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Marcelo Coelho

Cultura e crítica

Perfil Marcelo Coelho é membro do Conselho Editorial da Folha

Perfil completo

Escolha o seu vício

Por Folha
06/03/13 03:00

Naquele seu esforço frenético para obter a empatia do espectador, o filme “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain” (2001) mostrava um personagem que tinha a mania de ficar estourando casulos de plástico bolha.

A plateia adorava, e de lá para cá a mania do plástico bolha se institucionalizou bastante. Saiu outro dia a notícia de um recorde, registrado no ªGuinnessº: 743 m² de plástico bolha estourados em dois minutos, por um grupo de estudantes universitários de New Jersey.

Há também um programa de computador para você estourar bolinhas com o mouse. Mas não é a mesma coisa.

A atividade conta com a minha simpatia, mas na verdade pertenço a outro grupo de neuróticos obsessivos. Resisto bem ao plástico bolha. Sou, acima de tudo, um descascador de películas.

Vernizes que se soltam de móveis, tintas que se soltam de paredes; capas de livros plastificados; adesivos que não querem desgrudar do carro; cutículas, casquinhas, peles secas de verão: essa é a minha praia.

São dois tipos psicológicos bem diferentes. O estourador de plástico bolha gosta de resolver tudo de uma vez só. Age mecanicamente. É eficaz no seu ofício.

O arrancador de pelinhas está em geral condenado ao fracasso. Puxa demais o plástico que protegia a capa do livro, e termina levando o papel junto. Encontra uma cutícula sequinha no polegar, e puxa-a até chegar à carne viva.

Ao mesmo tempo, é mais observador e científico. O homem do plástico bolha pode fazer isso enquanto assiste à TV ou fala no telefone. O descascador gosta de analisar a superfície da coisa, procura a direção certa da puxada, alterna períodos de atividade e de descanso.

Comparado à produtividade do estourador de plástico, o espírito do descascador é mais felino e ocioso.

Num caso, tem-se o Japão -abrupto e limpo. No outro, a China: paciente, silenciosa, interminável.

Vê-se de que modo são genéricos e insuficientes os diagnósticos da psiquiatria. Ambos podem ser classificados, se a mania for séria, no campo do Transtorno Obsessivo-Compulsivo, o popular TOC.

Até pelo som da palavra pode-se perceber que o TOC se aplica melhor ao clube do plástico bolha. Os descascadores, como eu, deveriam reivindicar outro acrônimo. Quem sabe Slic (síndrome laminar impulsivo-compulsiva), ou Irde (impulso recorrente de dissociação epitelial).

Trata-se de enfermidade mais perigosa: tenho um polegar corroído, vários livros em petição de miséria e marcas permanentes na pele onde, em algum verão, pernilongos pousaram.

Mas a compulsividade, feitas as contas, não é o pior dos males. O motor que aciona a tribo do plástico bolha também é o motor que move o mundo. Ninguém seria campeão de pingue-pongue se não fosse um estourador de plástico direcionado para um objetivo nobre.

É imenso, na verdade, o número das atividades humanas que obedecem à lei do plástico bolha. No tempo em que se escreviam cartões de Natal, tive uma vez de sobrescritar (a palavra é da época) dezenas de envelopes.

Coisa chatíssima, até o momento em que você começa. ªSó mais um, só mais um, depois eu paroº, eu dizia para mim mesmo.

Sem dúvida, é o que torna suportável a maioria dos trabalhos repetitivos que a indústria humana já inventou. Quem está livre dessa obrigação provavelmente não sossega antes de encontrar um substituto. Abdominais numa academia, brigadeiros num bufê, cruzinhas num calendário, dígitos num dial etc… (você continua na ordem alfabética).

Estou tentando me livrar do descascamento de pelinhas. Consegui, pela primeira vez na vida, dedicar-me para valer (isto é, umas duas horas por dia) aos exercícios de piano.

Para quem não nasceu com o dom da coisa, estudar piano é tão ou mais estéril do que arrancar películas ou estourar bolhas. Os exercícios de Carl Czerny (1791-1857) reúnem as páginas mais tolas e chatas de toda a história da música clássica.

Chatas? Isso foi antes de eu me dedicar aos estudos de Hanon (1819-1900). Que não são nada perto dos de Ettore Pozzoli (1873-1957), esses sim, insuperáveis na monotonia. Vê-se que, quanto mais avançamos no tempo, mais chatos ficamos.

O que é uma vantagem. Diante do piano eletrônico (com fones de ouvido, para chatear apenas a mim mesmo), repito dezenas, centenas de vezes a mesma passagem do polegar. Ele, coitado, agradece o descanso no descascamento.

Sinto-me eficiente, produtivo, saudável. Logo serei admitido no clube dos estouradores de bolhas.

