Marilena Chauí e as manifestações
28/06/13 17:35Entre várias coisas requentadas e outras interessantes, a filósofa escreveu sobre as manifestações no site da Fundação Perseu Abramo. Eis um trecho, que a meu ver caracteriza a difícil situação retórica da autora. De um lado, ela não pode ser contra um fenômeno que, bem ou mal, se inscreve numa linha histórica de movimentos a que, antigamente, o PT pertencia. De outro, ela não se solidariza com os acontecimentos..
Simbolicamente, malgrado eles próprios e malgrado suas afirmações explícitas contra a política, os manifestantes realizaram um evento político: disseram não ao que aí está, contestando as ações dos Poderes Executivos municipais, estaduais e federal, assim como as do Poder Legislativo nos três níveis. Praticando a tradição do humor corrosivo que percorre as ruas, modificaram o sentido corriqueiro das palavras e do discurso conservador por meio da inversão das significações e da irreverência, indicando uma nova possibilidade de práxis política, uma brecha para repensar o poder, como escreveu um filósofo político sobre os acontecimentos de maio de 1968 na Europa.
Justamente porque uma nova possibilidade política está aberta, algumas observações merecem ser feitas para que fiquemos alertas aos riscos de apropriação e destruição dessa possibilidade pela direita conservadora e reacionária.
Comecemos por uma obviedade: como as manifestações são de massa (de juventude, como propala a mídia) e não aparecem em sua determinação de classe social, que, entretanto, é clara na composição social das manifestações das periferias paulistanas, é preciso lembrar que uma parte dos manifestantes não vive nas periferias das cidades, não experimenta a violência do cotidiano experimentada pela outra parte dos manifestantes. Com isso, podemos fazer algumas indagações. Por exemplo: os jovens manifestantes de classe média que vivem nos condomínios têm ideia de que suas famílias também são responsáveis pelo inferno urbano (o aumento da densidade demográfica dos bairros e a expulsão dos moradores populares para as periferias distantes e carentes)? Os jovens manifestantes de classe média que, no dia em que fizeram 18 anos, ganharam de presente um automóvel (ou estão na expectativa do presente quando completarem essa idade) têm ideia de que também são responsáveis pelo inferno urbano? Não é paradoxal, então, que se ponham a lutar contra aquilo que é resultado de sua própria ação (isto é, de suas famílias), mas atribuindo tudo isso à política corrupta, como é típico da classe média?
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“Resultado de sua própria ação, isto é, de suas famílias” é uma pérola. Enquanto tantos petistas, durante o julgamento do mensalão, descobriram as virtudes do direito burguês, com o saudável princípio da individualização da pena, Marilena Chaui volta aos raciocínios da culpa de classe…
Ela finaliza com algumas perguntas aos manifestantes. Diz que suas considerações
não são gratuitas nem expressão de má vontade a respeito das manifestações de 2013. Elas têm um motivo político e um lastro histórico.
Motivo político: assinalamos anteriormente o risco de apropriação das manifestações rumo ao conservadorismo e ao autoritarismo. Só será possível evitar esse risco se os jovens manifestantes levarem em conta algumas perguntas:
estão dispostos a lutar contra as ações que causam o inferno urbano, e portanto enfrentar pra valer o poder do capital de montadoras, empreiteiras e cartéis de transporte, que, como todos sabem, não se relacionam pacificamente (para dizer o mínimo) com demandas sociais?
estão dispostos a abandonar a suposição de que a política se faz magicamente sem mediações institucionais?
estão dispostos a se engajar na luta pela reforma política, a fim de inventar uma nova política, libertária, democrática, republicana, participativa?
estão dispostos a não reduzir sua participação a um evento pontual e efêmero e a não se deixar seduzir pela imagem que deles querem produzir os meios de comunicação?
Poderia perguntar, por último: “estão dispostos a se filiar ao PT?”
