Stravinsky hoje
05/06/13 02:13O senhor acha, perguntaram a Stravinsky na década de 1960, que sua música é agora mais compreendida do que na época da “Sagração da Primavera”? Como se sabe, a estreia do balé, em 1913, produziu um dos maiores escândalos da história da música.
Não, “não compreendem melhor agora”, respondeu Stravinsky. Simplesmente “os escândalos passaram de moda”, enquanto a música continuava difícil.
Ou melhor, acrescentou. Não é que o público tivesse de “compreender melhor” a sua música. Mas tinha, isso sim, “de ouvir melhor”.
E quanto ao futuro?, perguntou o repórter polonês. O público vai acabar compreendendo? Ninguém sabe o que é o futuro, respondeu Stravinsky, decerto cansado diante de perguntas a que deve ter respondido com muita frequência.
Em qualquer peça de música clássica, e não apenas no caso de Stravinsky, o problema da incompreensão existe. Podemos gostar de Mozart e Beethoven, mas quem, num concerto, está “entendendo” tudo o que se passa?
Sem contar as músicas que, de tanto sucesso, tornaram-se quase impossíveis de acolher com inteligência.
A Quinta Sinfonia de Beethoven, por exemplo. O “tã-tã-tã-taaam” transformou-se num rótulo de si mesmo, é algo que quase não se ouve mais: apenas se reconhece.
Talvez tenha sido por isso que, no começo do século 20, a arte moderna tenha se voltado tantas vezes para o “primitivo”, para o “selvagem” —e a estreia da “Sagração da Primavera”, que completou cem anos na semana passada, ficou como um dos maiores exemplos dessa atração pela “barbárie”.
É que a “civilização”, num sentido muito particular, tornara-se um impedimento para a arte. Quem ouve muito uma música já não a escuta mais. A “selvageria”, portanto, pretendeu apenas raspar a pátina, o verniz, a cera do ouvido de uma plateia civilizada demais —e Paris, onde o balé estreou, era o lugar ideal para isso.
Esse processo de superexposição a determinadas obras de arte explica, também, a importância dos intérpretes em música clássica. O grande intérprete consegue fazer com que uma obra já muito conhecida seja descoberta como novidade.
Na música barroca, por exemplo, tudo foi reinventado a partir dos anos 1960, quando começou a pesquisa pelos instrumentos originais e por uma nova fidelidade às partituras de época.
O resultado paradoxal dessa maneira de interpretar os barrocos (sem verniz, com mais secura e menos calda de caramelo) foi que Vivaldi e Haendel se tornaram… quase stravinskianos também. O futuro, sobre o qual indagava o repórter na entrevista com Stravinsky, chegaria impondo uma revolução sobre o passado.
O próprio Stravinsky se encarregou disso. Depois da fase “russa” e “bárbara” dos balés com Diaghilev, reescreveu partituras de Pergolesi (1710-1736), e entrou numa fase “neoclássica”. O curioso é que uma obra como seu concerto para violino, por exemplo, apesar de muito menos barulhento e dissonante do que a “Sagração”, no fundo é ainda mais difícil de ouvir.
Não se traduz em ideias como “violência primitiva”, “poder telúrico”, “ritmo primal” que nos ajudam a apreciar a “Sagração”.
Talvez seja uma obra de menor qualidade mesmo. Em todo caso, o desenvolvimento posterior de Stravinsky não foi, como dizem, uma “regressão”, uma desistência de qualquer missão revolucionária que o mestre desempenhara no começo do século.
Ao longo de sua vida, assumindo diferentes “estilos”, Stravinsky foi se tornando mais reconhecível por quem ele era, enquanto compositor individual, e menos como um mero “médium” da crise estética modernista.
Modos de deslocar o ritmo, um gosto cítrico na instrumentação, a recusa das técnicas de transição, a “montagem” mais que o desenvolvimento, aparecem em peças menos escandalosas, mais “civilizadas”, tanto quanto nas escarpas, cavernas e fogueiras da “Sagração”.
Compositores e intérpretes posteriores se tornaram “stravinskianos” em alguns momentos, sem que o termo se reduzisse a ser sinônimo de “modernistas”. Foi um longo caminho até que Stravinsky se tornasse, afinal, apenas Stravinsky, e não o equivalente de uma força anônima, a encarnada na “Sagração”.
O compositor sobreviveu ao próprio mito —o que não deixa de ser um ganho da civilização. Vitórias desse tipo são raras; vale a pena comemorar.
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