a usar e desfrutar o que está à disposição, em vez de desejar ou procurar alguma outra coisa. Tiram prazer no que está à vista mais do que no que foi ou no que será. A reflexão pode tornar clara uma gratidão adequada ao que está disponível, e consequentemente o reconhecimento de um dom, ou de uma herança do passado; mas não existe a mera idealização do que já passou e está morto. O que se estima é o presente; e é estimado não por que se leva em conta suas conexões com uma antiguidade remota, nem porque se considera que é mais admirável do que qualquer outra alternativa possível, mas porque se leva em conta a sua familiaridade”.
É, sem dúvida, a posição de quem herdou uma fortuna da família –os termos estão todos presentes nesse raciocínio—e não se preocupa muito com o fato de que, para muita gente, não há tanto a desfrutar e agradecer na situação presente.
Claro, sempre há –o pobre se conforma com o que tem, muitas vezes. Mas a ideia de que todos possam assentir com isso é tão utópica quanto o sonho de justiça social, sempre acusado de “utópico” pelos conservadores.
Os três grupos originais do conservadorismo americano –anticomunistas, tradicionalistas e adeptos do “laissez-faire”—teriam, de todo modo, de ajustar suas diferenças internas.
Tyrrell conta que o responsável por essa “harmonização” foi Frank Meyer, editor da “National Review”. Seguem-se fofoquinhas sobre os hábitos pessoais de Meyer, a quem Tyrrell apresentou, numa modesta vivenda rural nas imediações de Woodstock (!) o jovem filho de nosso querido Irving Kristol.
Em meados da década de 1960, Meyer elaborou os “seis artigos de fé” que, segundo Tyrrell, todo conservador se inclina até hoje a subscrever. São os seguintes:
“O conservadorismo assume a existência de uma ordem moral objetiva baseada em fundamentos ontológicos”;
“Dentro dos limites de uma ordem moral objetiva, a referência primária do pensamento político e social conservador, assim como de sua ação, é o indivíduo”.
“O formato do pensamento conservador americano é profundamente anti-utópico”.
“É com base nestes dois últimos pontos –preocupação com o indivíduo e rejeição de desígnios utópicos—que nasce a atitude contemporânea do conservadorismo americano com relação ao Estado… Os conservadores podem variar quanto ao grau em que deve ser limitado o poder do Estado, mas estão de acordo quanto ao princípio da limitação”.
“Similarmente, os conservadores americanos se opõem ao controle estatal da economia.”
“O conservadorismo americano deriva dessas posições seu firme apoio à Constituição dos Estados Unidos tal como concebida originalmente –no intuito de realizar a proteção da liberdade individual numa sociedade organizada limitando os poderes do governo.”
“Em sua dedicação à civilização ocidental e no seu franco e orgulhoso patriotismo americano, os conservadores veem o comunismo como uma ameaça armada e messiânica à própria existência da civilização ocidental e dos Estados Unidos”.
O engraçado desses princípios é que podem resumir-se num só: anticomunismo. Apoio à liberdade individual, crença numa ordem moral objetiva (isto é, não relativista), e defesa de algum limite para os poderes do Estado são ideias que a maioria dos progressistas e esquerdistas moderados poderiam subscrever também.
A questão é que os conservadores tendem a achar qualquer coisa –por exemplo, o fim da legislação racista ou a crítica à desregulamentação do sistema financeiro—como atentados à “liberdade individual” (dos racistas do sul) e sinais de estatismo econômico.
É que, no fundo, a sociedade americana como um todo nunca foi fascista ou comunista, e mesmo a esquerda por lá tem tendência anticoletivista.
A solução, claro, é chamar de coletivista, comunista ou “peronista” um presidente afinal moderado, como Obama. Qualquer iniciativa de transformação será chamada de “utópica” por esses supostos “realistas”, tomados do delírio de ver em Obama, Clinton ou quem quer que seja um perigo para a civilização ocidental.
“Os conservadores focam…”? Rapaz, procure escrever em português, que da próxima prometo ler até o fim.
“O formato do pensamento conservador americano [talvez não só americano] é profundamente anti-utópico”. Interessante!… Mudando de assunto para lembrar a data de nascimento de Voltaire, que foi ontem (li aqui na Folha)… Apesar de suas descrenças irônicas, de seu realismo (“vou cuidar do meu jardim”), ele integrou um movimento de ideais… Em um de seus contos, “Elogio histórico da Razão”, no qual fala sobre a razão e a verdade em busca de um lugar no mundo, ele diz: “Enfim, ousou-se pronunciar a palavra tolerância. – Muito bem minha cara filha, gozemos desses belos dias; fiquemos aqui, se eles perdurarem; e, se as tempestades vierem, voltemos ao nosso poço.” //… E em “Sonho de Platão”, ainda que em tom irônico, ele enuncia uma verdade do seu tempo: “Platão sonhava muito, e nós não sonhamos menos depois dele”…