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No mundo de Jack Bauer

Por Folha
27/02/13 03:00

Contardo Calligaris apresentou aqui, na quinta-feira passada, alguns argumentos interessantes a favor da tortura. Acho que sua intenção foi mais colocar o assunto em debate e menos defender sua adoção no Brasil.

Mesmo porque ela já existe, com resultados discutíveis do ponto de vista da segurança pública.

“O saco plástico do capitão Nascimento funciona”, escreve Contardo. Os interrogatórios de Jack Bauer, na série “24 Horas”, também funcionam, repete o psicanalista.

Pode ser. Não me considero um “bonzinho”, desses que querem um mundo perfeito, utópico, ideal. Querer eu quero, mas sei que a realidade não corresponde a todos os sonhos que temos.

O problema, eu acho, é quando se quer ser “realista” demais. Um mundo sem tortura? Com Bin Laden e terroristas variados à solta? Loucura, dizem os pragmáticos.

O estranho é que uma perspectiva realista e pragmática, como a explorada pelo meu colega da “Ilustrada”, muitas vezes me parece puramente imaginária e ficcional.

O capitão Nascimento e o agente Jack Bauer são, antes de tudo, personagens de filmes. Por razões não apenas ideológicas, mas também de dramaturgia, suas torturas e sacos plásticos funcionam muito bem.

Contardo Calligaris já manifestou discordância quanto à tese de que a TV influencia as pessoas. Mas se eu começar a assistir a muitos filmes em que o herói é um torturador eficiente e simpático, também vou acreditar que a tortura funciona.

Se os americanos fizessem mais filmes em que a tortura não funciona (mas aí penso num mundo ideal, não o da Fox Filmes), provavelmente pensaríamos de outra maneira.

Só para ser um pouquinho realista, penso no seguinte. Um policial realmente acostumado a torturar suspeitos não passa pela experiência incólume. É de imaginar que a prática da tortura o torne insensível a uma série de outros limites morais, do tipo “não roubarás”, “não matarás”, “não sequestrarás criancinhas”.

Torturarás, ademais, pessoas sobre as quais pesam suspeitas não tão fortes assim. Não sei se os cidadãos terminariam mais seguros com 300 Jack Bauers agindo por perto.

É que a tortura tem outra função, além das apontadas por Contardo Calligaris em seu artigo. Ele fala em dar prazer ao torturador, em obter confissões, em conseguir informações. Uma quarta função me parece importantíssima.

Trata-se de estabelecer um regime de terror de Estado. Não é apenas o terrorista quem está exposto à tortura. O vago simpatizante da causa, o oposicionista pacífico, o irmão, o parente, o filho, o vizinho, estão sob ameaça também. Numa ditadura, prender e censurar nunca é suficiente: a tortura é a verdadeira punição.

Para finalizar, Contardo levanta o célebre argumento da “bomba-relógio”. Copio a sua versão.

“Uma criança foi sequestrada e está encarcerada em um lugar onde ela tem ar para respirar por um tempo limitado. Você prendeu o sequestrador, o qual não diz onde está a criança sequestrada. […] A tortura poderia levá-lo a falar. Você faz o quê?”

Não sei. Este é mais um caso em que a ficção fala mais alto do que a realidade.

Sou contra a tortura, como sou contra o matricídio e o canibalismo. Agora, suposições extremas não faltam. Suponha que sua mãe enlouqueceu, entrou numa creche com uma escopeta e está matando bebês aos punhados. Você é policial e ela está na mira do seu revólver. Você faz o quê?

Suponha que você está viajando com seus colegas de escritório, o avião cai nos Andes e você só sobrevive se matar um deles e comê-lo. Ele fará provavelmente o mesmo com você, se você deixar. Você faz o quê?

Ora essa. Eu mudo o canal da televisão.

De resto, o argumento da “bomba-relógio” tem outros problemas. O tempo também corre a favor do torturado. Ele tem apenas uma hora de tormentos para se manter em silêncio; pode mentir, ademais.

Outra pergunta. Que tal pagar o resgate? Também funciona, em geral.

Não é impossível pegar o sequestrador depois. Já o torturador vai continuar a estrela do filme.

Ali Soufan, agente do FBI especializado em interrogar membros da Al Qaeda, escreveu um artigo no “New York Times” contestando toda a versão de Hollywood quanto à descoberta de Bin Laden.

Diz que autoridades do governo Bush mentiram abertamente sobre o sucesso de técnicas de tortura, apenas para justificar sua adoção. Será que Ali Soufan está mentindo? Quem sabe seja o caso de torturá-lo também.

