Cruelzinho e Malvadão
18/04/13 17:32Que me desculpem a franqueza, mas que artigos horríveis andam escrevendo meus colegas de “Ilustrada”! O pior é que, no contato pessoal, Contardo Calligaris e Luiz Felipe Pondé são adoráveis. Tenho entretanto de buzinar mais uma vez quando leio as opiniões do Contardo sobre maioridade penal.
Não, sobre isso, como falei no post anterior, tenho muitas dúvidas. Não acho que aos 16 anos uma pessoa esteja fora dos limites da responsabilidade penal –e Contardo tem razão, se for para pensar em termos de “córtex cerebral” e maturidade, só aos 25 anos seria admissível sua plena culpabilização.
O que me choca no artigo de Contardo desta quinta-feira são suas opiniões sobre a infância. Ele “tende a pensar” que “as crianças são más (briguentas, possessivas, invejosas, mentirosas, ingratas etc.); às vezes, elas melhoram crescendo, ou seja, a cultura pode civilizá-las (ou piorá-las, claro).”
Ou seja, estamos todos presos ao mito da criança naturalmente boa. “Queremos que as crianças nos apareçam como querubins felizes como nós nunca fomos e como nunca seremos”.
Contardo navega pelas mesmas águas de Pondé, ao acreditar numa espécie de “maldade natural” do ser humano. A frase atribuída a Rousseau –o homem nasce bom, a sociedade é que o corrompe— torna-se responsável por todos os malefícios da tolerância contemporânea.
Nem Rousseau disse isso, nem é preciso concordar com o que ele não disse.
Parto simplesmente da hipótese mais razoável. Imaginemos que o ser humano, ao nascer, é apenas um animal. Naturalmente, tem instintos agressivos e egoísticos. Quer apenas o seu bem-estar. Não está pensando nem um segundo na felicidade do seu irmãozinho.
Acontece que o animal humano não sobrevive apenas de instintos agressivos e antipáticos. Se o bebê não se encarregasse (ou fosse encarregado geneticamente) de sorrir e bater palminhas, logo seus pais (igualmente canalhas) haveriam de querer esmagá-lo como ao mais repulsivo verme sanguessuga.
A capacidade de acariciar, de dar beijinhos e ser adorável (às vezes) é tão importante para a sobrevivência do pequeno animal quanto a de cuidar dos próprios interesses de forma desagradável.
Estará, em última análise, sempre sendo egoísta. Mas, em meio a outros egoístas, tem de dar a sua parte. Não morde apenas o primeiro que se aproxima do berço. Não é um gremlin.
Um dos primeiros gestos do recém-nascido, pelo menos do ponto de vista de quem é o pai da criança, é segurar com a mão (ia escrever mãozinha, mas isso seria muito sentimental) o dedo indicador do pai.
Impulso agressivo? Instinto consumista? Mera curiosidade? Vontade de se comunicar? Pedido de atenção? Ato de reconhecimento e carinho?
Ora bolas, tudo ao mesmo tempo. Prefiro chamar isso de ato humano.
Até cachorros são instintivamente carinhosos, do mesmo modo que são instintivamente agressivos. A sobrevivência depende das duas coisas. Talvez um réptil, que sai do ovo e já logo vai cuidar da própria vida, não precise desse aparato todo –dessa hipocrisia – dessa humanidade.
Acho evidente, para concluir, que bondade e maldade estão mais ou menos equilibradas em cada um de nós. E é evidente que quem vê mais bondade à sua volta retribui melhor –até para não ficar meio por fora— do que uma pessoa que foi sempre tratada cruelmente.
A moda, entretanto, é destacar a maldade humana nos artigos da “Folha”. Como não vejo maldade especial nas figuras amigas de Contardo e Pondé, imagino que alguma reação defensiva esteja em curso. Não querem ser piegas, não querem ser ingênuos, cansaram-se do “politicamente correto”. Mas investir na direção contrária não é garantia de sofisticação intelectual.
