Teoria da tarifa zero
29/06/13 16:59Depois de assistir à entrevista de dois representantes do Movimento Passe Livre com jornalistas da Folha, fiquei pensando na reivindicação do direito ao transporte público de qualidade. Por certo, é um direito pelo qual vale a pena lutar, e o MPL se pergunta, com razão, por que não está inscrito no texto constitucional, sendo tão básico quando saúde, moradia, educação.
O problema que quero discutir é outro. Admitindo-se que seja mesmo um direito básico, fica a pergunta: num mundo ideal, deve mesmo o transporte público ser totalmente gratuito? Uma coisa não decorre, acho, da outra.
Veja-se o direito à saúde. Sendo um direito universal, dificilmente poderíamos cogitar de que não fosse, ao mesmo tempo, gratuito. Pois há tratamentos de saúde caríssimos, e ninguém pode saber se vai ou não, algum dia, precisar deles. Não há, no mundo real, escolha possível: não escolho doenças mais baratas ou mais caras, nem posso escolher não ficar doente. Se o direito tem de ser garantido para todos, é necessário, na prática, que seja gratuito o acesso aos serviços de saúde pública.
Com relação à educação, o preço de uma mensalidade escolar certamente também traz uma exigência de gratuidade para o que o direito seja garantido universalmente. Mas já não acho um fator tão forte quanto o que se verifica no caso da saúde. Muita gente já estudou ou não quer estudar mais: estará pagando impostos para que outros estudem, o que é justo, e estará se beneficiando de uma sociedade onde toda pessoa, se quiser, pode estudar de graça. Mas não é pessoalmente um beneficiário virtual do serviço de educação.
Todo mundo é virtualmente internável num hospital para tratamento cardiológico caríssimo. Nem todo mundo é virtualmente matriculável numa escola. Além disso, pode não ser desejável que alguém pague sua mensalidade de faculdade; pode ser desejável que todos os alunos, absolutamente todos, tenham acesso grátis à faculdade. Mas não é necessariamente injusto que alunos de famílias especialmente ricas tenham de pagar mensalidades na USP. Pode não ser desejável, mas não é injusto. Pode nem fazer muita diferença em termos orçamentários, mas não é injusto.
Passando ao transporte público. Uma coisa é lutar pelo transporte público de qualidade. Trata-se de algo, como disseram os representantes do MPL, que beneficia toda a sociedade, e não apenas os seus usuários. Mas não considero que esse raciocínio torne logicamente obrigatório que os serviços sejam absolutamente gratuitos –que a tarifa seja zero. Desde que o transporte público seja barato –e, em alguma medida, é–, esse direito está garantido. No caso da saúde isso não ocorre. Ademais, muita gente –que mora perto do emprego, que não se desloca, que é velho ou é criança—não é necessariamente usuário regular do transporte público. É justo que transfira renda para o usuário regular, por meio de impostos? Sim, se os seus impostos garantem mais obras de metrô, etc., que beneficiam toda a sociedade, mesmo quem não anda de metrô. Não sei se é justo quando os impostos financiam totalmente uma passagem que qualquer pessoa tem, por si mesma, condições de pagar.
Claro que, para manter a passagem barata, certa dose de subsídio estatal é necessária. O governo pode arcar com 30, 40, 60 por cento dos custos de uma passagem. Mas que cada usuário arque com 30, 40 ou 70 por cento dos recursos da sua própria passagem não é necessariamente injusto, se isso custar relativamente pouco. Mesmo custando pouco, o bolo total dos recursos auferidos faz diferença –o que não acontecia no caso de uma pequena porcentagem de estudantes da USP pagar pelos seus estudos.
A questão é eminentemente prática, de custos, de realidades diferentes (as necessidades de saúde, educação, transporte têm suas particularidades). Não é, a meu ver, uma questão de princípios. Defender o direito ao transporte não faz com que só seja justo um mundo de tarifa zero.
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