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Maradiaga, o progressista

Por Marcelo Coelho
21/02/13 16:06

O cardeal “progressista”

Para quem gosta de torcer pelos cardeais mais simpáticos, a situação vai ficando difícil. Quem não gostaria de ver um cardeal negro como o novo papa?
Só que Peter Türkson, de Gana, o mais cotado dos africanos, atrapalhou-se bastante ao vincular os casos de pedofilia (mais exatamente, abuso de menores) no clero católico às práticas homossexuais –o que é bobagem, porque há muita pedofilia heterossexual também.
Não é esse o aspecto pior de suas declarações. Turkson foi além, dizendo que a África está protegida de escândalos desse tipo porque muitas culturas tradicionais não toleram a homossexualidade. É a posição do clero ultraconservador, que desejaria uma espécie de teste prévio para só admitir heterossexuais em seminários.
Que tal, então, um cardeal “progressista” e latino-americano? Há pouquíssimos, como escrevi em outro artigo, mas Leonardo Boff, por exemplo, já expressou simpatia pelo arcebispo de Tegucigalpa, o cardeal Maradiaga.
“Fala muitas línguas, é piloto de avião”, disse Boff à TV Brasil, e “é amigo dos teólogos da libertação”. Haveria de contribuir para uma atmosfera de “bem-querença, que foi destruída dentro da Igreja”. Tem carisma e abertura para um diálogo com o mundo moderno, completou o ex-frade franciscano.
Maradiaga tem aspectos menos simpáticos, entretanto. Quando estourou a crise do abuso de menores nos Estados Unidos, em 2002, nosso progressista não se comportou muito bem.
A imprensa americana, como se sabe, fez grande estardalhaço em torno das revelações. Maradiaga deu sua interpretação sobre a origem do escândalo.
Obviamente, ele admitiu, “quem sofre da doença da pedofilia não deveria estar no clero”. Mas, indagou, “por que será que neste momento de terrível conflito no Oriente Médio é que esses escândalos vieram à tona?”
Maradiaga tinha uma explicação. “Todos sabemos que Ted Turner é abertamente anti-católico, e ele é dono não apenas da CNN mas também da Time-Warner. Isso para não dizer nada de jornais como o ‘New York Times’, o ‘Washington Post” e o ‘Boston Globe’, protagonistas do que não hesito qualificar como uma perseguição contra a Igreja.”
Qual a origem dessa perseguição? Maradiaga continuou.
“Num momento em que as atenções mundiais estão voltadas para as injustiças cometidas contra o povo palestino, a TV e os jornais americanos ficaram obcecados com escândalos sexuais que aconteceram quarenta, trinta anos atrás. Por quê?”
Imagine-se o risinho inteligente do “papabile” progressista. “Qual a igreja que mais recebeu Arafat e com mais frequência conclamou pela criação de um Estado palestino? Qual a igreja que nunca aceitou a ideia de Jerusalém como capital indivisível de Israel? Qual a igreja que não aceita projetos para a família em desacordo com os planos de Deus?”
É a Igreja Católica, disse Maradiaga. É por isso, concluiu, que a mídia americana (só faltou ele dizer “a imprensa judaica internacional”) engajou-se numa perseguição feroz, que “me faz lembrar dos tempos de Nero e Diocleciano”.
Como novos escândalos atingiram, depois, organizações católicas de direita no México, pode ser que Maradiaga já não esteja tão indignado. Mas, para um cardeal “progressista” se tornar papa, certamente um pouco mais de habilidade, ou menos burrice, viria a calhar.

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"Ohs!" e "Blams!"

Por Folha
20/02/13 03:00

Duas balconistas, dessas de paletozinho e saia combinando, desentendem-se no meio da rua. Passam depressa do xingamento ao safanão, uma arranca a blusa da outra, e em poucos minutos já estão sem calcinha em pleno centro da cidade.

Quem passa por ali, de carro ou de ônibus, estranha um bocado —mas recebe instruções para seguir em frente. Na calçada, o público não se dispersa. Trata-se da mais nova peça do Teatro da Vertigem, “Bom Retiro 958 metros”, que percorre as ruas desse tradicional bairro paulistano. Durante décadas, boa parte de seus moradores pertencia à comunidade judaica; em meio a dezenas de lojas de confecção, hoje os coreanos estão em maioria.

O Teatro da Vertigem é conhecido pelos lugares insólitos que escolhe para encenar seus espetáculos. O primeiro a que assisti, “O Paraíso Perdido”, era numa bela igreja no centro da cidade, a de Santa Ifigênia. Em seguida veio o elogiado “Livro de Jó”, num hospital abandonado.

Seguiram-se peças em subterrâneos, presídios, rodoviárias, mas aí meu interesse pelo grupo já tinha diminuído um bocado, por motivos que explico mais adiante.
“Bom Retiro 958” tem as qualidades que caracterizam o grupo: muita originalidade na ocupação do espaço, cenas de grande impacto visual e a capacidade de impressionar, até mesmo de assustar, o público.

Sessenta pessoas, se não chover, são levadas a caminhar pelas ruas desertas do Bom Retiro, entre lojas fechadas, predinhos baixos e algumas vitrines ainda iluminadas.

