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Marcelo Coelho

Cultura e crítica

Perfil Marcelo Coelho é membro do Conselho Editorial da Folha

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Pureza armada

Por Folha
30/01/13 03:00

A notícia, que saiu no UOL há algum tempo, tinha me deixado curioso. Alguém em Brasília encaminhou pedido ao Ministério Público para que “O Livro Maldito” (editora BestSeller) tivesse sua venda proibida no país.

Os motivos para essa interdição estariam até mesmo na contracapa do volume. O autor, Christopher Lee Barish, promete ensinar uma série de coisas proibidas.

“Assalte um banco.” “Arrombe fechaduras.” “Forje a própria morte.” “Minta para um polígrafo.”

E outras coisas, “muito, mas muito piores”, promete a contracapa. Fui ver.

A maior parte das transgressões de “O Livro Maldito” tende para o café pequeno. “Como não limpar o cocô de seu cachorro”, “como burlar máquinas de refrigerante” ou “como escapar de ser jurado num tribunal” não constituem objetivos tão diabólicos assim.

Uma seção especial, destinada “a criminosos”, promete ensinar os incautos a falsificar dinheiro, a entrar para a máfia e a contrabandear drogas.

Mas basta ler um pouquinho para perceber que o propósito de “O Livro Maldito” é humorístico e que nenhuma das suas informações seria capaz de garantir por mais de meia hora a sobrevivência do leitor no mundo do crime.

O interessante, na verdade, está em ver que tipo de humorismo é esse.

Veja-se como começa o capítulo sobre como enganar uma máquina de refrigerantes.

“Quantas vezes, ao longo da vida, você já foi roubado por uma dessas máquinas?” Elas “passaram a perna em você —e agora está na hora de dar o troco”, diz o autor.

Segue-se uma impraticável explicação de como colar uma fita adesiva dos dois lados de uma cédula de dinheiro, deixando um rabicho para puxá-la de volta.

O essencial —e tão tipicamente americano, aliás, quanto o uso cotidiano dessas máquinas— está no gênero de argumentos utilizado pelo autor.

Em resumo, qualquer transgressão é apresentada como um direito legítimo. Se roubaram você, responda roubando também.

Outro exemplo. Se um guarda de trânsito pretende multá-lo por excesso de velocidade, “pergunte sobre o radar dele”, recomenda o livro. Isso porque em muitos lugares dos Estados Unidos é lícito exigir do guarda o certificado de aferição do aparelho.

O autor também oferece muitas razões “legítimas” para nos instruir a roubar no jogo de dados. O cassino vive de arrancar nosso dinheiro; “a única maneira boa de se vingar é tomando o dinheiro dele”.

As dicas do livro a esse respeito são obviamente delirantes: “pratique jogar dados colocando para cima os números que você quer”, e “lance-os de tal maneira que não haja muita rotação”.

Ah, bom. Muito obrigado. Agora estou pronto para a desforra.

Tantas reparações imaginárias contra “os verdadeiros ladrões” têm, na verdade, um pressuposto até ingênuo.

A ideia, especialmente estranha para nós brasileiros, é a de que o cidadão é em sua essência honesto e, sobretudo, detentor de direitos. É em defesa desses direitos que ele encontra justificativa para quebrar a lei; a boa notícia está no fato de que, em última análise —como no caso das multas de trânsito—, o próprio sistema judiciário facilita esse tipo de comportamento.

No Brasil, tudo teria de ser escrito ao inverso. Estamos culturalmente preparados para um estado de culpa, e não de inocência. Se apanhados em alguma transgressão, nossa tendência será dizer que todo mundo faz o mesmo.

Nos Estados Unidos, pelo menos através das lentes satíricas de “O Livro Maldito”, a atitude é outra: que autoridade tem o guarda para me acusar de alguma coisa?

Sem ser especialmente engraçado, muito menos útil, e menos ainda pernicioso, o livro de Christopher Barish ajuda a entender um pouco dos aspectos mais misteriosos da psique americana.

A partir desse pressuposto da inocência e do recurso à ilegalidade como um direito dos cidadãos, fica mais clara, por exemplo, a estranha atitude de tantos americanos com relação à posse de armas de fogo.

Eles se batem por um direito que, em qualquer outro país, passa por um evidente e patológico desejo homicida. Liberar a compra de metralhadoras? No Brasil ou no Canadá, um “princípio” desses constitui o mais rematado absurdo.

