Livros: '"Homo Sacer"
19/05/13 12:54Leio nestes dias o famoso “Homo Sacer”, do filósofo Giorgio Agamben –tido como uma das referências inevitáveis do pensamento crítico contemporâneo. Há trechos muito difíceis, como seria de esperar.
As passagens mais compreensíveis me deixam, entretanto, bastante desconfiado quanto à precisão e ao rigor das leituras feitas por Agamben.
Um exemplo, na parte 3, capítulo 2. O trecho analisa a “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, de 1789. O primeiro artigo diz:
“Os homens nascem e permanecem livres e iguais em [seus] direitos”.
O segundo artigo diz:
“O fim de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem “.
No terceiro artigo, estabelece-se que
“O princípio da soberania reside essencialmente na nação”.
Vejamos como Agamben interpreta esses três artigos. Ele vê uma ambiguidade a partir do título da declaração. Afinal, trata-se dos direitos “do homem” [do ser vivo homem] ou “do cidadão” [como “animal político”]?
Ele vinha explorando, ao longo do livro, a distinção entre o conceito grego de ‘zoé’, vida pura, vida orgânica, vida animal, vida “nua”, e o conceito de ‘bios’, “a forma ou maneira de viver própria de um indivíduo ou de um grupo”. Nesse sentido, os gregos falavam em vida contemplativa, vida política etc., usando o termo “bios”, mas não faria sentido usar “zoé” nesse contexto.
Voltando à sua análise da “Declaração dos Direitos”. Agamben identifica nesse documento o fato de que “é justamente a vida nua natural [zoé], ou seja, o puro fato do nascimento, a apresentar-se aqui como fonte e portador do direito”. E isso, para Agamben, não é bom sinal, como sabemos durante a leitura do livro.
A vida natural é posta na base do edifício politico, diz ele, para em seguida dissolver-se na figura do cidadão. “E precisamente porque inscreveu o elemento nativo no próprio coração da comunidade política, a declaração pode atribuir a soberania à ‘nação’ […] A nação, que etimologicamente deriva de ‘nascere’, fecha assim o círculo aberto pelo nascimento do homem”.
Agamben resume: “o nascimento –isto é, a vida nua natural como tal—torna-se aqui o portador imediato da soberania”. Mais: “o princípio da natividade e o princípio da soberania […] unem-se agora irrevogavelmente no corpo do ‘sujeito soberano’ para constituir o fundamento do novo Estado-nação”.
Atenção a esses advérbios e adjetivos de Agamben. Portador “imediato” da soberania? Unem-se “irrevogavelmente”?
O texto da Declaração sugere o contrário. Os homens ao nascer têm e terão direitos iguais. Esse é o dado imediato. Mas o segundo artigo estabelece, justamente, uma mediação, uma outra etapa. Uma associação política se forma com o objetivo de conservar esses direitos. Ou seja, evitar que se percam ou sejam usurpados. Daí, por fim, é que no terceiro artigo se considera que é a partir dessa associação entre homens, e não de qualquer direito divino ou hereditário, que um poder soberano será exercido.
Para Agamben, a ‘vida nua’ se confunde na política moderna com a forma de existir do “sujeito livre e consciente”. Cessa de existir a diferença entre ‘zoé’ e ‘bios’. Na Declaração dos Direitos do Homem, portanto, há uma “ficção implícita”, a de que “o nascimento se torne imediatamente nação, de modo que entre os dois termos não possa existir resíduo algum”.
É como se, em vez de três artigos nitidamente separados, Agamben tivesse lido uma massa única. Está claro, no texto da Declaração, que os direitos surgem no nascimento, e que a associação política se forma para garanti-los, e que o poder político se baseia na soberania de todos que fazem parte da associação. Por isso mesmo o artigo primeiro fala dos direitos do homem, o segundo fala do cidadão, ou seja, do homem em sociedade, e o terceiro fala implicitamente do povo, em sua relação com o Estado. Na leitura de Agamben, é como se os pensadores de 1789 jamais tivessem ouvido falar em contrato social. Não há nada de ‘imediato’ na ligação entre uma coisa e outra.
A intenção de Agamben é clara.