O primeiro destino é o Shopping Lombroso (este é mesmo o nome), galeria bem cuidada de lojas de moda não necessariamente cafonas. Só que, apesar de sua “modernidade”, o shopping fica em parte afundado ao lado de um paredão muito alto, que sustenta trilhos de trem.

Antes de perceber isso, já fomos apresentados a diversos fantasmas que, segundo o texto de Joca Reiners Terron, vagam pelas lojas. Manequins dentro das vitrines podem subitamente se mover; uma noiva enlouquecida aparece no meio do nada; um viciado em crack, uma espécie de locutora de rádio sobrenatural, uma costureira boliviana escravizada irão nos acompanhar durante o longo trajeto.

Caçambas de lixo, fachadas de prédio, cruzamentos de rua, postes de luz, tudo será posto a serviço da mensagem que a peça procura transmitir. O problema é que toda a imaginação cênica do grupo não se liberta de uma ingenuidade, de uma singeleza de ideias que, desde aquele primeiro espetáculo na igreja de Santa Ifigênia, comprometia a estética de seus espetáculos.

Em “O Paraíso Perdido”, os atores faziam acrobacias dentro da nave, mas sempre se estatelavam diante da mesma situação. Deus não responde a nossos chamados. Uma grande porta se fecha. Blam. “Deus! Estais aí?!”

Há momentos em que sinto falta do ponto de exclamação de cabeça para baixo que se usa em espanhol. Esses apelos por “Deus!” bem que precisavam vir com duas exclamações para traduzir seu patetismo.

O sofrimento incomoda quando cai no patético, e essa é sem dúvida a tendência do Teatro da Vertigem. O texto não tem como sustentar o que há de impactante —os “ohs!” e “blams!” da encenação.

Joca Reiners Terron teve intuições poéticas que seriam melhor aproveitadas numa crônica. Fala, por exemplo, da costureira que, fazendo vestidos sem parar, está na verdade tecendo um grande véu para cobrir a realidade do mundo.

A imagem é muito bonita mas não recobre o “conteúdo”, também interminavelmente repetido, de toda a peça. A saber, o de que a classe média está viciada em consumo, assim como os noias da região estão viciados em crack.

Os atores encarnam “tipos”, assim, e não personagens com alguma ambiguidade. Estão batendo a cabeça na mesma porta que se fechava diante dos que, em “O Paraíso Perdido”, clamavam por uma resposta de Deus.

Deus não responde, os bens de consumo não dão sentido para a vida, o crack não é bom interlocutor para o viciado. Sem diálogo real, sem conflito produtivo —vale dizer, sem dialética—, o espetáculo não tem como progredir, exceto pela sucessão de cenas surpreendentes.

As duas balconistas brigam no meio da rua; não sabemos o que tinham a dizer; quando se cansam, passamos a outro episódio. Sem que conflitos tenham sido armados e solucionados, a peça não tem como acabar —a não ser quando os espectadores, depois do trajeto, voltam mais ou menos ao ponto de partida.

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Papado à la carte

Por Marcelo Coelho
19/02/13 15:49

Artigo publicado na “Folha” de hoje.