É preciso acreditar muito na própria inocência, sem dúvida, para fazer tanta questão de possuir um arsenal dentro de casa. Dizer-se roubado, fazer-se de vítima, ver o crime nas intenções dos outros —eis, na verdade, um bom caminho para se tornar criminoso também.

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Tempo de Kindle

Por Folha
23/01/13 03:00

Ando meio cansado dos tradicionais elogios ao livro impresso. Aquela conversa de “adoro cheiro de livro” não me convence muito; de tão repetitiva, parece perder a sinceridade que possa ter tido, tornando-se talvez só um clichê.

Não sei se muita gente apreciava de fato o cheiro do livro antes de surgir a ameaça do Kindle e outros formatos eletrônicos.

São raros, aliás, os livros que têm cheiro de fato, a não ser que você afunde o nariz dentro deles, atividade dificilmente compatível com a da leitura propriamente dita. Tudo bem, alguns livros da infância trazem esse tipo de memória guardada nas páginas.

Mas a encadernação ou a cola podem até produzir um odor próximo do amargo e do enjoativo: algumas edições de arte, com papel brilhante e pesado, estão nessa categoria.

Além de apresentarem o defeito de refletir a luz, se a lâmpada for forte demais.

Quanto ao contato da pele do dedo com o papel, não sei que prazer se tira disso. Já me cortei com as bordas de edições muito perfeitas. O papel mais macio, por sua vez, pode exigir uma lambida nos dedos de vez em quando, coisa que na minha opinião fere um pouco a etiqueta de qualquer escritório ou biblioteca. Um pouco mais e estaremos todos mexendo os lábios durante a leitura.

É que todo esse apelo à “fisicalidade” do livro tende a ser uma traição, acho, do que há de mais espiritual no ato de ler. Não é prazer que deva ser contaminado por apelos táteis, olfativos ou, pronunciemos a palavra, gastronômicos.

O livro impresso, quando se manifesta na conversa sobre tato e perfume, inscreve-se no mesmo capítulo que mobiliza os adeptos da “slow food”, os especialistas em charutos, os que percebem notas de canela e mirtilo no vinho não sei das quantas. É vontade de refinamento, decorada e repetida num esforço de autoconvencimento.

Quanto à praticidade, tenho também minhas dúvidas. Não é fácil segurar nas mãos uma boa edição de “Guerra e Paz”. A versão encadernada pesa muito. Em formato de bolso, é raramente resistente aos meses de investida. Em dois volumes? Aí não vale.

Tenho livros baratos que se despedaçaram antes de eu chegar ao final. Livros mais caros, de capa dura, resistem obtusamente à informalidade e ao conforto de um uso cotidiano. O papel antigo fica amarelo e ganha manchas. O papel de luxo, tipo bíblia, cria orelhinhas e se rasga facilmente. Um dicionário grande, editado em volume único (penso no “Houaiss”) é objeto de alto risco. Em vários volumes? Sempre erro ao calcular a ordem alfabética.

Resultado: comprei um Kindle, numa viagem, há coisa de dois anos. O produto agora está disponível no Brasil.

Fica o testemunho: nunca uso a geringonça. A ausência de cheiro é o de menos. Os problemas são outros. Em primeiro lugar, é muito chato ler qualquer livro em que o texto tem a invariável aparência de um documento do Word. Será incompetência minha ou toda a arte da tipografia desaparece com o Kindle?

E as capas? Não existirão mais? Voltamos ao século 19 com essa novidade eletrônica. Além disso, não me conformo em pagar, digamos, quarenta reais apenas pelo direito abstrato de baixar um arquivo literário na máquina.

A abstração do Kindle tem outra consequência, mais grave do que a questão do cheiro do papel. É que, como em toda tecnologia contemporânea, o espaço entra em vias de desaparecimento, sendo substituído pelo tempo. Não ficam mais evidentes a página de trás, a página da frente, a página par, a página ímpar, a grossura do livro que estamos lendo, ou o seu lugar na prateleira.

Tudo passa a se situar numa névoa temporal, entre o “agora” e o “não ainda”, sem o “para trás” ou o “mais adiante”. Por isso se fala na “memória” do computador, e não no seu “armário” ou no seu “depósito”. Última vitória do tempo, o sistema de arquivos em “nuvem” eliminou o problema do “espaço em disco”.

Com o Kindle, você nem precisa de marcador de livro: ele liga sozinho na página em que você interrompeu a leitura. Só que, assim, você também deixa de folhear o livro e reler por acaso alguma passagem.

