O cavaleiro azul
30/10/13 03:02A “Sagração da Primavera”, de Stravinsky, comemorou cem anos de sua estreia há poucos meses, e escrevi a respeito aqui na “Ilustrada”. Na pintura, o equivalente daquela revolução foi sem dúvida o quadro “Les Demoiselles d’Avignon”, que Picasso pintou em 1907.
O potencial de escândalo era tamanho que mesmo alguns contemporâneos e amigos de Picasso, como Henri Matisse, se recuperaram mal daquele quadro. Não eram apenas os ângulos cortantes, o susto daquelas mulheres nuas como que iluminadas por um flash fotográfico, a violência de cacos de vidro da composição.
Máscaras indígenas ou africanas apareciam como que coladas ao pescoço de duas daquelas mulheres nuas, fazendo com que as outras parecessem até realistas pela comparação.
Com isso, “Les Demoiselles d’Avignon” dava um grande passo além das pinturas sonhadoras, musicais, a que Matisse se dedicava na mesma época. Por meio da “arte primitiva”, entravam em cena —como na “Sagração da Primavera”— o medo, a violência, o poder paralisante, o olhar de Medusa do mundo moderno.
Aí por volta de 1912, 1913, cubismo e futurismo já estavam em vias de superação. Na Alemanha, pelo menos, já surgiam críticas às visões de Picasso e Marinetti.
Foi em 1912, com efeito, que Franz Marc (1880-1916) e Wassily Kandinsky (1866-1944) publicaram o “Almanaque do Cavaleiro Azul”, álbum de ensaios, reproduções artísticas e partituras em defesa do expressionismo e da arte abstrata.
Essa publicação acaba de sair traduzida no Brasil, com organização de Jorge Schwartz, num volume lindíssimo (Edusp-Museu Lasar Segall).
Pela primeira vez no mundo, a quase totalidade dos quadros, gravuras, desenhos e esculturas que faziam parte da edição original aparece reproduzida em cores.
Na época, o livro publicado por Reinhard Piper tinha apenas quatro imagens coloridas. Em inglês, uma edição modesta, feita pela Da Capo Press, é uma tristeza de fotos esmaecidas em preto e branco.
Marc e Kandinsky colocam, lado a lado, quadros de Cézanne e esculturas da Oceania; bordados do Alasca e desenhos de crianças; xilogravuras medievais e alto-relevos do Benin; um Cristo de El Greco e quadrinhos populares alemães.
Pode-se ver e rever essa festa de imagens sem atinar muito o que há, afinal, de parecido entre tantas coisas. Mas o elogio do popular, do primitivo, do “informe”, do “malfeito”, do “naif”, se quisermos, ganha nessas páginas uma força revolucionária, uma generosidade, uma verdade que saltam aos olhos.
Tratava-se, diz Franz Marc, de buscar “símbolos que pertencem aos altares da futura religião espiritual e atrás dos quais desaparece o produtor técnico”.
Os textos de Kandinsky e de August Macke (1887-1914) são ainda mais místicos. A forma artística, escreve Macke, “é a expressão de forças misteriosas”.
“Ouvir o trovão”, prossegue, “é sentir o seu mistério”. O relâmpago “se expressa, a flor também”.
Não fazia mais sentido, assim, buscar o desenho “certo”, a forma “perfeita”. Para o pintor expressionista, a diferença não será entre o bonito e o feio, mas entre o vivo e o morto. Mortas serão as imitações da arte acadêmica; vivo, o desenho imperfeito de uma criança, ou a máscara de um feiticeiro africano.
Não fica muito claro por que motivo esses artistas escolheram o nome de “Cavaleiro Azul” para título daquele livro. Inspirado na teosofia, Kandinsky achava que a cor azul canalizava o máximo da espiritualidade. Franz Marc era notável ao fazer quadros de corças, tigres, cavalos.
Muitas das ilustrações que escolheram para o “Almanaque” representam São Jorge e outros heróis medievais enfrentando dragões ou decapitando inimigos. Menos do que um intuito “belicoso”, no estilo do elogio à guerra dos futuristas italianos, havia ali a tentativa de se ligar ao passado: o passado medieval, o passado primitivo, o passado das crenças camponesas.
Em todos esses momentos, estaria presente a dissolução do mundo clássico, do mundo civilizado, das imagens da perfeição greco-romana.
O edifício da civilização europeia estava desabando, pensavam os expressionistas. Pelas rachaduras daquele edifício, eles julgavam ver uma luz nova, como numa revelação, num apocalipse.
As formas da arte moderna poderiam ser esquisitas, distorcidas, mas é assim que a realidade se apresenta na madrugada, pouco antes do amanhecer. São “fantasmagorias antes da aurora”, diz o “Cavaleiro Azul”.
A aurora, entretanto, seria de outro tipo. Um ano depois, começaria a Primeira Guerra Mundial; August Macke e Franz Marc morreram no front.
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Nunca me esquecerei de quando jovem, a primeira vez que visitei o MASP, para minha absoluta sorte, naquele período estavam expostas obras de Rembrandt, diante do gênio e de sua obra figuei como diante de Deus !!!!