A Igreja Católica não muda nada. Tudo precisa mudar na Igreja Católica. As duas frases provavelmente resumem o pensamento geral sobre o que se espera do novo papa.
Começo a perceber que nenhuma das duas é tão verdadeira assim. Uma primeira surpresa veio ao ler o livro do jornalista John Allen Jr, “All the Pope’s Men” (ed. Doubleday), um relato para lá de respeitoso a respeito de como funciona a Santa Sé.
Para dar uma ideia de como as coisas mudam no Vaticano, Allen Jr cita um exemplo notável: a pena de morte.
Embora o discurso “pró-vida” pareça estabelecido desde sempre no mundo católico, os papas não simplesmente apoiavam a pena de morte como a aplicavam até uma data relativamente recente.
O ano de 1868 marca a última vez em que a guilhotina (sim, era uma guilhotina, introduzida em Roma por Napoleão) foi utilizada no Vaticano. Pode-se dizer, claro, que os papas demoraram quase dois milênios para se convencerem do desacerto da pena de morte.
Uma vez aceita a mudança, entretanto, tudo se passa como se a Igreja Católica sempre tivesse pensado assim.
Não digo com isso que o aborto venha a ser aceito com facilidade nos próximos anos. Mas divergências já foram registradas entre os cardeais ultimamente.
Um dos papáveis, Marc Ouellet, chocou a comunidade canadense quando disse, a respeito de uma gravidez causada por estupro, que a mãe não deveria cometer um segundo crime simplesmente por ter sido vítima do primeiro.
Já o cardeal O’Connor, antigo primaz da Inglaterra (que por estar com 81 anos não participa do conclave), defende posição oposta em caso de estupro. Para um não-católico, trata-se de atitude mais razoável.
Tudo precisa mudar na Igreja Católica –sou dos primeiros a concordar com isso. Mas é curioso como no fundo torcemos para que mude no rumo de nossas próprias convicções.
Fosse por uma questão de popularidade, os bispos brasileiros poderiam muito bem abandonar sua crítica à pena de morte e, em especial, sua defesa dos direitos humanos.
Achamos que a Igreja perde muitos fiéis ao condenar o uso da camisinha. Pode ser verdade. Mas não sabemos quantos fiéis a Igreja descontenta ao falar em direitos humanos –garantia absoluta de perda de votos para qualquer candidato a cargo eletivo na periferia das cidades brasileiras.
O celibato dos padres e a ordenação de mulheres também são temas sempre invocados quando se pensa numa agenda de renovação para o próximo pontífice.
Talvez não sejam coisas tão difíceis de adotar, afinal; sem dúvida, estamos de assuntos menos vitais (literalmente) que o aborto.
Argumenta-se com frequência, entretanto, que o celibato e outras chateações são responsáveis pela constante diminuição no número de padres católicos.
Ocorre que, mundialmente, o número de padres (e seminaristas) cresce desde 2000. Segundo o último Anuário Pontifício, publicado em março do ano passado, a Igreja conta com 1643 padres a mais, no intervalo entre 2009 e 2010.
De 2005 a 2010, o número de seminaristas aumentou 4%.
Verdade que a Ásia e a África são as principais responsáveis por esse crescimento. O decréscimo de padres é visível na Europa e nas Américas; de um ponto de vista global, contudo, faz sentido imaginar que esse não seja o maior problema nas cogitações do Vaticano.

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Há progressistas no Vaticano?

Por Marcelo Coelho
17/02/13 14:28

Mais um artigo sobre o papa, neste domingo.

Vejo a lista dos possíveis sucessores de Bento 16, com os rótulos de sempre: “conservador”, “de centro”, “progressista”. Quase nenhum “progressista”, aliás: dos nomes que vêm aparecendo na Folha, apenas o cardeal Maradiaga, de Honduras (ao lado do “liberal” Schönborn, arcebispo de Viena), quebra a hegemonia de centro-direita.
Existem ainda “progressistas” na cúpula da igreja? O conclave para escolher o próximo papa conhecerá um embate entre “conservadores” e “progressistas”?
A resposta parece ser predominantemente negativa. Depois de 30 anos de domínio de Ratzinger e de João Paulo 2º, nada indica que tenha chegado a hora de uma revanche da Teologia da Libertação, por exemplo.
Seria de esperar que, no Brasil pelo menos, a Teologia da Libertação ainda tivesse influência entre os bispos. Mas os tempos são outros, embora nem sempre as mudanças teológicas sejam perceptíveis para quem não é religioso.
Tome-se um documento importante da CNBB (Conferência dos Bispos do Brasil), lançado não faz muito tempo. São as “Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil”, para o período de 2011 a 2015.
Aparentemente, estamos diante de pura fraseologia católica: o objetivo geral da CNBB é “evangelizar, a partir de Cristo e na força do Espírito Santo, como igreja discípula, missionária e profética, alimentada pela palavra de Deus e pela Eucaristia, à luz da evangélica opção preferencial pelos pobres, para que todos tenham vida, rumo ao Reino definitivo”.
Nada de novo, pode-se imaginar -e a manchete preferida por um jornalista seria provavelmente a de que a CNBB “mantém a opção preferencial pelos pobres”, sem subordinar-se ao direitismo de Ratzinger.
Toda a diferença, entretanto, está em outro ponto. Por incrível que pareça, a marca de Bento 16 está na frase “a partir de Cristo”. A “opção preferencial pelos pobres” não é problema do ponto de vista teológico.
O problema é que, antigamente, o “progressismo” falava que a ação evangelizadora surge “a partir da realidade”, e não “a partir de Cristo”. Tanto que uma das palavras de ordem da Ação Católica era “ver, julgar, agir”.
Ou seja, se formos capazes de “ver” a realidade, saberemos o que há a fazer para torná-la mais cristã. A ênfase mudou com Bento 16 -a realidade não se oferece sozinha como “errada” ou “certa”. É à luz dos ensinamentos de Cristo que podemos julgar e agir.
A sutileza, eminentemente teórica, ainda alimenta discussões. Mas o fato de que tenha entrado no documento da CNBB, com a “opção preferencial pelos pobres” posta no fim da frase, demonstra o predomínio de Ratzinger sobre o que se julgaria “progressismo” na Igreja brasileira.
Progressismo, aliás, em relação a quê? Há 30 anos ou mais, a questão era saber qual a atitude da igreja diante de revoluções de esquerda. Hoje, chamamos de “progressista” o católico que achar exageradas as opiniões de Bento 16 sobre a camisinha.
Tudo indica que as cisões do próximo conclave não são as mesmas que opõem a Igreja Católica ao conjunto da opinião leiga.
Camisinha, casamento gay, celibato dos padres e aborto podem afastar muita gente do catolicismo. Mas será que resolver esses problemas está na agenda de algum cardeal?
Se há cisões entre os eleitores do novo papa, certamente passam por outros assuntos e outros critérios (o geográfico, a importância ou não de um nome “popular”, o peso da Cúria) que não esses.

