Sol e chuva
06/11/13 03:01Quando eu era criança, estranhava muito que a primavera, em São Paulo, não correspondia nada ao que me ensinavam na escola e nos desenhos animados.
Nenhum despertar da natureza, nenhum degelo, nenhuma floração. Só mais tarde aprendi que, nesta cidade, quem procura as flores não deve olhar para baixo, para os canteiros e jardins, mas para o alto: são as árvores que se cobrem de rosa, de azul, de roxo, de vermelho.
Já é alguma coisa, embora um rabugento possa dizer que não há tantas árvores assim, e que nem todas acompanham a nova estação.
Menino rabugento, certamente eu era, e tinha outras reclamações. Ao contrário de um lindo longa-metragem com Zé Colmeia e Catatau, onde nas cenas iniciais o sol derretia os pingentes de neve da caverna, deixando as primeiras gotas de água gelada caírem no focinho dos ursos adormecidos, em São Paulo a primavera não era sinônimo de sol.
De fato. Nada mais incerto que estes dias de outubro e de novembro. Domingo, um calor brutal dava por inaugurada a época das compras natalinas e das férias; segunda-feira, vento e chuva, luzes de casa acesas às quatro da tarde.
Será o nosso “microclima”? A palavra, com sua irritante dose de pedantismo, volta e meia aparece no filme “Pedalando com Molière”, de Philippe Le Guay, atualmente em cartaz.
A história se passa num lugar turístico do noroeste da França, a ilha de Ré, em pleno inverno. A estância balneária sofre com o frio da baixa estação; mas o sol aparece às vezes. É o nosso microclima, explica um motorista de táxi, numa tagarelice simpática que nem sempre associamos ao temperamento francês.
Os franceses, pelo menos os de Paris, tiveram fases de extrema antipatia. Depois, parece que houve alguma campanha (hipnose? Alguma substância no vinho de consumo ordinário?) e eles melhoraram.
Passei a entendê-los melhor quando percebi que não eram propriamente ferozes, mas apenas… nervosinhos. No fundo, apesar de toda a história de refinamento, mesuras, perucas e palácios, facilitou-me a vida pensar que os franceses são na verdade perfeitos italianos, explosivos e sanguíneos, só que falando a língua de Racine e Molière.
Voltando ao filme. O bonitão Lambert Wilson (Plástica? Botox? Depilação de sobrancelhas?) faz o papel de um célebre ator de telenovelas. Vai procurar, na fria cidadezinha à beira-mar, um amigo mais velho (Fabrice Luchini, magistral), que por desgosto abandonou os palcos e sets de filmagem.
O objetivo da visita é convencer o amigo, que deseja o isolamento completo, a voltar para o teatro. Encenariam juntos “O Misantropo”, comédia a bem dizer sombria de Molière. Na peça, dois amigos debatem visões distintas sobre a humanidade. Alceste, o rabugento, não vê nos homens senão “injustiça, interesse, malícia e traição”. Retira-se do convívio dos semelhantes.
O outro, Philinte, pede a Alceste alguma ternura; seria insensato querer a correção do mundo, e por excesso de lucidez se pode errar também. No filme, Lambert Wilson sugere ao ator mais velho que, quando representarem a peça, alternem os papéis. Numa semana Lambert seria o inimigo dos homens, na outra o amigo complacente.
Não estrago nenhuma surpresa se disser que, enquanto ensaiam a peça, os dois atores também terminarão trocando de atitudes. O bonitão da TV, querendo ficar bem com todo mundo, agirá às vezes como o misantropo Alceste. O veterano ator, desenganado e recluso, pode aos poucos impregnar-se da bonomia de Philinte.
São tantas as reviravoltas, tão matemática, tão francesa, a engrenagem do filme, que de dez em dez minutos o espectador tem de se readaptar às mudanças do “microclima” entre os dois personagens.
Sol e chuva se alternam rapidamente, e a fotografia de “Pedalando com Molière” não poderia ser mais poética. O ator velho, no começo, se faz de rogado, diz que não está interessado em participar de nenhum novo projeto.
Pela janela, contudo, passa um raio de sol, quase branco, e seu rosto se ilumina. A psicologia dessa cena, convenhamos, é tão legível quanto a de uma comédia clássica: Fulano diz não quando quer dizer sim.
Mas, do mesmo modo que a leitura da peça vai se refinando conforme a dupla se aplica mais e mais aos seus ensaios, também o filme vai revelando camadas e mais camadas nos sentimentos de seus personagens.
O rabugento tem e não tem razões para desconfiar do mundo. A realidade, a vida, a solidão, a sorte ou o azar no amor não cessam de lhe trazer novas lições; só um morto pode gabar-se de convicções definitivas, e, como na primavera paulistana, não perde quem levanta os olhos um pouco acima do chão.
Caro Marcelo, muito obrigado, seu texto me levou ao filme, que é excelente! A cena final é um milagre.
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Sobre a falta de arborização, infelizmente devo dizer que este está parecendo ser o melhor habitat para o moderno homem das cavernas: as suas selvas de pedras! UM GRANDE ABRAÇO!
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Estamos precisando, né, Teresa? Bjs
Estamos precisando, né? Abraço!
Lindo Marcelo! E por falar nisso, tudo começa quando a gente é criança , ou tudo passa pela criança, como diz A. Munro.
Com certeza… no filme, os dois eram perfeitas crianças também.
LInda an’alise Marcelo. Aqui na Australia a primavera bascula, como no Brazil. Evidencia de que a natureza tamb’em resiste `a certitude paralizante.
Com certeza, Renata! É como andar de bicicleta, parou, caiu.
Brilhante! Que texto bom, professor Marcelo! Por isso leio teus textos desde 1991! Um abraço de Porto Alegre!
Sol e chuva e um texto encantador como um arco-iris. Adorei.
Obrigado, Fábio!
Marcelo!
Que lufada de ar fresco (aproveitando o tema) a sua escrita brilhante me causou! Nossa..demais!
Bj
Teresa