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Marcelo Coelho

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Perfil Marcelo Coelho é membro do Conselho Editorial da Folha

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O livro das coisas parecidas

Por Folha
03/04/13 03:00

Por vezes, num livro escrito séculos atrás, encontramos uma voz tão atual, tão presente quanto a de qualquer contemporâneo nosso. Os “Ensaios” de Montaigne (1533-1592) são o maior exemplo disso.

Outro caso, ainda mais notável pela distância no tempo e no espaço, é o de “O Livro do Travesseiro”. Foi escrito há mais de mil anos por Sei Shônagon, dama da corte imperial japonesa.

Numa série de textos curtos, Sei Shônagon anota impressões do cotidiano e fala de suas preferências em matéria de roupas, cores, pessoas e comportamentos. Parte importante do livro é reservada às listas, ou “catálogos de coisas parecidas” (“mono-zukushi”). A sensibilidade da autora tem o poder de entrar em sintonia conosco, apesar de todas as separações do tempo.

Coisas que causam insegurança. Coisas distantes que parecem próximas. Coisas que soam de modo diferente do habitual. Coisas que aborrecem. Coisas que a noite realça. Para cada uma dessas estranhas categorias classificatórias, Sei Shônagon dedica uma página, ou até menos do que isso.

Entre as “coisas que perdem a pose”, por exemplo, o livro relaciona “um grande barco encalhado na maré baixa” e “uma esposa que, por causa de ciúme infundado, deixa sua casa, pensando que certamente a procurariam”. Depois, continua Sei Shônagon, “não podendo mais continuar ausente, reaparece”.

Numa lista desse tipo, é como se tivéssemos a matéria-prima para um conto que não é preciso escrever. Ao mesmo tempo, há possibilidades, ou promessas de metáfora, que ficariam esquisitas num texto mais formal.

Muito do livro —que foi adaptado, com excesso de maneirismos a meu ver, por Peter Greenaway em “O Livro de Cabeceira”, filme de 1996— parece ter uma linguagem mais visual do que literária; as frases sem verbo, como ocorre com frequência nas listas, assemelham-se a descrições de pinturas, ou sugestões de quadros que poderiam ser feitos algum dia.

Sei Shônagon descreve os modos de um homem que sai da casa da amada antes do amanhecer. “Lembrando-se de um compromisso, levanta-se resoluto (…) por estar escuro, tateia ao redor, dizendo ‘onde estão, onde estão?’, em busca do leque e dos papéis dobrados deixados à cabeceira na noite anterior, que naturalmente haviam se espalhado.”

Havia muitos encontros furtivos no Palácio Imperial, pelo que conta a autora. Os galanteios e comunicações vinham na forma de poemas, muitas vezes alusivos a outros poemas. A autora não se reprime: mostra sempre como foi engenhosa em responder com outras citações eruditas os versos de uma carta que recebeu.

É por isso, e pelas rivalidades político-amorosas da corte, que Sei Shônagon foi estigmatizada como pretensiosa pela outra grande escritora da época, Murasaki Shikibu, a autora de “A História de Genji”. O livro de Sei Shônagon foi escrito entre os anos de 994 e 1001, e o de Murasaki pouco tempo depois. São os dois grandes monumentos da literatura clássica japonesa.

Muita coisa —em especial as páginas sobre cargos na complicadíssima hierarquia da corte— tem interesse hoje restrito a antropólogos e historiadores. Mesmo assim, a escrita de Sei Shônagon dá vida e humanidade ao que acontece.

Nada mais triste, diz ela, do que ver a casa de alguém tomada pelas expectativas de uma nomeação que termina sem acontecer. Os servidores antigos, os parentes, chegam de longe esperando a boa notícia, “comem, bebem saquê e fazem grande alvoroço”.

Mas a madrugada avança sem sinal, continua Shônagon. “Estranhando a demora e apurando o ouvido”, os convivas percebem que a comissão encarregada das nomeações já está indo embora. “À chegada do serviçal que estivera à espera de notícias, em meio ao frio, ninguém tem coragem de perguntar-lhe o resultado.”

O livro ganha se lido aos poucos, ao acaso, deixando que cada pequena vinheta exerça, aos poucos, seu encanto. A equipe de tradução (cinco pessoas, desde 2001, preparam o texto para a editora 34), não economizou em notas, glossário e textos complementares. Desse modo, mesmo algumas alusões obscuras recuperam sua força estética.

Uma dama de antigamente havia se jogado nas águas do lago Sarusawa. Shônagon cita um poema sobre os cabelos em desalinho de uma mulher —que se parecem com as algas daquele lago. Não se fala em suicídio: a objetividade silenciosa da observação vale mais que páginas e páginas de sentimentos.

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Comentários

  1. Gabrielle comentou em 03/04/13 at 17:51

    Ps: há muita literatura que serve para todos os tempos, não é verdade?

  2. Gabrielle comentou em 03/04/13 at 17:48

    O ciume é um sentimento realmente terrível. Bonito texto!

  3. Mouna Moura comentou em 03/04/13 at 9:52

    Tá danado! Vivo tão no sutil que só agora fiquei sabendo que tenho um site!!!!!!!!!!! Só me pensava tendo e-mail… Tenho vivido tão elficamente que… esbarro pedrinhas…

  4. Mouna Moura comentou em 03/04/13 at 9:50

    Pensei havia comentado com COISA das sutilezas…

  5. Mouna Moura comentou em 03/04/13 at 9:49

    COISA das sutilezas… Com certeza, lerei; melhor: degustarei. Gratíssima, Marcelo.

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