Um fordeco em 1970
02/07/14 02:00Sem pensar no que estava fazendo, uma amiga da família vestiu uma saia verde e uma blusa amarela e saiu para trabalhar. Estávamos em 1970, plena Copa do Mundo.
Sua roupa causou comoção. Pessoas buzinavam enquanto ela andava na Paulista. Gritos, acenos e manifestações eufóricas fizeram com que ela passasse a maior vergonha de sua vida.
Hoje em dia, claro, nada haveria de anormal em usar as cores do Brasil. Anormal, de fato, seria pensar que em alguma época isso era diferente.
É que a memória engana muito. As surpresas seriam imensas se uma máquina do tempo nos levasse para 40 anos atrás.
Eu mesmo custo a acreditar, mas tenho certeza do que vi, numa aula de inglês em 1967 ou 1968. A classe reunia crianças e pré-adolescentes; seria algo como um curso “kids”, mas a palavra não se utilizava na época. Era o “Juvenil 2”, ou coisa parecida.
Em pleno Itaim, na rua das Fiandeiras, o quintal da escola se desfazia, sem muros, num matagal; não muito longe, na neblina da manhã, via-se um riacho limpo e luminoso como uma pintura.
Sonho ainda com isso. Pode ser que tenha imaginado a cena —a memória da infância, como se sabe, veste-se de algumas fantasias.
Mas não foi fantasia a entrada de uma menina, mais velha do que eu, bastante feiosa e meio gorducha, naquela sala matinal do Juvenil 2.
Um murmúrio correu pela classe. De calça jeans, ou melhor, rancheira, e com um casaco azul, que aliás era uma japona, ela não usava nada que chamasse a atenção.
Exceto pelo detalhe escandaloso: estava de tênis! Ou melhor, de Keds! Ou, melhor ainda, como dizia minha mãe: de chancas! Preto, cano alto, o horroroso Bamba progredia pela sala até a carteira da menina, que se sentou sorrindo, mas incomodada, à espera da aula e do futuro.
Três ou quatro anos depois, o futuro ainda não tinha chegado plenamente. Estávamos esperando as mães (raro o pai que aparecesse) na porta do colégio, em 1971 ou 1972, quando novo ato revolucionário se deu.
Quieta, dentro do carro, a mãe de um colega produzia o mesmo espanto da menina do inglês. Também ela usava tênis! Parece que jogava vôlei num clube ali perto. Mesmo assim, era inédito.
Tentando manter a discrição, todos passavam perto do carro estacionado para ver a motorista calçada como um menino. O mundo estava perdido.
Logo as mulheres passariam a jogar futebol, a televisão deixaria de ser um objeto feio demais para ficar na sala, e na casa dos colegas conheci um novo item do mobiliário. Tinha o nome estranhíssimo de “caixa de som”.
Poderia continuar nas reminiscências, mas o importante está em outro lugar. Dizem que nossa memória é seletiva, no sentido que esquecemos os fatos de que não queremos nos lembrar.
Mas a memória não é só seletiva desse modo. Ao contrário do que parece, o presente lança a sua sombra sobre o passado. Mudanças graduais nos costumes vão sendo absorvidas; tornam-se tão dadas, tão óbvias, que quando evocamos o passado colocamos em cena detalhes impossíveis de estar ali.
Um encanador italiano, muito velhinho, veio consertar alguma coisa em casa no exato dia em que a seleção de Pelé e Jairzinho marcava 4 a 1 contra a “Azzurra”. Para piorar as coisas (já disse que ele era bem velhinho), seu carro era um fordeco de 1930, verdadeiro calhambeque.
Não sei por que, minha mãe e eu pegamos uma carona no carro do encanador, que subiu alegre e irresponsavelmente uma rua que dava na Paulista. Ninguém atinava com o que estava acontecendo.
“É uma passeata!”, exclamou minha mãe, ainda presa às memórias de 68 ou 64. Claro que não; eram as comemorações do tri. A população paulistana, efusiva como tinha sido no caso da amiga de verde e amarelo, celebrou a passagem do calhambeque. Alguns montaram no estribo.
O encanador —chamava-se Olímpio— pediu delicadamente que o deixassem passar. “Per favore, eu voleva atravessare questa via, estavo com pressa…” O rosto de um torcedor desfigurou-se.
“O cara é italiano!” Minha mãe, cujo senso de humor era por vezes inadequado, resolveu responder: “no, io sono brasiliana…!” Quase viraram o calhambeque de cabeça para baixo.
Nada aconteceu, por sorte; o Ford seguiu adiante, atravessou a Paulista e desceu por uma ladeira interminável, até mergulhar no riacho prateado e nebuloso do tempo.
E quanto ao: bença mãe, bença pai! é sem duvidas o mundo é outro e nos surpreende a cada dia com o seu, talvez… mal do século. Não é por menos; faltam arvores, faltam pássaros nos céus. O homem está rodeado de robótica. Não chora lagrimas; chora óleo!
Belíssimo texto! De puxar lágrima.