Um clássico japonês
03/04/13 18:11Transcrevo um trecho do livro de Sei Shonagon, escrito entre os anos de 994 e 1001, tema do meu artigo de hoje (ver post abaixo).
Escolho parte de um capítulo daqueles em forma de lista, o 240:
Pessoas que se acham espertas.
As crianças de três anos dos dias de hoje.
Mulher que cura crianças doentes por rezas ou massagens na barriga. Solicita diversos materiais para utilizar nas rezas. Empilha grande quantidade de papéis e tenta cortá-los usando uma faca sem fio, que parece não cortar sequer uma folha, mas como costuma usá-la, insiste pressionando, e entorta até a boca para assim fazê-lo; usa um instrumento com muitos dentes para cortar varas de bambu e, preparando tudo de forma solene, balança as tiras de papel cortado e reza, tudo com muita propriedade. E ainda fica a contar: “ O filho de tal príncipe, o herdeiro de tal nobre, que estavam muito doentes, foram curados por mim e fui bem recompensada. Outras pessoas haviam sido chamadas, mas não foram eficazes, eis porque ainda solicitam a minha pessoa. Graças a isso, sinto-me afortunada!”. Senti desagrado só de lhe mirar o rosto.
Outra passagem, do capítulo 251:
Quem se irrita com alguém que fala dos outros é que é inconcebível. Como podemos ficar sem falar mal dos outros? Haverá coisa melhor do que falar mal dos outros, evitando referir-se a si próprio?
Mais um trecho, em que a nota explicativa faz diferença. Sei Shonagon é dama de companhia de uma das mulheres do imperador, e lhe diz:
“Quando estou muito irritada com o mundo, desgostosa, sem um momento de paz e quero desaparecer, não importa para onde, consolo-me por completo ao me chegar [sic] às mãos papéis de simples, alvíssimos e belos […] Ou, então, se vejo uma esteira Korai nova, grossa e de trançado minucioso, de bordas decoradas vivamente de nuvens e crisântemos em preto sobre fundo branco, e a desenrolo para apreciá-la, penso: ‘Como poderia eu realmente abandonar este mundo?’ E me apego à preciosa vida.” Sua Consorte se pôs a sorrir e disse: “Vós vos consolais com coisas tão insignificantes! Como deve ter sido diferente a pessoa que apreciou a triste lua da montanha Obasute!”
A nota esclarece. A Consorte faz referência a um poema que diz: “Como consolar/O meu pobre coração?/ Ah! Sarashina/ Contemplo a lua que banha/ A montanha Obasute”. Nessa montanha foi abandonada a mãe já idosa do autor, para morrer. Nessa altura do livro, a própria Consorte estava sendo abandonada pelo imperador, em favor de uma mulher mais jovem.
Avisam-me por email que já havia outra tradução do livro. Foi editado em Porto Alegre, em 2008, com o título de “O Livro de Travesseiro”. É tradução direta do japonês também, e pode ser comprado na Livraria Cultura por R$ 38,00.
Mais barato que a edição da 34, mas não sei se tem o mesmo aparato crítico. Há quase três páginas, por exemplo, explicando por que não é correta a tradução “Livro de Cabeceira”, que pareceria mais natural. Os japoneses, na época, não liam antes de se deitar. Quanto ao porquê de “travesseiro”, parece que ninguém sabe ao certo.
Apesar de ter gostado do artigo anterior, não me identifico com os recortes agora selecionados. Prefiro escritos ou imagens mais líricas, com outro tipo de sabedoria.
De fato, há pessoas que se acham espertas, enquanto há outras que são simplesmente inteligentes ou sábias. Sinto-me mais próxima dessas últimas, com as quais escolho conviver — mesmo quando a minha inteligência não esteja à altura de algumas delas no plano concreto.
Não concordo com Sei Shonagon quanto a ser inconcebível não falar mal dos outros. Ainda que isso se dê muito naturalmente no convívio social, prezo, dou valor ao esforco contrário, pois acredito que faz mais bem ao espírito. Isso depende de cada um.
Na minha opinião, o trecho do poema é o mais interessante.