Claro que vão inventar, um dia desses, a “função folhear”, e um comando de produção de odores, assim como os computadores imitam o barulho de páginas sendo viradas. Mas aí eu já não estarei, provavelmente, lendo mais coisa nenhuma. Mais uma vitória do tempo, aliás.

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Amarelo piscante

Por Folha
16/01/13 03:00

Basta uma chuva qualquer, ou às vezes nem isso, e o paulistano já sabe o que acontece. Os sinais de trânsito entram em pane e se harmonizam com os ridículos relógios digitais espalhados pela cidade, sempre errados na hora e na temperatura.

A má avaliação do ex-prefeito Gilberto Kassab, que a meu ver tem certa dose de injustiça, foi atribuída a várias causas. O fato de ele não ter construído dois hospitais prometidos certamente afetou os serviços de saúde.

Ainda assim, uma coisa é reclamar da falta de algo que nunca existiu, e outra é ver o que já existe deixando de funcionar. Uma promessa que não se cumpre dói menos do que uma realidade que se retira de cena.

Melhor perder R$ 10 numa aposta de loteria do que ter R$ 5 roubados no ponto de ônibus. A sensação de abandono e disfuncionalidade provocada pelos semáforos quebrados devia, assim, ser levada a sério.

Bom, talvez nem sempre. James Scott, professor de ciência política na Universidade de Yale, leva suas convicções libertárias ao arriscado extremo de criticar os faróis de trânsito. No livro “Two Cheers for Anarchism”, publicado agora nos Estados Unidos, ele conta uma desagradável experiência pessoal, ocorrida no verão de 1990. Scott inventou de aprender alemão trabalhando numa fazenda comunitária, remanescente do regime socialista.

Aos sábados, dava um passeio até uma cidadezinha ali perto. Tinha de atravessar a pé uma estrada, que se estendia por quilômetros de planície. O sinal demorava um tempão até ficar verde, mesmo nas horas mortas da noite. As pessoas iam se juntando na calçada, esperando disciplinadamente (eram alemães, afinal de contas) a permissão para atravessar.

Scott olhou de um lado, olhou de outro, e depois de alguma hesitação acabou atravessando no sinal vermelho. Foi uma imprudência. A pequena multidão se revoltou; vaias e xingamentos puniram o seu individualismo tipicamente americano.

Ele ainda tentou reproduzir a aventura, ao lado de um amigo holandês, professor universitário e adepto da insurgência de massas. O holandês também se chocou.

“Mas não tem carro nenhum na estrada”, argumentou Scott. “Sim, mas fazendo isso você dá um mau exemplo para as crianças do lugar”, respondeu o holandês.

A história foi reproduzida na revista “Harper’s” de dezembro passado, e serve para mostrar até que ponto está entranhado no espírito dos europeus o princípio da obediência a qualquer custo. Sabe-se, aliás, que custo isso teve durante o século 20.

Mas a Europa continua evoluindo, e Scott fala de uma iniciativa curiosa, surgida há pouco tempo na Holanda. O engenheiro de tráfego Hans Moderman teve a ideia em 2003.

Tirem os semáforos, disse ele. Melhor substituí-los por rotatórias e confiar nos motoristas.

No cruzamento mais movimentado da cidade-piloto de sua experiência, o índice de acidentes caiu para quase um décimo do que era quando o farol estava em funcionamento.

A experiência se espalhou, e o movimento do “red-light removal” ganha adeptos na Europa e nos Estados Unidos. Teria medo de ver isso adotado, por exemplo, no cruzamento da Rebouças com a Henrique Schaumann. Com os semáforos toda hora no amarelo piscante, entretanto, quem sabe não estejamos longe de tentar a experiência.

Sem dúvida, foi preciso que antes a população europeia tenha tido reverência mística ao princípio do sinal vermelho para que, mais tarde, sua prudência adquirida possibilitasse a remoção “anarquista” dos semáforos.

Por aqui, eu gostaria de ser mais radical, e propor a remoção dos próprios automóveis. Quem sabe se os proibissem na Paulista o recurso aos ônibus se tornaria mais rápido e atraente… Falta, como sempre se diz, investir mais em metrô.

Sem carros, entretanto, não seria nem mesmo necessário construir linhas subterrâneas. Andando mais a pé, a população precisaria também de menos hospitais —que teriam menos atropelados, aliás, para cuidar.

Um passo a mais no amarelo piscante, e a própria prefeitura seria removida de cena. Justiça seja feita a Kassab, ele começou o processo —não só com os faróis quebrados, mas com a lei da cidade limpa também, removendo os outdoors de nossa vista.