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O papa, como Vargas

Por Marcelo Coelho
15/02/13 12:07

Artigo publicado hoje na “Folha”:

Sobre a renúncia de Bento 16, a frase mais estranha, e mais dura, veio de um cardeal. “Da Cruz não se desce”, disse Stanislaw Dziwisz, antigo secretário pessoal de João Paulo 2º.
O polonês Dziwisz estava comparando a saída de Bento 16 com o sofrimento de seu antecessor. Destruído pelo mal de Parkinson, João Paulo 2º aguentou até o fim; ficou na Cruz. Bento 16, supostamente por fragilidade e cansaço, não foi capaz de tanto sacrifício.
Fazer a comparação entre os dois papas parece, da parte de Dziwisz, quase desumano; no mínimo, é falta de compaixão pelo sofrimento alheio.
Por que tanta dureza? Dziwisz deve ter se lembrado de uma entrevista que Bento 16 deu à TV italiana, quando ainda era o cardeal Ratzinger, e quando João Paulo 2º já sofria bastante com sua doença.
O papa não deve renunciar, dizia Ratzinger. O Senhor é quem dá a alguém responsabilidade de ser papa, explicou, e “só o Senhor pode retirá-la.” O sofrimento de João Paulo testemunhava sua proximidade com Cristo.
O repórter pôs, digamos assim, lenha na fogueira. Lembrou uma frase de João Paulo: “Deus me iluminou, e só Deus me pode tirar daqui”. Por que o papa teria dito isso?
“Porque assim é”, respondeu Ratzinger. Não foram os cardeais que fizeram dele um papa, mas sim uma intervenção divina.
Incoerência de Bento 16, renunciando agora? Nem tanto: sempre se pode dizer que ele estava apenas justificando a coragem de João Paulo 2º, que afinal é considerado um santo, e que nem todo papa, mesmo bom, tem a obrigação de ser um mártir.
Mas é aí que o raciocínio de Bento 16 dá mais uma volta. Vale lembrar que três dias antes da renúncia, no dia 8 de fevereiro, o papa fez um discurso para jovens seminaristas, comentando algumas palavras de São Pedro.
São Pedro, o fundador da Igreja, foi também um “homem que caiu”, que negou Jesus. Bento falava de si mesmo? Ou do Vaticano?
São Pedro decidiu sair de onde estava para ir a Roma, onde o esperava “o martírio”, a Cruz. “Roma é o lugar do martírio”, acrescentou o papa. Cita ainda São Pedro: Roma? É “a Babilônia”. Lugar de paganismo e de pecado.
Eis que tudo se transforma, então. O sofrimento de Bento 16 não está em seus problemas físicos. O que lhe falta é a energia para enfrentar as tarefas de renovação da Igreja. Não se trata apenas de “sofrer e orar”, como fez João Paulo 2º, mas também de possuir “vigor de corpo e espírito” para “conduzir a barca de São Pedro”. É o que ele disse no discurso de renúncia.
Interpretando: dados os escândalos financeiros e morais de Roma, dessa “Babilônia”, é necessário que seja eleito um papa mais vigoroso do que eu. Fica a imagem de um papa vencido por inimigos poderosos.
Conclusão: Bento 16 acaba saindo como mártir também. Não o mártir passivo, que apenas sofre e reza. Mas um pouco o mártir no estilo de Getúlio Vargas, que se “suicida” simbolicamente e, com isso, joga sobre os adversários, sobre as “forças ocultas”, a responsabilidade pelo que aconteceu.
Se essa versão procede, parecem pequenas as chances de que a burocracia interna do Vaticano, com os cardeais italianos representados pelo secretário Tarcisio Bertone (78 anos), detenha controle da sucessão.

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Ousadias de um papa

Por Folha
13/02/13 03:00

A renúncia do papa é um convite para toda sorte de teorias conspiratórias; no mínimo, pode-se prever que, de forma talvez nunca registrada na história, Bento 16 terá condições para dirigir, ainda vivo, a própria sucessão.

A decisão foi também repentina demais para se acreditar plenamente na tese de cansaço; teria surgido alguma pressão súbita capaz de tirar Bento 16 do trono de São Pedro? Algum escândalo, quem sabe?

