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Marcelo Coelho

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Perfil Marcelo Coelho é membro do Conselho Editorial da Folha

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O dedo no nariz

Por Folha
21/08/13 03:01

Nas “Confissões de um Poeta”, Ledo Ivo relembra um dia de grande chuvarada, na praça da Matriz de não sei que cidade brasileira. Da igreja saía um grupo de seminaristas em excursão.

O aguaceiro veio de repente, e todos correram para se proteger. Todos, menos o superior da diocese. “Corre, corre, dom Fulano!”, gritavam os seminaristas. Mas o prelado prosseguia no mesmo passo.

“Bispo não corre”, sentenciou dentro da batina ensopada, pisando nas poças com seus sapatos pretos.

Os tempos mudaram, como atesta um vídeo que circulou na internet, com o papa Francisco. Cometi a imprudência de compartilhá-lo no Facebook.

Choveram protestos, até dos leitores mais fiéis. Do que se tratava? A meu ver, nada de mais.

Sentado no banco traseiro de um carro prateado, com câmeras e repórteres querendo entrar pela janela, Francisco fazia uma discreta higiene no nariz.

O polegar, dentro da narina, descreveu uma rápida meia-lua. Algo foi retirado de lá. Depois de uma breve pausa, o papa…

Sim, o papa comeu a melequinha! Compartilhei a notícia sem comentário. Meu objetivo não era tripudiar a imagem do pontífice. O vídeo certamente era invasivo. Mas achei bom, achei normal, gostei, sorri.

Há coisas muito piores a fazer do que ingerir esse tipo de matéria. Fiz isso uma vez, quando criança, e não estava sozinho na ocasião.

Lembro-me bem. Estava na casa de uma tia, muito católica por sinal, e que tinha problemas de surdez. Talvez por isso, ela ficava às vezes ausente da cena, sem prestar atenção em nada.
Dizia mesmo que, quando a conversa ficava chata, ela desligava o aparelho.

Sei que ela estava sentada à minha frente, com os seus olhos puros e verdes fixados em mim. Foi como se me hipnotizasse. Pus o dedo no nariz, e naquela única vez, experimentei o gosto —salgado, seco, sem nojo— do que retirara lá de dentro.

Com uma risada de surpresa, ela saiu de seu transe —e eu também. Como fui capaz da proeza? Eu sabia que não era algo que se faz em público.

Pode ser que eu precisasse certificar-me de que ela estava ali. Pode ser, também, que eu precisasse certificar-me da minha própria existência. Tínhamos sido colhidos, quem sabe, numa espécie de vazio temporal.

Um buraco negro, vá lá, em que a nossa própria existência, e a consciência de estar nela, desapareceram silenciosamente. Não era eu, não era ela; a impropriedade —das mais leves, afinal— se cometera sem sujeito.

De resto, todo mundo põe o dedo no nariz. Tive o prazer de fazer essa revelação, já adulto, a um menino a quem repreendiam a constância nessa atividade.

Só não sei por que tantas pessoas fazem isso dentro do carro. Basta olhar para os lados quando o sinal está vermelho. Alguns cantam. Outros põem o dedo no nariz. Sabemos (me incluo nessa) que qualquer um pode nos surpreender nessa inocente intimidade.

Estar dentro do carro, mesmo com o vidro aberto, aparentemente nos torna imunes à crítica. O carro é o meu castelo. O teto de lata é, ainda assim, um teto. De lá, posso xingar qualquer pedestre. Por que não o dedo no nariz?

Os jogadores de futebol (mas não os de basquete ou de vôlei) fazem pior em campo; o uso de cotonetes em público, embora não corriqueiro, conhece menor reprovação.

Escarradeiras eram comuns nos tempos de Machado de Assis; até recentemente, a cera do ouvido podia ser retirada com a unha do mindinho, desde que a fizessem crescer, “à catita”: esse o termo.

O “processo civilizador”, para lembrar o conhecido livro de Norbert Elias, impõe crescentes disciplinas sobre as atividades corporais. Está provavelmente errado quem pensa que a Idade Média era uma época de puritanismo; em Chaucer, Boccaccio ou Dante fala-se mais da “questão do corpo” do que em qualquer catálogo de arte contemporânea.

Mais do que deseja a austeridade protestante, a cultura católica palpita de corpo em toda parte. Os quadros dos santos explodem de chagas e de sangue. Sempre achei estranho, aliás, o guardanapo que o padre usa na missa depois de tomar o vinho. No cristianismo, de resto, Deus se fez de carne, carne que come peixe e pão, carne que atravessaram pregos.

A imprensa cerca o papa. Ele põe o dedo no nariz. Há muita simbologia nisso. Quem quiser que atire a primeira pedra.

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Comentários

  1. Paulo Martins comentou em 28/08/13 at 22:32

    As 4 últimas frases do post me lembram do poema de Drummond, quando fala da disputa entre poetas e o poeta federal tira titica do nariz diante da discussão.

  2. Marina Capellini comentou em 21/08/13 at 21:05

    Acabei de ler as 101 CRÔNICAS (Tempo Medido) de Marcelo Coelho(Membro do Conselho Editorial da Folha de São Paulo) Gostei tanto que não consegui encontrar palavras para descrever!

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