Jorge Furtado comenta
26/08/14 23:13Recebo de Jorge Furtado, diretor de “O Mercado de Notícias”, um email discutindo o que escrevi no post anterior. Transcrevo-o.
Agradeço as boas referências ao “Mercado de Notícias”, que segue em cartaz em São Paulo. Ao contrário do que você afirma, considero você inteiramente insuspeito para falar do filme. Há, de fato, muitos outros deslizes jornalísticos e talvez fosse mesmo divertido um filme só sobre eles, mas o meu objetivo era também despertar algumas dúvidas, propor um debate sobre um assunto que me parece importante e é quase interditado na mídia. (A coluna do Ombudsman da Folha e o site/programa Observatório da Imprensa são louváveis exceções) .
O tema é vasto e o tempo do filme (84 minutos) é curto. Por isso o projeto inclui, desde sempre, um site, com a peça e as entrevistas na íntegra e muitos outros assuntos, até do mensalão se fala. Toda a pesquisa e fontes estão lá:
No filme, evitei intencionalmente o assunto mensalão, apenas sobre ele se faria uma série, ou vários longas. (Na verdade, se farão, sei de pelo menos dois filmes sobre o mensalão a caminho). O mensalão, acho que ninguém ignora, inclui vários crimes (o de caixa dois foi, inclusive, confessado) mas é, antes de tudo, uma palavra. A palavra “mensalão”, criação de Roberto Jeferson tornada pública na Folha em reportagem de uma das minhas entrevistadas, Renata Lo Prete, é um poderoso hashtag, um buraco negro que suga o debate. Minha pauta, que pretendia ser uma conversa sobre os rumos do jornalismo, teria que ser inteiramente outra.
Por exemplo:
Alguém razoavelmente bem informado ainda acredita que os milhões da Visanet, pilar que sustenta a condenação dos réus do mensalão petista, eram dinheiro público?
Que estes milhões foram desviados de sua função e não gastos em publicidade, como atestam as notas fiscais de grandes empresas de comunicação e os eventos publicitários realmente realizados?
Que o único responsável pela liberação do dinheiro foi mesmo o diretor petista do banco e não os outros quatro diretores tucanos que assinaram as liberações mas não foram indiciados?
Que a teoria do domínio do fato faz sentido? E, se faz, explica por que Lula não foi indiciado?
Que pedir aos réus que provem sua inocência – e não ao tribunal que prove sua culpa – faz sentido?
Que um único julgamento, do qual os réus (comuns) não possam recorrer do resultado, faz sentido?
Que um julgamento criminal transmitido ao vivo pela televisão pode ser justo?
Que é moral e juridicamente defensável a posição do ex-ministro Joaquim Barbosa que confessou, no plenário do STF (está gravado) ter manipulado a dosimetria das penas com o objetivo de evitar a prescrição dos crimes?
Que é moral e juridicamente defensável a posição do ex-ministro Joaquim Barbosa que manteve “escondido”, longe do olhar de seus colegas da corte, o inquérito 2474, sob sua guarda, alegando que ele não tinha importância no julgamento do mensalão, apesar de conter, como se soube mais tarde, provas fundamentais para o julgamento de um processo criminal em curso?
Alguém desconhece o feito midiático (e cruel) que incluiu o ministro Luiz Gushiken entre os indiciados apenas para fechar a conta de 40 acusados, facilitando manchetes engraçadinhas? (Gushiken teve que enfrentar, nos últimos anos de sua vida, além do câncer, toneladas de calúnias só para esperar que o relator, ao apresentar a denúncia, reconhecesse que não havia nada contra ele, coisa que poderia ter feito dois anos antes.)
Alguém desconhece o caráter midiático de uma prisão arbitrária feita às pressas no dia 15 de novembro?
Alguém desconhece a arbitrariedade de conceder um habeas corpus ao perigoso psicopata Roger Abdelmassih, como fez o ministro Gilmar Mendes, e negá-lo ao pacífico cardiopata José Genoíno?
Alguém desconhece o desequilíbrio da mídia no tratamento aos mensalões petista e tucano, em Minas, anterior e com os mesmos “operadores”, onde não há dúvida alguma do uso de dinheiro público na tentativa de reeleger o então presidente do PSDB, Eduardo Azeredo?
Alguém ignora os descalabros e incoerências pronunciados por vários ministros da corte, em frente às câmeras, e depois suprimidos, a pedido dos próprios, dos autos do processo?
Alguém ainda defende, seriamente, o comportamento do ministro relator Joaquim Barbosa na condução do processo?
Perceba que, fosse falar do mensalão neste filme, sem tratar do assunto apenas como um mantra anti-petista repetido acriticamente por quem quer agradar seus fãs e patrões ou apenas fazer picuinha, o tema tomaria conta do filme. Falar seriamente sobre o mensalão, este evento político-jurídico-midiático que emburrece o debate no país desde 2005, requer um tempo que o filme não tinha. Espero que os filmes que se farão sobre o tema tratem de aprofundá-lo.
Procuro filmes brasileiros, de qualquer época, sobre este assunto, o jornalismo, e não encontro. (Há muitos bons filmes americanos sobre o tema, só o Billy Wilder fez dois.) O filme que você imagina sobre “os problemas da imprensa” nos tempos de Fernando Henrique realmente não foi feito. Os exemplos que uso no filme são de barrigas (erros), não reportagens críticas que se mostraram verdadeiras. Na entrevista do Fernando Rodrigues (na íntegra no site) ele conta em detalhes a grande matéria da Folha que revelou a compra de votos para a reeleição de FHC, por exemplo. E o Jânio conta o caso da denúncia de maracutaia na licitação da ferrovia Norte-Sul, outro grande feito da Folha. Mas não foram barrigas, os casos se comprovaram plenamente, nunca foram desmentidos. Ao contrários das incontáveis barrigas contra Lula e Dilma, há algumas no filme, outras tantas no site (e muitas outras, semanalmente).
Nos debates que tenho participado sobre o filme peço a quem souber – e reforço o pedido a você – de alguma barriga séria da imprensa contra FHC e seu governo que me avise, gostaria muito de publicar no site do filme. Ou, quem sabe, fazer um curta.
A vontade implícita do filme eu não sei (o filme é de quem vê). Minha vontade implícita e explícita era, e é, a defesa do bom jornalismo. Bom jornalismo na minha opinião, é claro.
Não sou nem me pretendo apartidário (embora nunca tenha sido filiado a qualquer partido) nem independente (dependo do meu trabalho, desde sempre.)