A arte do impossível
19/06/13 02:07
Havia cartazes sobre quase tudo, e bandeiras das mais variadas, na manifestação de anteontem em São Paulo. Por vezes, não passavam de uma folha de papel de tamanho um pouco maior, sem sinal de representar alguma luta coletiva.
Alguém simplesmente pegava o papel e escrevia o que pensava. “Não são os 20 centavos”, dizia um cartaz. Com certeza.
O aumento das tarifas de ônibus, de 6,6%, estava no programa —e, conforme o ano que se tome como base, pode ser qualificado como inferior (ou não) aos índices inflacionários.
Não se reuniriam tantos milhares de pessoas, entre estudantes e gente de cabelo branco, entre garotões de classe alta e adolescentes da periferia, se a PM não tivesse dado o seu “show” de truculência na semana anterior.
Imagino que com a passeata se quis mostrar, acima de tudo, o espírito desarmado da grande maioria —e sua capacidade de fazer, como tantas vezes aconteceu no Brasil, protestos de massa com fraternidade e alegria.
Assim, algumas pessoas acompanharam a passeata com flores brancas nas mãos. A roupa branca, cujo uso se recomendara nas convocações, não chegou a constituir um sucesso. Na parede de um prédio, projetaram-se imagens de Gandhi.
Não foi, entretanto, apenas um protesto contra a violência policial, como não foi só contra o aumento dos ônibus. O governador Alckmin e o prefeito Haddad foram xingados à vontade, é claro. Mas havia outro espírito movendo aqueles milhares de pessoas.
“Se vocês não nos deixam sonhar, nós não deixamos vocês dormir”, dizia um cartaz. Ideias desse tipo, com trocadilhos interessantes ou mesmo palavras de ordem genéricas, como a de que “o país acordou”, brotavam de todos os lados, um pouco ao estilo de maio de 1968 na França.
Apareceram coisas díspares: cartazes com escritos em inglês (“ônibus free”, algo assim) ao lado de bordões verde-amarelos antiquíssimos (“verás que um filho teu não foge à luta”). Pouco importa.
Quiseram as circunstâncias que PT e PSDB se equalizassem no repúdio dos manifestantes. O aumento do ônibus e a violência da PM tiveram um poder que, passe o trocadilho, valeria chamar de “alquímico”.
Estava latente a sensação de que os dois grandes rivais da política brasileira se equivalem, cada qual com seus mensalões, sua tecnocracia paralisada, suas promessas cínicas, sua sensatez, seu realismo.
Para que tudo ficasse mais claro, Haddad e Alckmin estavam juntos em Paris. Todo prefeito sabe que, diga-se o que se disser, chega a hora de aumentar o ônibus. Todo governador sabe que, diga-se o que se disser, chega a hora de usar as balas de borracha.
Não me sai da cabeça a foto de Haddad selando, aos sorrisos, seu pacto com Paulo Maluf, na campanha eleitoral. Todos seguem a esfuziante frase com que Fernando Henrique sagrou seu pragmatismo: “A política é a arte do possível”.
Pode ser, e tem de ser, a arte do impossível também. É isso o que milhares de manifestantes estavam mostrando na segunda-feira.
De alguma forma, vai-se esgotando a legitimidade de um pragmatismo, de um aliancismo, de um cinismo, de um petismo, de um peessedebismo que nada têm a oferecer em termos de valores e de ideais.
Por isso mesmo, “não são os vinte centavos” o que está em jogo. O pragmatismo que leva a tantas alianças políticas com a direita passa a ser contestado, principalmente pelos mais jovens. São aqueles que também dizem, na internet, que o pastor Feliciano não os representa.
Havia cartazes de cunho bastante “liberal” ou “neo-Fiesp” na passeata. Mensagens contra a corrupção e em defesa de um bom uso do “dinheiro dos meus impostos” eram comuns. De todos os cartazes, entretanto, o de que mais gostei estava sendo levado por uma moça e tinha linguagem chula. Dizia apenas: “Copa é o caralho”.
Talvez seja uma boa síntese do momento. É que, a começar dos políticos do PT, vive-se numa espécie de comemoração permanente —o país está ótimo, vivemos um momento extraordinário, construímos estádios e todos estão felizes.
Abaixo a Copa do Mundo, talvez quisesse dizer a moça do cartaz: pelo menos, expressou sua impaciência diante da sorridente enganação geral. É esse sorriso, feito da insensibilidade, do cinismo e do oportunismo de décadas, que a passeata pretende tirar do rosto dos governantes.
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