Contardo Calligaris publicou, em 18/04/13, na Folha de São Paulo, artigo intitulado “Jovens delinquentes” (http://www1.folha.uol.com.br/colunas/contardocalligaris/1264147-jovens-delinquentes.shtml), no qual faz a defesa de uma redução drástica da maioridade penal no Brasil, para 10 ou 12 anos. Aparentemente bem elaborado, o texto é, na realidade, um encadeamento de concepções errôneas e argumentos incoerentes.
Após uma breve descrição do crime cometido, dias antes, por um adolescente de quase 18 anos, contra o também adolescente Victor Hugo Deppman, Calligaris diz: “É assim que protegemos o futuro do criminoso, para que, uma vez regenerado pela mágica de três anos de internação (alguém acredita?), ele possa facilmente reintegrar a sociedade e ser um cidadão exemplar, nosso vizinho”. Essa frase transmite a obscura ideia de que um criminoso não pode se regenerar, desconsiderando os inúmeros motivos do porquê disso não ocorrer. Calligaris, ao invés de relembrar as condições estruturais sob as quais se desenvolve a conduta do indivíduo, prefere responsabilizá-lo totalmente. Em outras palavras, por algum motivo, ele deixa de lembrar que, se no Brasil a reincidência é tão alta, ela se deve à ineficácia dos sistemas socioeducativo (Fundação Casa, por exemplo) e prisional e às condições sociais nas quais o indivíduo se (re)encontra quando sai da prisão.
Na sequência, o autor dá um exemplo em que as demandas emocionais vão ao encontro de algo que a razão recomenda: “Se deixássemos de agir sob impacto emocional, nunca nada mudaria. Por exemplo, o conselho de esperar para que as emoções esfriem é o argumento dos fabricantes de armas a cada vez que, nos EUA, um exterminador invade uma escola e o Congresso propõe leis de controle das armas. Os fabricantes de armas querem que esperemos para quê? Pois é, para que a gente se esqueça e se desmobilize”. Embora o trecho se valha de um argumento verdadeiro, o de a desmobilização da emoção favorecer os fabricantes de armas, este não serve, de modo algum, para sustentar a tese de que é melhor legislar sobre forte impacto emocional.
Na realidade, a fragilidade da analogia feita por Calligaris fica explícita quando se percebe uma diferença fundamental entre o caso brasileiro e o estadunidense. Neste último, como as pesquisas são claras em mostrar que a redução do número de armas diminui a ocorrência de mortes, existe uma situação irracional vigente que agride diuturnamente a razão. A reação emocional decorrente de mortes violentas é, portanto, um chamado contundente à razão. Já no caso brasileiro, a situação é completamente distinta, pois não há nenhum indício científico de que a redução da maioridade penal resultaria em diminuição da criminalidade, ou seja, a reação emocional vai contra as evidências racionais. Como diz Bourdieu, o que pode ser muito bom, em certos casos, “pode também pôr em perigo um estado, conquistado com dificuldade, de racionalidade coletiva; ou, mais precisamente, pôr em discussão aquisições certas e garantidas pela autonomia de um universo jurídico capaz de opor sua lógica própria às intuições do senso de justiça, do senso comum jurídico, frequentemente vítima das aparências ou das paixões”. Em resumo, no episódio estadunidense, a validade das manifestações é garantida por seu caráter racional, não pela condição emocional momentânea; aqui ocorre justamente o contrário, a desconsideração de toda a lógica em prol da emoção, e isso não pode ser legitimado.
Em seguida, num surto de achismo e de demonização das crianças, o psicanalista diz que “tende” “a pensar o contrário: as crianças podem ser simpáticas, mas são más (briguentas, possessivas, invejosas, mentirosas, ingratas etc.); às vezes, elas melhoram crescendo, ou seja, a cultura pode civilizá-las (ou piorá-las, claro)”. Ora, seguindo essa lógica, se as crianças são naturalmente “más”, essa é uma característica de toda a espécie humana (e não apenas dos menores infratores) e é, portanto, função das sociedades humanas “civilizá-las”, educá-las.
