"Ohs!" e "Blams!"
20/02/13 03:00Duas balconistas, dessas de paletozinho e saia combinando, desentendem-se no meio da rua. Passam depressa do xingamento ao safanão, uma arranca a blusa da outra, e em poucos minutos já estão sem calcinha em pleno centro da cidade.
Quem passa por ali, de carro ou de ônibus, estranha um bocado —mas recebe instruções para seguir em frente. Na calçada, o público não se dispersa. Trata-se da mais nova peça do Teatro da Vertigem, “Bom Retiro 958 metros”, que percorre as ruas desse tradicional bairro paulistano. Durante décadas, boa parte de seus moradores pertencia à comunidade judaica; em meio a dezenas de lojas de confecção, hoje os coreanos estão em maioria.
O Teatro da Vertigem é conhecido pelos lugares insólitos que escolhe para encenar seus espetáculos. O primeiro a que assisti, “O Paraíso Perdido”, era numa bela igreja no centro da cidade, a de Santa Ifigênia. Em seguida veio o elogiado “Livro de Jó”, num hospital abandonado.
Seguiram-se peças em subterrâneos, presídios, rodoviárias, mas aí meu interesse pelo grupo já tinha diminuído um bocado, por motivos que explico mais adiante.
“Bom Retiro 958” tem as qualidades que caracterizam o grupo: muita originalidade na ocupação do espaço, cenas de grande impacto visual e a capacidade de impressionar, até mesmo de assustar, o público.
Sessenta pessoas, se não chover, são levadas a caminhar pelas ruas desertas do Bom Retiro, entre lojas fechadas, predinhos baixos e algumas vitrines ainda iluminadas.
O primeiro destino é o Shopping Lombroso (este é mesmo o nome), galeria bem cuidada de lojas de moda não necessariamente cafonas. Só que, apesar de sua “modernidade”, o shopping fica em parte afundado ao lado de um paredão muito alto, que sustenta trilhos de trem.
Antes de perceber isso, já fomos apresentados a diversos fantasmas que, segundo o texto de Joca Reiners Terron, vagam pelas lojas. Manequins dentro das vitrines podem subitamente se mover; uma noiva enlouquecida aparece no meio do nada; um viciado em crack, uma espécie de locutora de rádio sobrenatural, uma costureira boliviana escravizada irão nos acompanhar durante o longo trajeto.
Caçambas de lixo, fachadas de prédio, cruzamentos de rua, postes de luz, tudo será posto a serviço da mensagem que a peça procura transmitir. O problema é que toda a imaginação cênica do grupo não se liberta de uma ingenuidade, de uma singeleza de ideias que, desde aquele primeiro espetáculo na igreja de Santa Ifigênia, comprometia a estética de seus espetáculos.
Em “O Paraíso Perdido”, os atores faziam acrobacias dentro da nave, mas sempre se estatelavam diante da mesma situação. Deus não responde a nossos chamados. Uma grande porta se fecha. Blam. “Deus! Estais aí?!”
Há momentos em que sinto falta do ponto de exclamação de cabeça para baixo que se usa em espanhol. Esses apelos por “Deus!” bem que precisavam vir com duas exclamações para traduzir seu patetismo.
O sofrimento incomoda quando cai no patético, e essa é sem dúvida a tendência do Teatro da Vertigem. O texto não tem como sustentar o que há de impactante —os “ohs!” e “blams!” da encenação.
Joca Reiners Terron teve intuições poéticas que seriam melhor aproveitadas numa crônica. Fala, por exemplo, da costureira que, fazendo vestidos sem parar, está na verdade tecendo um grande véu para cobrir a realidade do mundo.
A imagem é muito bonita mas não recobre o “conteúdo”, também interminavelmente repetido, de toda a peça. A saber, o de que a classe média está viciada em consumo, assim como os noias da região estão viciados em crack.
Os atores encarnam “tipos”, assim, e não personagens com alguma ambiguidade. Estão batendo a cabeça na mesma porta que se fechava diante dos que, em “O Paraíso Perdido”, clamavam por uma resposta de Deus.
Deus não responde, os bens de consumo não dão sentido para a vida, o crack não é bom interlocutor para o viciado. Sem diálogo real, sem conflito produtivo —vale dizer, sem dialética—, o espetáculo não tem como progredir, exceto pela sucessão de cenas surpreendentes.
As duas balconistas brigam no meio da rua; não sabemos o que tinham a dizer; quando se cansam, passamos a outro episódio. Sem que conflitos tenham sido armados e solucionados, a peça não tem como acabar —a não ser quando os espectadores, depois do trajeto, voltam mais ou menos ao ponto de partida.
Bacana! Mas confesso que adoro exclamar “Deus!”, até porque acredito mesmo. Também achei linda a descrição da tecedura da imagem do véu para cobrir a realidade do mundo. E o livro de Jó… do pouco que sei… tão significativo!