Há argumentos contra esse tipo de especulação. Imagine a hipótese inversa. Se tudo se deve mesmo à fragilidade, à saúde e à velhice, o papa tomou a melhor atitude ao fazer o anúncio de chofre. Não há como preparar a opinião pública para uma coisa dessas sem dar margens a rumores ainda piores.

Vindo de um papa tão cioso das tradições, o fato não deixa de ser irônico. Bento 16 “inova”, por assim dizer, evitando o triste espetáculo que se viu no caso de seu antecessor. Com os progressos da medicina, cargos vitalícios acabam —como a vida— conhecendo um prolongamento cruel e antinatural.

Bento 16 ficará com a imagem de “conservador”, o que é verdade.
Mas prefiro pensar nele de outro modo. Para quem não tem crença religiosa, as palavras de Bento 16 eram muito mais interessantes do que seria de esperar.

Como intelectual, este papa sempre soube melhor se dirigir ao cérebro do que ao coração das pessoas. Várias vezes topei com frases de Bento 16 que eu mesmo, ateu de carteirinha, poderia subscrever.
A primeira surpresa foi quando ele visitou o local de um antigo campo de concentração nazista. Em seu discurso, deixou no ar a pergunta memorável.

Ficamos pensando, disse o papa, onde estava Deus quando tudo isso aconteceu. Era uma pergunta que nada tinha a ver com as habituais consolações, tão vazias, que a rotina religiosa costuma invocar nesse tipo de situação.

No ano passado, Bento 16 tocou no mesmo tema. Foi num concerto em Milão, no qual iam tocar a Nona Sinfonia de Beethoven. Como se sabe, no último movimento são cantados trechos da “Ode à Alegria” de Schiller. Não há catolicismo nesses versos, mas tudo transmite confiança religiosa.

“Ébrios de fogo entramos em tua morada celeste!”, exulta o coro. “Sobre a abóbada estrelada deve morar o Pai amado!”

O papa confessou suas dúvidas a respeito. Essas palavras “ressoam vazias para nós, aliás, não parecem ser verdadeiras”. “Não experimentamos de modo algum as centelhas divinas do Elísio. Não estamos inebriados de fogo, mas, ao contrário, paralisados pela dor diante de tanta e incompreensível destruição, que ceifou vidas humanas, que privou muitos da própria casa e lar.”

Ele se referia a um terremoto ocorrido na Itália em maio daquele ano. E continuou.

“Até a hipótese de que por cima do céu estrelado deve habitar um Pai bom nos parece discutível. O Pai bom está sozinho acima do céu estrelado? A sua bondade não chega até nós aqui embaixo? Procuramos um Deus que não domina à distância, mas que entre na nossa vida e no nosso sofrimento.”

Frases como essas me pareceram extremamente justas, e —vindo de quem vieram— ousadas a mais não poder. “Não temos necessidade de um discurso irreal de um Deus distante e de uma fraternidade não exigente”, continuou o papa.

“Buscamos uma fraternidade que, no meio dos sofrimentos, ampara o outro e assim o ajude a ir em frente. Depois deste concerto muitos participarão na adoração eucarística —ao Deus que se inseriu nos nossos sofrimentos e continua a fazê-lo. Ao Deus que sofre conosco e por nós, e assim tornou os homens e as mulheres capazes de compartilhar o sofrimento do próximo e de o transformar em amor.”

Ouvi com frequência um comentário meio leviano sobre o conservadorismo de Bento 16 em temas como família, homossexualidade, contracepção. “O que vocês querem? Afinal, ele é o papa!”

Nunca concordei com essa desculpa. Mesmo sendo “o papa, afinal”, Bento 16 não saiu por aí fazendo campanha em favor da tese de que o mundo foi criado em seis dias.

Foi escolha sua insistir em temas relativos à vida sexual, quando há dezenas de campanhas (comércio de armas, aquecimento global) que poderiam garantir à Igreja mais apoio junto às pessoas de bom senso. Mas não faltou a Bento 16 o ânimo de dizer mais do que se esperava dele.

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Para um poeta daqui a mil anos

Por Marcelo Coelho
06/02/13 14:26

Achei no youtube uma bizarra animação com a foto do poeta James Elroy Flecker, recitando o poema To a poet, a thousand years hence,  a que me referi no artigo de hoje.
A voz dele, pelo menos, é muito bonita.

Aqui vão os versos.

I WHO am dead a thousand years,

And wrote this sweet archaic song,

Send you my words for messengers

The way I shall not pass along.

 

I care not if you bridge the seas,

Or ride secure the cruel sky,

Or build consummate palaces

Of metal or of masonry.

 

But have you wine and music still,

And statues and a bright-eyed love,

And foolish thoughts of good and ill,

And prayers to them who sit above?

 

How shall we conquer? Like a wind

That falls at eve our fancies blow,

And old Mæonides the blind

Said it three thousand years ago.

