Mocinhos e bandidos
19/03/14 03:02“Alemão”, de José Eduardo Belmonte, é um filme que merece ser visto e revisto. Fiquei com uma impressão errada da história quando vi o trailer: dava-se tanto destaque à presença de Antonio Fagundes no elenco (como o delegado que organizava a célebre ocupação do complexo de favelas carioca), que o compromisso em retratar o “mundo real” saía um pouco prejudicado.
O problema volta e meia acontece quando se recorre a atores muito famosos da televisão. Por melhores que sejam, fica esquisito quando encarnam personagens reais. Lembro-me de um filme sobre Canudos, em que Antônio Conselheiro era ninguém menos do que José Wilker.
Arranjaram uma barba preta para ele, que parecia feita com um escovão de piaçava. Podia ser o Antônio Conselheiro mais perfeito do mundo, mas como espectador eu não conseguia deixar de perguntar: “Mas o que é que o José Wilker está fazendo de batina e barba postiça?”.
De todo modo, Antonio Fagundes nem aparece tanto assim no filme. Numa notável mistura entre realidade e ficção, o roteiro situa o delegado procurando controlar, da distância do gabinete, uma investida perigosíssima contra Playboy, o chefe do tráfico da favela, vivido por Cauã Reymond.
Enquanto isso, cinco policiais infiltrados na favela têm de sobreviver escondidos, por longos dias, até o momento em que o Exército finalmente possa invadir o império de Playboy. O tráfico já conhece a identidade desses informantes; todos os recursos são utilizados para expulsá-los do esconderijo. Já nessa situação se pode ver muito da arte do roteirista.
Em vez de mostrar o traficante cercado pela polícia, “Alemão” mostra os policiais cercados pelos traficantes. A salvação só pode vir “do céu”, o que se representa pelo ruído dos helicópteros sobrevoando o morro.
Playboy aparece quase sempre ao ar livre, tomando banho de piscina no terraço de seu “apartamento de cobertura” em pleno coração da favela. As pesadas correntes de ouro que —como seus comparsas— carrega consigo simbolizam ao mesmo tempo os seus hábitos de ostentação e o fato de estar “com a corda no pescoço”, como se diz.
Outra corrente de ouro —essa bem modesta e fininha— passará das mãos de um jovem policial para outros personagens, em momentos de grande impacto emocional da história. Mas o núcleo dramático do filme está nos conflitos, nas diferenças extremas de personalidade, nas alternâncias de medo e inatividade que marcam o convívio dos policiais escondidos.
Tem-se tudo, aqui, para fazer um excelente filme com baixo orçamento, misturando suspense e drama psicológico. “Alemão” atinge esse objetivo com pulso e velocidade.
Em vez de considerar os policiais em bloco, o roteiro acaba distinguindo tipos sociais e psicológicos muito distintos. Cada um desconfia dos outros: quem terá denunciado sua identidade ao tráfico?
Um dos informantes é garoto mestiço da própria favela. Como não pensar que foi ele quem se aliou, no sufoco, ao tráfico? O outro é gorducho, medroso e dissimulado. Um terceiro é inexperiente, imbuído de ideais e cultura universitária. O quarto é um “tira” da velha guarda, capaz de bater e fuzilar sem hesitação. O quinto, mais sedutor, aposta em táticas de longo prazo.
O problema é que, numa situação dessas, cada um desses estilos pode se revelar o mais adequado num determinado momento, e um desastre total minutos depois. “Alemão” joga magistralmente com essa ambiguidade.
Há uma ambiguidade maior cercando o filme, entretanto, que talvez seja mais difícil de resolver.
Pouca gente há de discordar que as UPPs foram uma coisa muito boa. “Alemão”, assim como o belíssimo documentário “Morro dos Prazeres”, de Maria Augusta Ramos, não tem como não deixar de mostrar o quanto de necessário, de correto e de heroico foi feito para tirar as comunidades do domínio do tráfico e das milícias.
Fazer um filme “a favor”, entretanto, nunca é fácil. O caso Amarildo surgiu exatamente na época em que “Morro dos Prazeres” era lançado em São Paulo. “Alemão” termina com um discurso de Lula, anunciando a vitória sobre o tráfico na favela. O filme já devia estar pronto quando ocorreram as manifestações de junho e os episódios de violência policial que as acompanharam. Cuidou-se, assim, de acrescentar cenas da repressão enquanto passam os créditos do filme.
Hoje, a maré da opinião pública já virou novamente. Os black blocs atraem a antipatia que, meses atrás, se voltava contra os excessos da PM e as insensibilidades de Sérgio Cabral. O tráfico volta a atacar no Complexo do Alemão.
Esses filmes são muito bons. Mas a realidade que retratam certamente tem a forma de um seriado —que está longe de ter chegado à sua última temporada.
Eu não gostei de “Alemão”. A ideia do filme é muito boa, e nos primeiros 15 minutos achei que fosse ser ótimo, mas depois me decepcionei. Os pontos fracos da história são muitos. Por exemplo: Por que aquele motoqueiro estava andando com as fichas dos policiais, pondo a perder toda a operação? Esse fato estranhíssimo, que precipita toda a trama, não é explicado. Outra coisa, aqueles policiais ficaram infiltrados por meses e ao final não tinham nada para mostrar? Qual o resultado do trabalho deles? A coisa mais importante que tinham era aquele mapa, que tinha sido feito por outra pessoa. Um dos personagens só aparece para fazer pose de bonitão e levar um tiro, não tem razão de ser. Finalmente, a amarração entre o microdrama deles e o macrodrama da ocupação do morro é muito frouxa.