Fica explícito, assim, que, mesmo partindo-se de uma estranha premissa como a de Calligaris, chega-se à conclusão de que a educação é fundamental. Aliás, Vygotsky já nos ensinou isso há muitos anos, ao afirmar que a escola tem grande importância no desenvolvimento da criança, inclusive no psíquico. E se, com os intuitos de educar, civilizar, desenvolver a criança, a maioria das sociedades contemporâneas estabeleceu sistemas de educação básica obrigatória (que no Brasil vai até os 17 anos), qual a lógica em se punir um ser em formação do mesmo modo que se pune um plenamente formado?
Demonstrando-se a inconsistência de outro argumento do autor (“é só confiar neles, deixá-los impunes e lhes oferecer castiçais de prata”), é preciso lembrar que já há punição prevista – e sendo aplicada – para nossas crianças e adolescentes infratores: são as medidas de proteção (para crianças de até 12 anos) e as socioeducativas (para jovens entre 12 e 17 anos), claramente estabelecidas pelo ECA. Discordar das punições existentes é uma coisa, dizer que elas não existem é outra, é falta de ética. Além disso, as diferenças entre essas medidas e a prisão comum só existem para garantir aos menores de 18 anos que, em função de sua situação de ainda não-formados, tenham garantidos: penas de caráter punitivo, mas, sobretudo, reeducativo; o acesso à complementação da educação básica; a separação dos presos adultos, já formados; e o direito de não carregar marcas burocráticas definitivas, que, sabe-se, são forte motivo de discriminação.
No fundo, o principal motivo de Calligaris apoiar essa medida absolutamente ineficaz está colocado por ele mesmo em primeiro lugar: “penso isso há muito tempo”. Talvez esse seja um resíduo de imanente maldade, da qual ele ainda não se desvencilhou totalmente… Portanto, para se abrir a uma discussão mais honesta, profunda, é desse pensamento conservador cristalizado que ele precisa se libertar.
Ainda respeitando os talentos de cada um, me choquei, concordo com vocé, Marcelo.
Vejo-o entre os mais sensíveis da equipe, …deve ser porque está próximo de seus filhos ainda novos. Ao avançar da idade, o peso costuma ser transferido para crianças e jovens. As pessoas mais doces existem, passam sem essa, mas não ê o mais comum…
E quantas crianças e adolescentes podem ficar marcadas exatamente por essa razão, a negatividade ou rejeição expressa mesmo em pequenas afirmações ou gestos, e, pior, a violência contra elas…
Nós humanos precisamos aprender o uso da força, da energia, sem que se transforme em violência antes que seja realmente tarde! Não me parece fácil corrigir o que foi feito até agora…
Agradeço pelo seu belo trabalho, seus ótimos textos.
Abraços
Ufa! Por alguns dias, achei que fosse eu o problema por achar horrível as últimas crônicas de Contardo Calligaris – a última, em especial, a qual contém até mesmo informações incorretas quanto à maioridade penal na Alemanha, por exemplo. Obrigado, Marcelo!
Concordo plenamente com vc, Marcelo. Gosto especialmente do que o Contardo escreve, mas acho que ultimamente ele tem errado a mão. E aquela coluna sobre a tortura? Foi muito bom você ter feito o contraponto tanto àquela como a essa sobre a maioridade penal!
Uma contribuição ao debate: http://danieldebonis.org/2013/04/19/querubins-e-zes-pequenos/
Reinaldo Azevedo escreveu hoje (21/04), tratando de outro tema, a resposta inteligente ao Marcelo Coelho, que, como diz Azevedo, se considera “dono do bom senso”. Quem discorda dele (Marcelo) escreve artigos “horríveis”, proclama de modo autoritário. Tenta passar uma imagem caricata de Pondé, Calligaris, Coutinho, enfim, de qualquer um que pense diferente dele. São “maus” e “cruéis”. Ele é o bom, o sofisticado intelectual…
Discordo de você, Eduardo. Das leituras que faço não percebo nada de autoritário, muito pelo contrário. Observo ponderações e discordâncias se articulam cordialmente. Como leitora de jornal, pergunto: por que não restringir o debate às ideias em si ao invés de estabelecer um debate sobre personalidades? A primeira hipótese é mais enriquecedora para o leitor.