Quando se identifica, já em 1789, uma confusão entre vida biológica e existência politica, supostamente se consegue provar uma linha de continuidade entre a política democrática moderna e o mundo totalitário. Os campos de concentração reduzem a pessoa à sua “vida nua”, ao seu mínimo biológico. Se essa concepção “biológica” surge em 1789, já na declaração dos direitos humanos estava aberto o caminho para os campos de concentração.
É uma tese no mínimo sensacionalista, baseada, neste ponto ao menos, numa interpretação muito discutível do texto.
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Caro Marcelo,
Meu nome é Daniel Simão Nascimento, e sou pós-doutorando na área de filosofia política na Universidade Federal de Pelotas. Embora a maior parte de minha formação tenha sido dedicada a filosofia antiga, e já faça tempo que não leio Homo Sacer, ainda assim vou arriscar aqui um comentário que me parece pertinente. Em primeiro lugar, acerca da clara intenção de Agamben de provar a existência de continuidade entre o mundo totalitário e seus campos de concentração com a política democrática. A meu ver, isso já tinha sido adequadamente mostrado pela Hannah Arendt em As origens do totalitarismo. Nisso, Agamben não é nem original e nem ‘sensacionalista’. Os campos de concentração – ao reduzir a pessoa à sua vida nua – não são tão substancialmente diferentes de Guantanamo ou de certas salas de imigração, onde se pode muito bem ir parar caso se faça parte de uma ‘lista’ qualquer de indivíduos de alta periculosidade, ou ainda de Abu Ghraib. Em segundo lugar, que a associação política se forme tendo em vista ‘conservar’ certos direitos que seriam naturais aos homens é uma declaração, no mínimo, problemática. Em que sentido podem existir direitos antes que exista a comunidade política com suas leis? Se é verdade que a narrativa hobbesiana, por exemplo, do nascimento do Estado propõe algo muito próximo disso, é verdade também que Hobbes não hesita em falar de ‘leis naturais’, leis essas cujo conteúdo não seria diferente das leis reveladas por Deus aos fiéis. Ou seja, para Hobbes existem leis muito antes de existir a comunidade política, e em alguns casos, a saber, quando tais leis provém de Deus, elas possui inclusive poder coercitivo para aqueles que em Deus acreditam (ao contrário disso que ele chama, mesmo assim, mas um pouco or analogia, de leis da natureza). Isso tudo para dizer que embora o texto da declaração possa SUGERIR o contrário (e ninguém nunca disse que ele não SUGERE isso), a maneira como a declaração dos direitos humanos foi utilizada até hoje no campo político – ou seja, a maneira como ela efetivamente funcionou como dispositivo político desde a sua criação – parece confirmar a análise de Agamben: muito mais do que resguardar os direitos que todos os seres humanos teriam desde que nascem, a declaração dos direitos humanos serve até hoje como um mecanismo político de quebra da soberania nacional. Mecanismo que é tão mais eficaz porque toma como direito algo que não existe de fato em lugar nenhum do mundo, a saber, o respeito pelo ser humano simplesmente pelo fato de ser humano. No que diz respeito aos indivíduos, é importante notar que se a declaração se encerra com a afirmação de que “nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada como o reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer qualquer atividade ou praticar qualquer ato destinado à destruição de quaisquer dos direitos e liberdades aqui estabelecidos”, parece indiscutível que (1) o texto prevê que determinados direitos não possam ser invocados em determinadas situações (Artigo XIV; 1.Toda pessoa, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e de gozar asilo em outros países, 2. Este direito não pode ser invocado em caso de perseguição legitimamente motivada por crimes de direito comum ou por atos contrários aos propósitos e princípios das Nações Unidas); e, logo antes do encerramento, (2) o texto afirma que “1. Toda pessoa tem deveres para com a comunidade, em que o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível; 2. No exercício de seus direitos e liberdades, toda pessoa estará sujeita apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer às justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática; 3. Esses direitos e liberdades não podem, em hipótese alguma, ser exercidos contrariamente aos propósitos e princípios das Nações Unidas”. Ou seja, em última análise a intenção SUGERIDA por esse texto será tão forte quanto for presente não no texto, mas sim nas forças que de fato governam os Estados e as organizações estatais internacionais tais como as Nações Unidas. É claro que o texto afirma também que “toda pessoa tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente realizados”, mas, sinceramente, e daí?