Tempo de Kindle
23/01/13 03:00Ando meio cansado dos tradicionais elogios ao livro impresso. Aquela conversa de “adoro cheiro de livro” não me convence muito; de tão repetitiva, parece perder a sinceridade que possa ter tido, tornando-se talvez só um clichê.
Não sei se muita gente apreciava de fato o cheiro do livro antes de surgir a ameaça do Kindle e outros formatos eletrônicos.
São raros, aliás, os livros que têm cheiro de fato, a não ser que você afunde o nariz dentro deles, atividade dificilmente compatível com a da leitura propriamente dita. Tudo bem, alguns livros da infância trazem esse tipo de memória guardada nas páginas.
Mas a encadernação ou a cola podem até produzir um odor próximo do amargo e do enjoativo: algumas edições de arte, com papel brilhante e pesado, estão nessa categoria.
Além de apresentarem o defeito de refletir a luz, se a lâmpada for forte demais.
Quanto ao contato da pele do dedo com o papel, não sei que prazer se tira disso. Já me cortei com as bordas de edições muito perfeitas. O papel mais macio, por sua vez, pode exigir uma lambida nos dedos de vez em quando, coisa que na minha opinião fere um pouco a etiqueta de qualquer escritório ou biblioteca. Um pouco mais e estaremos todos mexendo os lábios durante a leitura.
É que todo esse apelo à “fisicalidade” do livro tende a ser uma traição, acho, do que há de mais espiritual no ato de ler. Não é prazer que deva ser contaminado por apelos táteis, olfativos ou, pronunciemos a palavra, gastronômicos.
O livro impresso, quando se manifesta na conversa sobre tato e perfume, inscreve-se no mesmo capítulo que mobiliza os adeptos da “slow food”, os especialistas em charutos, os que percebem notas de canela e mirtilo no vinho não sei das quantas. É vontade de refinamento, decorada e repetida num esforço de autoconvencimento.
Quanto à praticidade, tenho também minhas dúvidas. Não é fácil segurar nas mãos uma boa edição de “Guerra e Paz”. A versão encadernada pesa muito. Em formato de bolso, é raramente resistente aos meses de investida. Em dois volumes? Aí não vale.
Tenho livros baratos que se despedaçaram antes de eu chegar ao final. Livros mais caros, de capa dura, resistem obtusamente à informalidade e ao conforto de um uso cotidiano. O papel antigo fica amarelo e ganha manchas. O papel de luxo, tipo bíblia, cria orelhinhas e se rasga facilmente. Um dicionário grande, editado em volume único (penso no “Houaiss”) é objeto de alto risco. Em vários volumes? Sempre erro ao calcular a ordem alfabética.
Resultado: comprei um Kindle, numa viagem, há coisa de dois anos. O produto agora está disponível no Brasil.
Fica o testemunho: nunca uso a geringonça. A ausência de cheiro é o de menos. Os problemas são outros. Em primeiro lugar, é muito chato ler qualquer livro em que o texto tem a invariável aparência de um documento do Word. Será incompetência minha ou toda a arte da tipografia desaparece com o Kindle?
E as capas? Não existirão mais? Voltamos ao século 19 com essa novidade eletrônica. Além disso, não me conformo em pagar, digamos, quarenta reais apenas pelo direito abstrato de baixar um arquivo literário na máquina.
A abstração do Kindle tem outra consequência, mais grave do que a questão do cheiro do papel. É que, como em toda tecnologia contemporânea, o espaço entra em vias de desaparecimento, sendo substituído pelo tempo. Não ficam mais evidentes a página de trás, a página da frente, a página par, a página ímpar, a grossura do livro que estamos lendo, ou o seu lugar na prateleira.
Tudo passa a se situar numa névoa temporal, entre o “agora” e o “não ainda”, sem o “para trás” ou o “mais adiante”. Por isso se fala na “memória” do computador, e não no seu “armário” ou no seu “depósito”. Última vitória do tempo, o sistema de arquivos em “nuvem” eliminou o problema do “espaço em disco”.
Com o Kindle, você nem precisa de marcador de livro: ele liga sozinho na página em que você interrompeu a leitura. Só que, assim, você também deixa de folhear o livro e reler por acaso alguma passagem.
Claro que vão inventar, um dia desses, a “função folhear”, e um comando de produção de odores, assim como os computadores imitam o barulho de páginas sendo viradas. Mas aí eu já não estarei, provavelmente, lendo mais coisa nenhuma. Mais uma vitória do tempo, aliás.
Eis ai o mal humano! se algo é escrito em folha de papel; logo causará dano as florestas. Se é escrito em componetes eletronicos, “os rios sentirão as consequencias quando as sucatas forem lançadas ao lixo! nós não somos confiaveis mesmo.
Não entendi o que quis dizer com “função folhear”, mas já vi aplicativos no IPad em a gente “passa a página” como se fosse livro… Até dobra!
Agora, não imagino ninguém lendo “Grande Sertão: Veredas” ou “A Fenomenologia do Espírito” num Smartphone!
As telas de luz de lítio só vão funcionar para “notas” do facebook… Ou artigos de jornal!rsrsrs!
É um prazer ler seus textos. Quando inventarem a “função folhear”, um dia desses, espero que você ainda esteja por aqui, sim, lendo várias coisas e nos contando sobre elas! Nunca li “Guerra e Paz”, vi apenas o filme. Gosto muito do personagem do Henry Fonda, Pierre, e seria interessante saber como o livro o descreve. O Andrei também é um bom personagem.
