Verões antigos
15/01/14 00:30Gostar de escola nunca foi minha especialidade: a chatice das matérias, a violência dos colegas, as lições a entregar, que até hoje são assunto de meus pesadelos, nada disso deixou saudades.
Das férias não trago lembrança muito melhor. Só passei a gostar de praia bem mais tarde na vida. Quando criança, incomodava-me a umidade imediata e pegajosa que, mal chegando a Santos, e mais ainda quando entrávamos no apartamentinho do Guarujá, assediava tudo —pele, roupas, maçanetas, o aparelho de TV.
Televisão? Mentira. Não tínhamos TV, e, se tivéssemos, faria pouca diferença; a imagem era péssima e melhorava pouco para quem tinha o famoso aparelho de UHF, precursor a lenha das antigas antenas Plasmatic.
No capítulo das comunicações, o telefone era outra inexistência. Havia um na portaria do prédio, para casos de necessidade; no geral, pegava-se a fila das cabines na agência do centrinho, onde as ligações pela telefonista poderiam, com sorte, completar-se em menos de meia hora.
Não era tão ruim; encontrava-se, ao menos, algo o que fazer durante a tarde, depois de tantas horas na praia lotada. Lotado, às vezes, também ficava o apartamento de dois quartos; bastava um casal convidado que a sala virava quarto de dormir. Salgado, cheio de areia, fungando, eu esperava a vez no único chuveiro da casa.
Faltava água e luz o tempo todo. Não por acaso estendo a lista dessas queixas póstumas. Quero notar apenas que, se as notícias sobre o verão deste ano podem ser alarmantes —viroses, congestionamentos, praias impróprias—, nada piorou tanto assim.’
As pessoas não se lembram que, na década de 1960, havia óleo de navio em toda praia que se prezasse. Junto à torneirinha da área de serviço, ficava sempre um vidro de benzina com um pano de estopa, razoavelmente eficiente para limpar os pés.
Ar condicionado era um luxo a que só se permitiam algumas poucas “butiques” da cidade. Desconheciam-se o filtro solar e o hidratante pós-sol; usava-se “o óleo”, algo que tinha a cor do azeite do dendê e servia para fritar a pele, e uma pasta espessa para o nariz.
Comprovada a sua inutilidade, era o momento de passar o medonho Caladryl: produto rosa que cobria de película impermeável a pele invadida de bolhas. Será que as mães de antigamente cuidavam menos das crianças? Desconfio que os produtos melhoraram muito.
Também os inseticidas e repelentes. Tínhamos a famosa “espiral”, cujo cheiro não me desagradava. Os mosquitos também gostavam. O defumador verde escuro queimava aos poucos durante a noite, soltando uma fumacinha limpa, levemente selvagem, como que exalada pela mata atlântica, se a mata atlântica fosse tabagista.
Os congestionamentos eram iguais, ou ainda piores do que hoje. Lembro-me do dia 15 de novembro de 1974, dia da grande vitória do MDB contra os militares: doze horas de São Paulo ao Guarujá.
Não havia tantos crimes, é verdade. Minhas últimas experiências no litoral paulista incluem um assalto dentro da farmácia, na véspera de Natal, três invasões da casa quando eu estava fora, gritos de socorro vindos da rua durante um almoço com amigos.
Ninguém se atreveu a ir até a rua para ver o que se passava. Horas depois, viemos a saber que a vítima era a sogra de um dos convidados. Não lhe levaram muita coisa; talvez nada. A água do mar é o diabo quando entope os ouvidos.
Na semana seguinte, outra senhora vasculhava a calçada: tinham-lhe arrancado um brinco de estimação. Perseguidos, os meninos de rua teriam jogado por ali o fruto do assalto.
Eram bem mais tediosos os verões de 50 anos atrás. Havia a fila do pão, a fila para pegar água da bica, a fila do elevador, a fila da balsa que ligava Santos ao Guarujá.
Mas eu gostava da balsa. Chegávamos já no escuro. A água do canal ganhava as luzes do embarcadouro e o arco-íris caprichoso e repelente do óleo despejado. Grandes navios ficavam à espera, levando tatuados no dorso negro nomes e bandeiras estrangeiras. O silêncio do mar continha a vibração constante dos motores, que se transmitia pelos pés.
Meu pai também ficava em silêncio, segurando a barra de ferro que circundava a balsa. Encontrava-o depois na sacada do apartamento, ainda sem dizer nada, diante da nesga de negrume que correspondia ao mar.
O farol de uma ilha piscava de tempos em tempos, comunicando sua própria solidão. A cada três voltas da luz branca, seguia-se um sinal vermelho, mais curto, que eu me entretinha em esperar.
São assim muitas de nossas memórias, intermitentes, constantes, repetidas, marcando com impulsos quietos a escuridão do tempo.
muito bonito o texto, a beleza dos detalhes improváveis guardados na lembrança
O DESCONFORTO TRATADO COM TANTA NOSTALGIA… BELO TEXTO!