Livros: "Homo Sacer" --cont.
21/05/13 12:14Mais algumas dúvidas sobre “Homo Sacer”, que comentei em post anterior.
No primeiro capítulo da segunda parte, Giorgio Agamben apresenta o conceito que dá nome ao livro. É uma ideia de grande alcance. Apesar de sua origem no direito romano, a figura de um ser humano que se reduz apenas ao mínimo de um “ser vivo”, sem mais nada, é atualíssima.
Os prisioneiros de Auschwitz, os prisioneiros de Guantánamo, os habitantes da cracolândia, os imigrantes ilegais da Europa e dos Estados Unidos seriam exemplos dessa espécie de não-cidadãos, de não-pessoas, jogados num limiar em que só sua existência biológica é reconhecida.
Mas vamos ao texto romano. É um trecho escrito por Festo, no seu “Tratado sobre o significado das palavras”.
Homem sacro é, portanto, aquele que o povo julgou por um delito; e não é lícito sacrificá-lo, mas quem o mata não será condenado por homicídio; na verdade, na primeira lei tribunícia se adverte que “quem matar aquele que por plebiscito é sacro, não será considerado homicida.” Disso advém que um homem malvado ou impuro [malus atque improbus] costuma ser chamado sacro.
Seria longo demais, aqui, reproduzir todas as ambiguidades e raciocínios que Agamben desenvolve na leitura desse texto. Agamben cita outros comentadores, que notam a aparente contradição: esse homem tem ao mesmo tempo estatuída sua “sacralidade”, e é “matável”.
Não pode ser “imolado” num sacrifício, mas quem o mata não será considerado homicida. Pode ser morto e não pode ser morto? A partir daí se estende uma série de interpretações. Para alguns, ele seria objeto de uma espécie de tabu: venerado e maldito ao mesmo tempo. Para outros, propriedade dos deuses inferiores, e portanto insacrificável.
Agamben prefere resolver a ambiguidade desse “homem sacro” de outra maneira. O “homem sacro” se situa na confluência de duas exceções. Uma exceção à lei humana –que proíbe alguém de matar o outro, sendo que aqui é lícito matá-lo–, e uma exceção à lei divina, porque o homem sacro é excluído de toda forma de sacrifício ritual.
Com o instrumento da “exceção”, Agamben parte para o âmbito da teoria política. A esfera da exceção, à qual se submete o “homo sacer”, é a esfera da soberania política.
Soberania é a esfera na qual se pode matar sem cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício, e sacra, isto é, matável e sacrificável, é a vida que foi capturada nessa esfera.
Interrompo essa exposição sumária das ideias de Agamben para exprimir uma dúvida bastante simples.
Afinal, qual é a ambiguidade daquele texto romano citado no início? Até onde posso ver, não existe nenhuma.
Homo sacer é apenas o condenado à morte por algum grave malefício ou improbidade [será que “improbus” quer mesmo dizer “impuro”?].
No decorrer do mensalão, acho, ouvi de um dos ministros a referência a um antigo bordão jurídico. O corpo do réu é sagrado. No sentido de que ninguém pode tocar nele enquanto não for condenado. Sua integridade física é dever do Estado. Pois bem, depois de condenado à morte, é evidentemente lícito matá-lo. O criminoso, entretanto, não serve para ser sacrificado aos deuses em algum ritual qualquer –não seria, claro, oferenda aceitável a um deus, tanto por ser um bandido quanto pelo fato de que afinal vão matá-lo de qualquer jeito, não existindo nenhum “sacrifício” nisso.
O conceito de “homo sacer”, portanto, não teria nada de misterioso. É o condenado à morte. Parece ser esta, aliás, a interpretação de Mommsen, que Agamben descarta em meio a certa névoa argumentativa.