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Marcelo Coelho

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Duas felicidades

Por Folha
12/03/14 02:00

De Santos Dumont, o normal seria ver fotos num aeroplano, ou sentado à mesa de trabalho. Mas nunca tinha visto imagens do pai da aviação… dirigindo um carro de corrida, ou —pior ainda— praticando equitação num dos parques mais chiques de Paris.

As duas fotografias aparecem numa exposição do Instituto Moreira Salles, dedicada a Jacques Henri Lartigue (1894-1986). Chama-se “A Vida em Movimento”, e não por acaso Santos Dumont surge como um personagem fugaz nas incontáveis fotografias que Lartigue tirou ao longo de sua vida quase centenária.

Os primeiros aviões, os primeiros carros de corrida, os campeonatos de balonismo, muitas festividades do turfe, jogos de tênis e tombos de bicicleta fazem parte do cotidiano encantado desse filho da alta burguesia francesa.

O pai, engenheiro e diretor da Companhia Franco-Argelina de Estradas de Ferro, era ele próprio entusiasta do automobilismo. Deu a Lartigue sua primeira câmera fotográfica em 1902, quando o menino tinha oito anos.

O culto da velocidade, dos aviões e dos esportes é bem típico, como se sabe, da estética modernista —em especial antes da Primeira Guerra, momento em que se percebeu o potencial assassino de tantas invenções técnicas.

Apesar de sentir a perda de vários amigos no morticínio de 1914-1918, Lartigue não parece guardar, em suas fotografias, nenhum vestígio das grandes tragédias do seu século.

A Segunda Guerra o encontra na Côte d’Azur, clicando os grandes hotéis brancos entre palmeiras, assentados nas praias de cascalho. No castelo da família, todos organizam palhaçadas na piscina.

Futilidades, sem dúvida. Um dia, Lartigue passou uma boa meia hora tentando fazer seu gatinho dar o salto justo para ser fotografado em pleno voo. Pendurou uma bola de papel na linha de uma vara de pesca, de modo a atrair o bichano.

A foto, de 1918, associa-se na exposição à grande quantidade de pessoas também surpreendidas em pleno ar. Num grupo que joga bola na praia, alguém se estica para realizar uma defesa acrobática; um primo gordo se imobiliza no papel de prata logo depois de largar o trampolim; mulheres adultas brincam de pula-sela.

Na foto que com justiça foi escolhida para o cartaz da exposição, um menino sorridente e descabelado, fora de foco devido à rapidez do movimento, se arremessa sobre um grande castelo de areia, rodeado de um daqueles fossos com que se espera manter domada a água do mar.

A praia, como tantas do litoral europeu, é longa, triste, chuvosa. O menino se destaca contra a água prateada e calma, num lampejo escuro de ideograma japonês.

Traduzir o ideograma não é difícil: para Lartigue, é a felicidade. Vale a pena prestar atenção, contudo, na parte inferior de cada foto. Ou temos uma areia úmida, quase negra, que só de olhar nos enregela, ou se trata da água da piscina, onde todos se divertem sem sentir o quanto é espessa, sombria e sem fundo.

Eram piscinas antes de se descobrir, creio, o uso do cloro. Não há nada de californiano, de solar, de leve nesses verões franceses.

Os personagens de Lartigue estão sempre sobrevoando a realidade —mas ele deixa pressentir que esse voo é curtíssimo, dura apenas o tempo de um clique fotográfico, e faz parte do programa, logo em seguida, estatelar-se no chão.

Bem diversas, sem dúvida, são as imagens de felicidade feitas por Cartier-Bresson (1908-2004). Penso nas fotos que ele tirou celebrando, nos anos 1930, a recente conquista das férias coletivas para os trabalhadores, no breve governo de esquerda da Frente Popular.

Não há sensação de fugacidade ali; o inigualável senso de Cartier-Bresson para a composição espacial parece acomodar grupos de pessoas, objetos, paisagem e gestos num equilíbrio sem fim.

Sabemos que as harmonias de Cartier-Bresson também foram resultado do acaso; são precárias, irão desfazer-se logo depois de tirada a foto. Lartigue não parece pensar, entretanto, em simetria: tudo é uma sucessão de instantes, a reencenar sempre —mas nenhum será abençoado pela perfeição.

Duas ideias de felicidade, talvez. A de Lartigue feita de excitabilidade insaciável, de explosões de energia, de desafio às leis da gravidade e da vida. A de Cartier-Bresson mais feita de estados que de instantes, de pacificação consentida e de aceitação do tempo.

Nenhum dos dois haverá de estar errado, apesar de visões tão distintas a respeito do assunto. Viveram, ambos, quase até os cem anos —e o que a vida pode ter de negativo eles deixaram, sem dúvida, no estúdio de revelação.

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Comentários

  1. Rodrigo Campos comentou em 18/03/14 at 18:15

    Que surpresa, que sensibilidade. Nas fotos e no texto.

  2. José Maria Valentini comentou em 12/03/14 at 15:14

    Gostei da narrativa. Admirável quando se encontra o uso do verbo em elevada capacidade artística. Há algum tempo li que a maior de todas as artes é a da palavra. Não a pintura, a arquitetura, a escultura, nem mesmo a música, como eu pensava. É a arte da expressão através da palavra. Cada ser humano é um mundo em si próprio e ele revela algo desse mundo impenetrável através da arte, principalmente da arte no emprego da palavra.

    • Marcelo Coelho comentou em 15/03/14 at 19:50

      Obrigado, José Maria! Obrigado também, Rogério… Desculpem fazer a resposta coletivamente, mas parece ser assim que funciona na página de comentários…
      Márcio, coloquei logo acima fotos do Lartigue…. Aí Vania, o preço do livro é meio salgado, mas está muito boa a edição das fotos do Lartigue pela editora do próprio instituto Moreira Salles: http://www.livrariacultura.com.br/scripts/resenha/resenha.asp?nitem=30745038&ranking=1&p=lartigu&typeclick=3&ac_pos=header&origem=ac

  3. Rogério comentou em 12/03/14 at 10:17

    Coelho é divertido e genial frasista. Um dos melhores da língua falada no Brasil nesse século. A frase final do artigo é ótima pela ambiguidade e pela síntese que entrega sobre os dois artistas.

  4. Vania comentou em 12/03/14 at 9:24

    Para mim, duas Felicidades: a de ler seu artigo que compara tão bem a obra de dois grandes fotógrafos; e uma infelicidade: não morar no eixo Rio-São Paulo para ter acesso à exposição. Só nos resta a internet…

  5. Marcio comentou em 12/03/14 at 6:30

    As fotos de Cartier-Bresson conheço (algumas), mas Latigue não. Valeu pela dica. Vou ver se acho imagens feitas pelo cara. O interessante nestas fotos antigas é que foram feitas antes da fotografia digital, o que as tornam ainda melhores em comparação com as fotos digitais, pois os fotógrafos de então não dispunham dos recursos atuais. Ver o resultado da foto na hora e, dependendo do tema, poder refazê-la, muda a fotografia.

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