 

O friend unseen, unborn, unknown,

Student of our sweet English tongue,

Read out my words at night, alone:

I was a poet, I was young.

 

Since I can never see your face,

And never shake you by the hand,

I send my soul through time and space

To greet you. You will understand.

 

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Um dedo mindinho

Por Folha
06/02/13 03:00

Durante 12 mil anos, qualquer habitante do sul da França podia entrar sem problemas naquela caverna –a não ser pelos ursos que andavam por ali. Depois, houve um desabamento, e a entrada do lugar ficou fechada por mais 20 mil anos.

A caverna de Chauvet só foi reencontrada em 1994, e tornou-se tema do documentário de Werner Herzog atualmente em cartaz no CineSesc.

No começo, pensei que tudo se tratava de um trote, de uma falsificação. Redescobertas pelos pesquisadores, as pinturas daquela caverna, feitas há 32 mil anos, pareciam perfeitas demais para ser verdade.

Há cavalos, leões e rinocerontes, que dificilmente algum humano moderno, sem treinamento específico, poderia desenhar.

Rinocerontes no sul da França? Sim, peludos, além de leões sem juba. Naquela época, o frio era bem maior. Tanto que muitas geleiras ainda não tinham derretido, e com isso o nível o mar estava muitos metros abaixo do que é hoje. Era possível ir a pé da França à Inglaterra, atravessando o que é hoje o canal da Mancha.

Trinta e dois mil anos: desse oceano de tempo, os estudiosos viram emergir as pegadas de um menino de oito anos, ao lado da marca das patas de um lobo. Seriam talvez amigos, especula Werner Herzog. Ou terá havido um intervalo de séculos entre um e outro?

Também se encontram, em meio à quantidade de pinturas, de ossos, de estalactites e de cinzas, as marcas de um único artista. É talvez o momento mais emocionante de todo o documentário.

Os arqueólogos identificaram, numa parede da caverna, coberta das impressões das palmas das mãos de muitos trogloditas, a presença de uma pessoa que tinha o dedo mínimo ligeiramente torto.

A marca dessa mão volta a aparecer mais adiante, em outro salão da caverna, junto às pinturas mais espetaculares de todo o conjunto.

“Este sou eu”, parece dizer a marca na parede, “e isto foi o que eu fiz”.

O inglês James Elroy Flecker (1884-1915) ficou famoso pelos versos que escreveu “A um Poeta, daqui a Mil Anos”. Ele se dirige a algum “estudioso da doce língua inglesa”, e imagina esse futuro amigo, “que não vejo, que não conheço, e que ainda não nasceu”, lendo sozinho, à noite, as palavras de seu poema.

“Eu era um poeta, eu era jovem”, diz Flecker. E, “já que não posso ver teu rosto, nem apertar a tua mão, envio-te minha alma, através do espaço e do tempo. Você vai entender”.

Em inglês fica melhor. “O friend unseen, unborn, unknown,/ Student of our sweet English tongue,/ Read out my words at night, alone:/ I was a poet, I was young./ Since I can never see your face,/ And never shake you by the hand,/ I send my soul through time and space/ To greet you. You will understand.”

Nossa época desconfia muito desses entendimentos através dos milênios. Os pintores da caverna de Chauvet deveriam ter uma visão de mundo completamente diversa da nossa, e o sentido daqueles cavalos e bisontes na parede está tão perdido quanto o pensamento dos próprios cavalos e bisontes retratados lá.

Tanto relativismo termina sendo impossível de sustentar. No mínimo, sabemos que quem retratou o bisonte queria, de fato, retratar um bisonte, e isso é visível para nós.

Seria apenas um ato religioso, um ritual mágico? Não haveria nenhuma intenção de beleza, de decoração, de arte naquilo?

Ah, o conceito de arte, de “obra”, de “autoria”, muda com o tempo. É verdade. Mas vale invocar o argumento do escritor católico G. K. Chesterton, em “O Homem Eterno” (editora Mundo Cristão). Por que imaginar, diz ele, que o homem das cavernas tinha apenas uma mente pragmática e utilitária, fazendo desenhos apenas para ter boa sorte nas caçadas?

Esse espírito interesseiro conviria mais a um burguês britânico do século 19 do que a um “primitivo”… O homem das cavernas não seria capaz de sorrir, de brincar, de fazer desenhos por prazer?

De tanto respeito à alteridade, de tanto relativismo, terminamos usando a palavra “outro” com O maiúsculo: o “Outro”. É tão Outro que não nos julgamos capazes de entendê-lo.

O raciocínio termina por ser equivalente ao de quem, por desprezo, chama de “primitivos”, de “trogloditas”, os artistas da caverna. Mas eles nos estenderam as mãos.

Em volta daquele lugar, ainda vagavam hordas de Neandertais. O pintor daqueles cavalos e leões marcava, para o futuro, o território dos homens.

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