… que se articulam cordialmente.
Mas é justamente isso que defendo, Gabrielle. Por que o Marcelo não tratou das ideias de Calligaris sem tentar criar uma caricatura de debate entre “bons” e “maus”? Ele já começa pelo título do post e no primeiro parágrafo diz que os artigos de Pondé e Calligaris são horríveis. Não me parece nada cordial…
Eduardo, a interpretação que faço neste caso específico é a de que ele está entre amigos e está sendo amigável. As relações estabelecidas no texto dele são muito diferentes das relações comparativas estabelecidas nos comentários. Mas cada interpretação é uma interpretação, cada um vê o que quer.
Quem nasce para ser Marcelo Coelho, NUNCA será um Pondé.
Quem nasce para ser Wal, NUNCA será um Law. E assim a vida é, já deveria dizer o galo Costinha do artigo seguinte. A beleza está na singularidade de cada um, sem comparações.
Achei muito interessante o artigo da Ilustríssima de hoje intitulado a Antropologia de Darwin. É bastante interessante ler sobre as possíveis bases naturais do altruísmo. Gostei muito!
Hoje também li algo bastante interessante que diz mais respeito à percepção humana da realidade, que talvez não seja mais nenhuma novidade para nós (descontextualizando a leitura, penso sobre a relação egoísmo\altruísmo, mal\bem): “Heráclito pensava que as coisas que são vistas como opostas na verdade estão unidas e não podem existir sem os seus contrários. Não há um caminho para cima sem o caminho para baixo, não haveria calor se não houvesse o frio […]”
Numa versão contemporânea mais pop, canta Lulu Santos: “não existiria som se não houvesse o silêncio, não haveria luz se não fosse a escuridão, a vida é mesmo assim, dia e noite, não e sim…”
Míriam , concordo com vc!
Entendo perfeitamente razoáveis as idéias de
Contardo. Discordo Marcelo de seu ponto de vista. Todos nós temos o mal e o bem dentro de nós. Basta orientação(para o mal ou para o bem). Somos como os animais. Úm pitbull pode ser tão dócil quanto um vira lata, tudo depende de como esses animais são tratados.
Não acho que devemos deixar as coisas como estão. Elas estão muito mal. Filhos matam pais, pais matam filhos, pessoas arrastam animais presos aos carros. Enfim, o mundo está mais para o mal que para o bem. Há muito cinismo escondido atrás desse véu de bondade. Me admira que vc. conteste essas idéias de Contardo. Afinal vc. não é um sujeito comum. Quiz trazer uma polêmica? Conseguiu.
Por que tudo tem que ser visto como manobra de sobrevivência, inclusive o bem? Não é possível que haja outras motivações menos pragmáticas? Vou chutar: somos seres grupais (para o bem ou para o mal) e daí talvez advenham a afetividade e a comunicação como atributos inatos. É só assistir ao geographic channel. Os laços afetivos da ninhada vêm mesmo antes da percepção do perigo, da percepção da necesidade de sobrevivência. O animal humano é que vem com uma “janela mais aberta”, que só faz complicar a própria vida, criando um leque mais amplo de ações, comportamentos, sensibilidades ou insensibilidades… mas é essa mesma janela que possibilita a sua transição de um modo de vida para outro… é essa mesma janela que possibilita as obras humanas que tanto admiramos. Será que falei muita bobagem?
Num certo grau de “normalidade” ninguém é totalmente bom ou mal. Esses binarismos são reducionistas e, quando mal aplicados, inconsequentes, levianos. Acho que hoje predomina a ideia de que o ambiente fala mais forte na formação\constituição do indivíduo. Para toda regra, contudo, há a sua exceção.
Às vezes é melhor não definir nada e deixar certas questões em suspenso (“há mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia”).
Mais uma Contardada!
(Contardo, Pondé, João Pereira Coutinho, Gullar – só tá faltando o Gerald Thomas pra completar o alinhamento dos planetas e o mundo acabar).
Aaaah Álvaro, muito bom!!!!