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Marcelo Coelho

Cultura e crítica

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Walter Mitty

Por Folha
01/01/14 03:00

Qualquer que seja o livro, e qualquer que seja o filme, em geral todo mundo concorda: o livro é muito melhor. Com “A Vida Secreta de Walter Mitty”, acontece o contrário.

O filme, dirigido e estrelado por Ben Stiller, tem uma riqueza de conotações e uma exuberância imaginativa que o simpático e curtíssimo conto de James Thurber (1894-1961) não consegue alcançar.

O texto, publicado pelo cartunista e escritor americano em 1939, parte de uma excelente ideia —e praticamente se resume a essa ideia apenas. De profissão indefinida, com uma mulher exigente e banal, Walter Mitty visita o centro de sua cidadezinha dirigindo seu automóvel —que imediatamente, em sua imaginação, transforma-se numa embarcação de guerra.

Ele tem de levar a mulher até o cabeleireiro e comprar ração de cachorro no armazém. Essas atividades comuns se transfiguram numa cirurgia de alto risco ou no sensacional julgamento de um assassino impiedoso.

Os parágrafos do conto se alternam simetricamente entre a vida comum e as fantasias, alimentadas de literatura barata e reportagens sensacionalistas, em que o personagem submerge.

Apesar de sua doçura humaníssima, o conto padece de um esquematismo formal, de um tique-taque entre as situações, que torna suas poucas páginas até excessivas para o ponto que se quer demonstrar.

James Thurber traduz para a vida concreta americana algo que Baudelaire, num poema em prosa ainda mais seco e óbvio, já fizera em meados do século 19. O marido viaja nas nuvens, enquanto a mulher grita para que ele tome a sopa de uma vez.

Para lembrar de outros personagens parecidos, Walter Mitty é também um ancestral de Snoopy, o cachorrinho das tiras de Charles Schulz, que por vezes brinca de ser um ás da aviação na Primeira Guerra Mundial ou o bacanão de um campus universitário.

No filme atualmente em cartaz, Walter Mitty é solteiro, e sabemos tudo de sua profissão. Ele é encarregado de arquivar os negativos fotográficos da revista “Life”, o que faz com que seu emprego esteja duplamente ameaçado.

A revista toda será fechada, em tese porque o jornalismo impresso perde espaço para mídias digitais; pior ainda, nenhum fotógrafo usa o filme convencional, de modo que já não há negativos para guardar.

Com esse contexto concreto e atualizado para o conto, o roteiro do filme (assinado por Steve Conrad) cria ao mesmo tempo uma metáfora que dá novos significados à situação.

Walter tem de achar o negativo de uma imagem especialíssima, feita pelo aventuroso e genial fotógrafo Sean O’Connell (Sean Penn). Viajando pelos lugares mais perigosos e selvagens do planeta e enfrentando todo tipo de perigos (Afeganistão, Groenlândia, neves, terroristas, vulcões), o fotógrafo tem no medroso Walter Mitty seu exato “negativo”.

Enquanto isso, as fantasias do personagem se imiscuem no filme de um modo muito menos mecânico do que no conto. No universo de James Thurber, a ficção impressa ainda era o que fornecia o ópio imaginativo do personagem —isso, num tempo em que o cinema já reinava na cultura americana.

No filme de Ben Stiller, a passagem para o ilusório se faz sem quebras, uma vez que tudo —seja verdadeiro ou fantasioso— já se passa no ambiente onírico por excelência, o dos filmes de Hollywood.

É assim que o espectador terá de atentar para ilusões em dupla direção. Sem aviso prévio, Walter Mitty sai da realidade para um mundo de aventuras hollywoodianas. Mas a própria realidade é hollywoodiana, e a história do filme pode conferir ao personagem saídas que o conto não se dispunha a oferecer.

Como um negativo fotográfico, o verdadeiro Walter Mitty será “revelado” ao longo do enredo —mas o espectador pode se perguntar se esse novo personagem é de fato “verdadeiro” ou simplesmente uma nova, e mais elaborada, ilusão.

Estou, em todo caso, sofisticando demais um filme talvez longo demais, e que aspira a ser, sobretudo, um entretenimento de ótimo nível. Como sempre, saímos do cinema para reencontrar, inalterada, a realidade de nossas próprias limitações e de um cotidiano tantas vezes desinteressante.

Mas, quando o ano termina, e alguns projetos se fazem para o futuro, é também possível que ao olhar para trás a gente perceba que muita preocupação real agora já se transformou em ilusão.

Cada pessoa, que mal se conhece a si mesma, pode ter sido vítima de aparências e de sombras sem substância. Quem sabe se descubra como realmente é, melhor e mais forte do que pensava. Talvez essa descoberta seja apenas outra invenção, não importa. Como dizem no Ano-Novo, importa mais que seus sonhos se realizem.

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Comentários

  1. Joaquim Dantas comentou em 10/01/14 at 16:21

    Marcelo,
    Não é bem assim que se passam as coisas nessa questão de adaptação/transmigração do livro para o filme. Na verdade, tudo depende, além, é claro, dos talentos de roteiristas e diretores, da qualidade e também do tamanho do livro, somente podendo vir a ser bem sucedidas adaptações/transmigrações de obras literárias: 1) medíocres/medianos (caso de praticamente todos livros que inspiraram os filmes de Hitchcock); 2) curtos (tipicamente contos/”nouvelles”/”short stories). Porque, não se tendo a liberdade de tempo e o orçamento de Fassbinder em BerlinAlexanderPlatz (13 horas e meia), ou bem se pega a obra medíocre/mediana e se lhe cortam os excessos, as gorduras, suprimindo os personagens e os entrechos ruins e desnecessários; ou bem se alonga o conto acrescentando-lhe detalhes e profundidade. Tudo para caber nas benditas duas horas que um filme razoavelmente no máximo pode ter. Grandes obras literárias são “catedrais”, imensas, cheias de alas bem equilibradas e ornamentos perfeitos, que não podem ser cortados e reduzidas adequadamente a “capelinhas”. Daí que adaptações cinematográficas de obras-primas, que não sejam contos, em princípio, jamais prestarão. É simplesmente isso.
    Abraços,
    Joaquim Dantas.
    De Recife-PE.

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