Vejo que este cara esta levando algum dinheiro por baixo dos panos, falar mal de um objeto como os e-readers é no mínimo estupido, tente manter as suas palavras nos próximos dois anos tirei até um print das asneiras deste Marcelo, “cheiro de papel” ahahah, “folhear” meu caro Marcelo o mais importante é o conteúdo de um livro e isto não se perde!!! Lamento pela sua imerecida critica ao Kindle, reveja seus conceitos, pois para mim você esta vendendo a sua opinião.
Obrigado pela dica! Não vou mais gastar meu dinheiro com essa bugiganga.
Não entendi a reclamação sobre tipografia, os e-readers permitem escolher entre diversas fontes para leitura e não só isso, pode-se escolher também formato, tamanho e margem. E o melhor, ler todos os livros na fonte/tamanho/formato que mais lhe agradar.
Achei meio contraditório você falar sobre “vontade de refinamento, decorada e repetida num esforço de autoconvencimento” e depois reclamar da falta de capa, grossura, espaço na prateleira.
No e-reader também é possível fazer anotações em trechos ou marcações e depois acessar essas anotações indexadas com apenas 1 toque.
Lembrando que estamos falando de e-reader e não tablet com aplicativo de leitura que é uma experiência completamente diferente e desgastante, pelo menos pra mim.
Bom, eu ando de metrô e é o único tempo que tenho pra ler durante a semana. Ficaria impraticável ler por exemplo “Guerra dos Tronos” com uma mão pra me segurar e outra pra carregar o livro terminaria o ano com um braço maior que o outro. Com o e-reader eu levo comigo pra todos os lugares uma centena de livros, artigos, livros técnicos, etc…
Comprei um Nook, e não trocaria por nenhum outro, muito menos por um Kindle, com sua restrição de formatos (somente da amazon). No Nook posso colocar quaisquer epubs e outros formatos como pdf bastando para isso um cabo usb ou cartão de memória.
Faço das palavras de Billy Madison as minhas, para responder este artigo. http://www.youtube.com/embed/5hfYJsQAhl0?feature=oembed&wmode=opaque
Nada a ver, Microfrango!
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Tenho um Kindle e gosto bastante, mas continuo também comprando livros de papel. Em relação à tipografia, gostaria de informar ao colunista que existe uma opção no Kindle para ativar a fonte nativa do livro, ou seja, o livro só terá a cara de arquivo do Word se a editora não disponibilizar uma outra fonte. Aí nesse caso vai depender de cada edição. Recentemente comprei um livro para o Kindle e ele tinha a opção da fonte original.
Então o livro impresso não é grande coisa, e o livro eletrônico tem problemas. O que o colunista sugere? Telepatia?
Pessoal, gostaria de discordar com a opinião do colunista. Recentemente fui presenteado com um Kindle e confesso que num primeiro momento achei que não iria me acostumar com esse estilo de leitura. E não é que o pequeno aparelho superou todas as minhas expectativas? Recursos como dobrar a página, destacar as ideias principais, fazer anotações e outros estão todos presentes. A navegação entre as páginas (folhear) é um pouco diferente, mas depois de acostumado ela supera o papel. As capas existem sim, depende do livro que se compra… Acontece que a ferramenta é “recente” e mesmo as editoras ainda estão em fase de adaptação. Um erro comum que vejo é que muitas pessoas colocam no equipamento seus livros digitais em formato pdf, sendo que para ter a melhor experiência o ideal é utilizar o formato do próprio do aparelho. No meu caso sempre carregava comigo pesados livros técnicos que eram difíceis de manipular durante a leitura – o problema simplesmente acabou! Eu sou do tempo do papel e por isso vejo muita beleza nas estantes da minha prateleira e nas cores das capas – não nego que gosto do tradicional livro de papel. Por outro, tenho que reconhecer que hoje toda a minha biblioteca cabe dentro desse pequeno aparelho. Enfim, são coisas da modernidade… Abraço!
Mas, se o cheiro dos livros é discutível, o das livrarias parece não ser (pelo menos para mim). Eu gosto muito e sentiria falta de algo se deixasse de visitá-las. É como comida: o cheiro do restaurante faz parte da refeição.
Concordo com tudo e acrescento: há um certo desconforto -que diria, na falta de mais vocabulário – existencial em usar um livro eletrônico. Eu não me sinto mais eu mesma quando utilizo-o. E há mais uma coisinha: e meu hábito de espalhar livros pelos cômodos da casa: há o livro do banheiro, o da mesa de refeições, o do escritório, o da cabeceira da cama, cada um deles com a característica literária que penso adequada ao ambiente e à hora do uso do cômodo. Quantos “kindles” eu precisaria ter?
Vamos precisar ter a casa cheia de bugingangas eletronicas, se é que já não temos. Telas em todo lado, captadores de impressoes digitais para abrir a porta, geladeira inteligente que sabe tudo que voce esta comendo e informará o Google, ou a CIA, cadeira inteligente com aplicativos anti-peido, tela para ler no banheiro, toda intimidade do nosso lar será oferecida na internet, a preços pelos quais ” não nos incomodaremos de pagar” ….
Concordo com você a respeito das capas e também sobre pagar caro pelo direito abstrato para baixar arquivos pela internet. Mas em relação ao espaço na pratelereira e na função folhear, eles continuam existindo. Além do mais cada livro que faz parte de sua biblioteca aparece com o percentual de leitura já realizada em sua capa na abertura do Kindle (o que dá a dimensão de quanto já se leu e, indiretamente, do tamanho do livro que se está lendo). Em relação a função folhear, você pode deslizar o dedo várias vezes e folhear qualquer página que lhe interesse ou indicar para qual página você deseja ir pela função “Ir para”. Não sou nenhum defensor de quaisquer tecnologias, mas temos que por os pingos nos is.
Excelente, Marcelo. Falou a verdade e ainda conseguiu arrancar boas risadas durante a leitura. Esse papo de cheiro é mesmo de lascar!