Literatura sem catracas
28/06/13 12:40Avolumam-se os protestos, de variada ordem, contra o governo federal. Na esteira do movimento “catraca livre”, recebo por email esta denúncia.
Ministério da Cultura discrimina livros de literatura erótica
na análise de projetos da lei Rouanet
Lasciva é como assina a autora Helena de Almeida, que há mais de dois anos mantém o site lasciva.blog.br, onde publica contos eróticos e conteúdo sobre sexualidade. Ela está produzindo um romance baseado em fatos reais e quer também transformar em livro os seus contos publicados na internet. A fim de buscar incentivo à sua produção, a autora decidiu inscrever o projeto dos seus livros na lei Rouanet.
“Percebi que teria um tratamento especial do Ministério da Cultura assim que fiz a inscrição do projeto que chamei de ‘Coleção Lasciva’. Logo em seguida, recebi um email da Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura questionando a natureza cultural do projeto”, explica Helena, que é também consultora de elaboração de projetos culturais para leis de incentivo. “Em cerca de quatro anos, já inscrevi na lei Rouanet mais de quinze projetos para diferentes artistas. Todos foram aprovados. O único projeto de minha autoria que vi ser indeferido até hoje foi o dos meus livros”.
Em resposta ao questionamento inicial do Ministério da Cultura, a autora esclareceu que “o objetivo principal deste projeto é a realização de duas obras literárias. Em suma, estamos considerando que o conteúdo produzido trata da realidade brasileira contemporânea, que receberá um tratamento artístico e será transformado em produtos capazes de consolidar a memória de um aspecto do atual contexto – o comportamento e o relacionamento dos jovens, abrangendo os dilemas subjetivos ali envolvidos.”
Dessa forma, o projeto foi aceito para análise. Porém, depois de mais de seis meses, ele nunca foi sequer levado a uma reunião da CNIC – Comissão Nacional de Incentivo à Cultura, última instância na avaliação de projetos culturais, que aprova mais de 500 projetos por mês. O parecerista a princípio cortou mais da metade dos itens solicitados no orçamento inicial, alegando indeferimento por corte de mais de 50%.
“Muito estranho cortarem do orçamento os custos com o blog e apontarem mídia de internet como ‘excessiva e irrelevante’ para um projeto incentivado. Afinal, custos com a divulgação do projeto cultural estão previstos em lei”. A justificativa para eles negarem a aprovação do site é que é “trata-se de uma peça de autopromoção da proponente”. No entanto, a grande maioria dos projetos aprovados na Lei Rouanet contemplam site do artista.
“Isso é estratégia de divulgação. Qualquer site de artista é autopromoção. Então o argumento não é válido. Eu poderia ter contestado esses cortes, mas como queria apenas produzir meus livros, entrei com recurso solicitando a aprovação do projeto com o orçamento sugerido pelo parecerista. No novo orçamento, deixei só os itens que, em teoria, estavam aprovados”.
Certa de que bastaria adequar-se às exigências do Ministério para ter seu projeto aprovado, Helena teve outra surpresa ao ver o novo parecer emitido pela Fundação Biblioteca Nacional. Referindo-se a ela como “baladeira”, o parecer aponta como razão da desaprovação o fato de seus livros serem também “peça de autopromoção da proponente”. Seu orçamento apresentado em recurso foi simplesmente ignorado, conforme exposto pelo parecerista: “A proponente, em resposta à diligência, remeteu nova planilha orçamentária não analisada no presente parecer.”
“O segundo parecer sobre o meu projeto sugere que sou uma puta que só quer se promover. Ele usa como único argumento para indeferir o projeto o fato de que não tenho carreira literária. No entanto a lei Rouanet não impõe qualquer restrição a artistas iniciantes, pelo contrário: todos têm teoricamente os mesmos direitos legalmente assegurados”, reclama a autora.
“Não quero depender de recursos incentivados para conseguir lançar meus livros. Quero apenas o direito de pleitear patrocínio ao meu projeto, como qualquer escritor”, declara. “Dá impressão que o MinC não está acompanhando as tendências da literatura mundial. Nem parece que o ministério é dirigido por uma sexóloga. Vou dar um jeito de levar até a Marta Suplicy a discriminação que estou sofrendo dentro do próprio governo. Quero saber o que ela acha disso”.
Seguem abaixo o trecho do parecer do Ministério da Cultura e os trechos do projeto que ele distorce.
Parecer da Fundação Biblioteca Nacional – FBN:
PARECER de RECURSO
Novo parecer técnico em atendimento ao Despacho n° 1.084/2013-COAP/CGAPI/DIC/SEFIC/MinC
Projeto negado por não enquadramento na Lei 8.313/91, no art. 3 e no art. 18, por ser “peça de autopromoção da proponente”, e por corte superior a 50% do orçamento solicitado.