Ela continua:
Lastro histórico: quando Luiza Erundina, partindo das demandas dos movimentos populares e dos compromissos com a justiça social, propôs a Tarifa Zero para o transporte público de São Paulo, ela explicou à sociedade que a tarifa precisava ser subsidiada pela prefeitura e que não faria o subsídio implicar cortes nos orçamentos de educação, saúde, moradia e assistência social, isto é, dos programas sociais prioritários de seu governo. Antes de propor a Tarifa Zero, ela aumentou em 500% a frota da CMTC (explicação para os jovens: CMTC era a antiga empresa municipal de transporte) e forçou os empresários privados a renovar sua frota. Depois disso, em inúmeras audiências públicas, apresentou todos os dados e planilhas da CMTC e obrigou os empresários das companhias privadas de transporte coletivo a fazer o mesmo, de maneira que a sociedade ficou plenamente informada quanto aos recursos que seriam necessários para o subsídio. Ela propôs, então, que o subsídio viesse de uma mudança tributária: o IPTU progressivo, isto é, o imposto predial e territorial seria aumentado para os imóveis dos mais ricos, que contribuiriam para o subsídio junto com outros recursos da prefeitura. Na medida que os mais ricos, como pessoas privadas, têm serviçais domésticos que usam o transporte público e, como empresários, têm funcionários usuários desse mesmo transporte, uma forma de realizar a transferência de renda, que é base da justiça social, seria exatamente fazer com que uma parte do subsídio viesse do novo IPTU.
Os jovens manifestantes de hoje desconhecem o que se passou: comerciantes fecharam ruas inteiras, empresários ameaçaram lockout das empresas, nos “bairros nobres” foram feitas manifestações contra o “totalitarismo comunista” da prefeita e os poderosos da cidade “negociaram” com os vereadores a não aprovação do projeto de lei. A Tarifa Zero não foi implantada. Discutida na forma de democracia participativa, apresentada com lisura e ética política, sem qualquer mancha possível de corrupção, a proposta foi rejeitada. Esse lastro histórico mostra o limite do pensamento mágico, pois não basta ausência de corrupção, como imaginam os manifestantes, para que tudo aconteça imediatamente da melhor maneira e como se deseja.
Cabe uma última observação: se não levarem em consideração a divisão social das classes, isto é, os conflitos de interesses e de poderes econômico-sociais na sociedade, os manifestantes não compreenderão o campo econômico-político no qual estão se movendo quando imaginam estar agindo fora da política e contra ela. Entre os vários riscos dessa imaginação, convém lembrar aos manifestantes que se situam à esquerda que, se não tiverem autonomia política e se não a defenderem com muita garra, poderão, no Brasil, colocar água no moinho dos mesmos poderes econômicos e políticos que organizaram grandes manifestações de direita na Venezuela, na Bolívia, no Chile, no Peru, no Uruguai e na Argentina. E a mídia, penhorada, agradecerá pelos altos índices de audiência.
Um último comentário. Também acho que dificilmente a tarifa zero poderá ser implantada, e que haveria uma imensa grita contra o necessário aumento dos impostos para os ricos. Mas acho que Marilena Chauí é refém de outro “Pensamento Mágico”, além daquele que atribui aos que acham o facebook capaz de mudar o mundo.
O PT é o seu grande fetiche. Fora do PT, as mudanças sociais são impossíveis, criticáveis, reféns da mídia e podem desandar em fascismo. Falta perguntar, todavia, se Fernando Haddad estava transparente e certo quando disse que seria impossível baixar os 20 centavos da tarifa.
Por outro lado, a proposta de Erundina não prosperou, entre outras razões, porque não houve mobilização –como a de hoje– capaz de se contrapor às reações da direita. Não é preciso dizer a Marilena Chauí que, conforme o momento histórico, uma reivindicação pode morrer ou se transformar em conquista. Mas, dada sua lealdade ao PT e a Erundina, ela transforma a experiência histórica em fetiche: o que não ganhou nos anos 90 não terá condições de ser vitorioso mais de 20 anos depois.
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Texto claramente antipetista e desvirtuador do que disse Marilena Chauí. Mas, ok, viva o direito de se manifestar.
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