Medinho à moda antiga
09/01/13 03:00Acho que a primeira cena realmente horrível (açougue, sangreira) que vi no cinema foi em 1982. O filme até que era bom: “A Marca da Pantera”, de Paul Schrader, com Nastassja Kinski –um remake do clássico em preto e branco de Jacques Tourneur, sobre o qual falarei depois.
Um sujeito se aproxima da jaula da tal pantera, e, zás! Volta com um toco em vez do braço. Vemos o sangue, os tendões e um osso aparecendo, depois do ataque traiçoeiro do felino.
Lembro-me de ter pensado, há 30 anos, no destino que me esperava como espectador de cinema. Era, de fato, só o começo.
Por maior que tenha sido a evolução dos costumes nas últimas décadas, cenas de sexo só são tão explícitas assim no cinema pornográfico. Já a explicitude da violência está em toda parte.
Está em “O Hobbit”, por exemplo. Tenho tido bastante tolerância, por razões familiares, com filmes infantojuvenis. De “Alvin e os Esquilos” a “Piratas do Caribe”, assisti a muita coisa nos últimos anos, sem desgostar em princípio de quase nada.
“O Hobbit” talvez tenha marcado meu ponto de saturação. É longo demais, violento demais, chato demais, com todas aquelas referências a um suposto universo mítico de orcs, greeks, crocs, blips e não sei mais que tipo de entidades, tão artificialmente (pelo que vi no filme) produzidos pelo autor da saga, J. R. R. Tolkien.
Tudo já é feito para consumo dos fãs, e quem não está familiarizado com “O Senhor dos Anéis” e suas sequelas se vê arremessado a um mundo em que temas “arquetípicos”, do tipo a busca, o herói, o dragão, o tesouro, parecem produzidos em laboratório.
Seja como for, antigamente os monstros e maldades desse tipo de filme tendiam a provocar algum medo nas crianças. As cenas mais extremas de “O Hobbit” apontam, entretanto, para outra reação.
Não se trata de imagens ameaçadoras, das que fariam parte dos piores pesadelos infantis.
O medo é contrabalançado pelo que os monstros têm de repulsivo; sua feiura chega a ser cômica.
Certo gnomo, dominando hostes infernais, surge com uma papada tão flácida que ficamos em dúvida se não é uma barba feita de pele pardacenta. Um bicharoco velhaco, meio lesma, meio lêmure, com vozinha de bruxa, suscita doses iguais de horror e de desprezo.
A destruição de tais inimigos se torna menos uma questão de justiça que de higiene.
Também na série dos “Piratas do Caribe”, a tripulação de um navio fantasma era tão nojenta, com moreias saindo pelo nariz e cracas no pescoço, que seu potencial aterrorizante diminuía um bocado.
O horror se vê superado pelo grotesco, o que não deixa de ser uma vacina psicológica. O medo de verdade, o medo real, fica assim reservado para outro tipo de cinema, e para outra faixa etária.
Saíram em DVD alguns filmes do diretor Jacques Tourneur, entre eles “Sangue de Pantera” (“Cat People”), o clássico de 1942 que Paul Schrader iria refazer quarenta anos depois.
Nessa história, assim como em “O Homem Leopardo”, do ano seguinte, o que interessa é criar no espectador um outro tipo de medo. Ninguém fica muito impressionado com as estranhas maldições que ameaçam os personagens, e pouquíssimos momentos chegam perto da hipótese de um arrepio.
Cria-se um medo, digamos, agradável, ou melhor, poético, nas cenas mais ameaçadoras de “Sangue de Pantera”. Poucos diretores sabem interromper a música de fundo como Jacques Tourneur. À noite, ao longo de um muro branco, é o silêncio o que mais inquieta
A mocinha sente que está sendo seguida. Será por alguma pessoa, por bicho, ou por algo que não é deste mundo? Outro filme, a mesma situação. Ela está agora presa num cemitério; nada se passa, nada se vê. Apenas o galho de uma árvore se verga lentamente…
Piscina. Noite. A luz se entretece na água em preto e branco. Você ouviu alguma coisa?
Mulheres vitimadas ou possuídas por algum instinto predatório e sobrenatural esgueiram-se nesses filmes. Mesmo “Quando a Neve Voltar a Cair”, drama antinazista bastante convencional que faz parte do pacote de DVDs, beldades delicadas (Tamara Toumanova, Maria Palmer) são vistas de longe, numa espécie de tocaia.
Sexo e violência, como sempre. Mas na dosagem e nos filtros de uma coisa e outra está o segredo de todo o charme, humano ou felino, que Tourneur sabe transformar em cinema.
Diante de tudo devo salientar que o cinema norte americano vem dando grandes passos com os seus agentes empacotados nas suas “latas” de filmes. hoje…, temos até avatas substituindo o antigo Tarzan da mata para conquistar nossas matas com seu ilusionismo.
erivaldoresende.blospot.com
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PS: o título do seu texto também me fez lembrar uma coisa muito bacana, que de certo modo tem a ver com o assunto tratado: as aproximações românticas à moda antiga, inclusive “de um antigamente não tão antigamente”, faziam sentir um “temor”, um “frio na barriga”. Acho bacana pensar sobre essas coisas.
Não conheço a obra do Tolkien e confesso nunca ter visto “Piratas do Caribe” – apesar de ter gostado do Johnny Depp durante um período dos meus 20 anos, e de hoje em dia admirar a beleza estranha da Keira Knightley. Mas já vi a “Marca da Pantera”, em 1986, em VCR. Lembro do filme, mas não com detalhes. Na época achei interessante, mas não sei o que acharia hoje em dia. E, para completar, concordo demais com a sua afirmação final: “na dosagem e nos filtros de uma coisa e outra está o segredo de todo o charme, humano ou felino.”
E quem disse que O Hobbit é um filme para se sentir medo?? Ele fala de amizade entre pessoas, coisa tão simples e tão desprezada em dias atuais. Agora, me perdoe caro senhor mas, colocar O Hobbit, Alvin e Piratas na mesma categoria, é de lascar.
Há pessoas que vivem à parte da sociedade e acham-se farois a iluminar o caminho.Falam para reduzido publico e ainda assim se acham.
Expedito,
Junto-me ao reduzido público para questionar…se você não gosta por que lê? Se lê e não gosta por que não critica o conteúdo em lugar de desdenhar quem o escreveu? A sociedade é ampla e tem gostos e interesses variados, a internet tem ampla oferta para o grande público com temas, não queimemos os livros pelas ideias, tratemos de entendê-las ou ao menos respeitá-las. Abs.
Infelizmente, você tem razão quando fala em reduzido público, Expedito. Mas a falta de interesse da maioria não é culpa do reduzido público. Cada um que goste e aprecie o que quiser, de acordo com o seu intelecto.