A proponente, Helena de Almeida Cardoso Brandi, “baladeira”, “blogueira” que “assumiu uma persona virtual, se permite extravasar desejos, quebrar regras de condutas sociais e causa estranheza ao revelar não sentir qualquer pudor”, não possui carreira literária. Trata-se da obra de estreia da autora que prepara ainda um “Guia de Sexo Ilustrado” (resposta à diligência).
“Comecei a me relacionar com diferentes homens na rua, para testar a minha reação e o que achava disso. Bati meu recorde: sete caras num mês. Vi que tinha gostado mesmo de poucos. Além do mais, nem cheguei a cobrar de nenhum” (“Lasciva conta tudo”; Ficha Técnica).
Trecho da justificativa do projeto:
Lasciva é uma garota como qualquer outra. Tem desejos, anseios, vive experiências como as amigas da sua idade. Jornalista, habituou-se a relatar o cotidiano. Especializou-se em relações públicas para, a todo momento, elaborar planos, eventos, comunicar-se. Baladeira, leva uma vida social intensa. Tornou-se blogueira e assumiu uma persona virtual, que se permite extravasar desejos e quebrar regras de conduta sociais. Causa estranheza ao revelar não sentir qualquer pudor. Chega a chocar ao fazer o que tem vontade e relatar suas peripécias, sem censuras.
Criou seu estilo literário. Traduz naquilo que escreve, da forma mais sincera que consegue, a expressão do comportamento de sua geração. Questiona tabus, ao lidar com eles com naturalidade, sem restrições. Encarna, em suas histórias, uma personagem a la Nelson Rodrigues: Lasciva, seus pecados e seus amores dos 15 aos 30. Sem saber, torna-se quase tão egocêntrica quanto a Patty Diphusa, protagonista das contos de Almodóvar para a revista La Luna, na década de 1980. Adota como gênero um tipo de new journalism erótico.
Decidiu expressar sua forma de lidar com os dilemas da pós-modernidade. Criar um blog foi uma aposta sobre a reação das pessoas, ver como a encaravam. E encontrou ali leitores que se abriram da mesma forma, com a mesma espontaneidade, anonimamente ou não. Trocou ideias e opiniões com um monte de gente. Percebeu até inspirar os outros com suas histórias, sem deixar de alertá-los das próprias dificuldades com que lida constantemente, por ser tão aberta.
As pessoas expõem suas vidas nas redes sociais, prezam cada vez menos por privacidade – cada passo, cada sentimento é compartilhado online. Ainda assim, há muito constrangimento ao se conhecer a intimidade sexual do outro. O movimento de aceitação das diferenças humanas luta contra um forte impulso contrário, que renega a liberdade de expressão. Sexo ainda é tabu. Lasciva questiona essas contradições de forma direta. Ao criar polêmica com sua conduta, coloca em xeque o comportamento e os valores das pessoas em relação ao sexo e seus relacionamentos. Ao descrever seu cotidiano, põe em discussão a atitude da mulher na atualidade.
Trecho da apresentação da autora:
Um dia, aos 26 anos, concretizei o antigo sonho de criar um blog para estampar minha vida sexual, como já fazia entre os amigos. Tentei ser o mais sincera que pude. Comecei a recapitular todas as histórias mais importantes, e também as mais intensas, mais deliciosas, mais engraçadas, divertidas ou até bizarras. Narrei várias delas pros amigos, gravando, para depois usar o áudio como referência e inspiração para o texto.
Queria escrever do jeito que eu costumo contar, com um toque de pimenta para provocar tesão. Criei para mim um personagem que é quase rodriguiano, mas que é a mais pura tradução de mim mesma, Lasciva. Escancarei as pernas, abri-me totalmente, com o meu jeito desencanado da vida, tentando aproveitar. O blog se chamou Lasciva conta tudo.
Já imaginei outras formas de extravasar meu ímpeto sexual. Queria ser stripper, mas sou super desengonçada e não tenho corpão. Uma vez, achei que pegava tantos caras nada a ver comigo, que pensei em me prostituir e lucrar com aquilo que mais gosto de fazer. Perguntei o que uma amiga achava, que tentou me dissuadir. Não precisou. Comecei a me relacionar com diferentes homens na rua, para testar a minha reação e o que achava disso. Bati meu recorde: sete caras num mês. Vi que tinha gostado mesmo de poucos. Além do mais, nem cheguei a cobrar de nenhum. Concluí que se tentasse me vender por sexo, talvez deixasse até de gostar. Minha libido não é mercadoria.
Escrever todas as minhas taras foi como achei para derramar esse desejo. No blog e no Twitter, passei compartilhar muito do que vivia, sem pudores.
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Folha de S.Paulo – Blogs – Literatura sem catracas | Marcelo Coelho
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