O horizonte se desanuvia aos poucos; mas o novo prefeito, é verdade, ainda tem um longo caminho à sua frente.

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Medinho à moda antiga

Por Folha
09/01/13 03:00

Acho que a primeira cena realmente horrível (açougue, sangreira) que vi no cinema foi em 1982. O filme até que era bom: “A Marca da Pantera”, de Paul Schrader, com Nastassja Kinski –um remake do clássico em preto e branco de Jacques Tourneur, sobre o qual falarei depois.

Um sujeito se aproxima da jaula da tal pantera, e, zás! Volta com um toco em vez do braço. Vemos o sangue, os tendões e um osso aparecendo, depois do ataque traiçoeiro do felino.

Lembro-me de ter pensado, há 30 anos, no destino que me esperava como espectador de cinema. Era, de fato, só o começo.

Por maior que tenha sido a evolução dos costumes nas últimas décadas, cenas de sexo só são tão explícitas assim no cinema pornográfico. Já a explicitude da violência está em toda parte.

Está em “O Hobbit”, por exemplo. Tenho tido bastante tolerância, por razões familiares, com filmes infantojuvenis. De “Alvin e os Esquilos” a “Piratas do Caribe”, assisti a muita coisa nos últimos anos, sem desgostar em princípio de quase nada.

“O Hobbit” talvez tenha marcado meu ponto de saturação. É longo demais, violento demais, chato demais, com todas aquelas referências a um suposto universo mítico de orcs, greeks, crocs, blips e não sei mais que tipo de entidades, tão artificialmente (pelo que vi no filme) produzidos pelo autor da saga, J. R. R. Tolkien.

Tudo já é feito para consumo dos fãs, e quem não está familiarizado com “O Senhor dos Anéis” e suas sequelas se vê arremessado a um mundo em que temas “arquetípicos”, do tipo a busca, o herói, o dragão, o tesouro, parecem produzidos em laboratório.

Seja como for, antigamente os monstros e maldades desse tipo de filme tendiam a provocar algum medo nas crianças. As cenas mais extremas de “O Hobbit” apontam, entretanto, para outra reação.

Não se trata de imagens ameaçadoras, das que fariam parte dos piores pesadelos infantis.

O medo é contrabalançado pelo que os monstros têm de repulsivo; sua feiura chega a ser cômica.

Certo gnomo, dominando hostes infernais, surge com uma papada tão flácida que ficamos em dúvida se não é uma barba feita de pele pardacenta. Um bicharoco velhaco, meio lesma, meio lêmure, com vozinha de bruxa, suscita doses iguais de horror e de desprezo.

A destruição de tais inimigos se torna menos uma questão de justiça que de higiene.

Também na série dos “Piratas do Caribe”, a tripulação de um navio fantasma era tão nojenta, com moreias saindo pelo nariz e cracas no pescoço, que seu potencial aterrorizante diminuía um bocado.

O horror se vê superado pelo grotesco, o que não deixa de ser uma vacina psicológica. O medo de verdade, o medo real, fica assim reservado para outro tipo de cinema, e para outra faixa etária.

Saíram em DVD alguns filmes do diretor Jacques Tourneur, entre eles “Sangue de Pantera” (“Cat People”), o clássico de 1942 que Paul Schrader iria refazer quarenta anos depois.

Nessa história, assim como em “O Homem Leopardo”, do ano seguinte, o que interessa é criar no espectador um outro tipo de medo. Ninguém fica muito impressionado com as estranhas maldições que ameaçam os personagens, e pouquíssimos momentos chegam perto da hipótese de um arrepio.

Cria-se um medo, digamos, agradável, ou melhor, poético, nas cenas mais ameaçadoras de “Sangue de Pantera”. Poucos diretores sabem interromper a música de fundo como Jacques Tourneur. À noite, ao longo de um muro branco, é o silêncio o que mais inquieta

A mocinha sente que está sendo seguida. Será por alguma pessoa, por bicho, ou por algo que não é deste mundo? Outro filme, a mesma situação. Ela está agora presa num cemitério; nada se passa, nada se vê. Apenas o galho de uma árvore se verga lentamente…

Piscina. Noite. A luz se entretece na água em preto e branco. Você ouviu alguma coisa?
Mulheres vitimadas ou possuídas por algum instinto predatório e sobrenatural esgueiram-se nesses filmes. Mesmo “Quando a Neve Voltar a Cair”, drama antinazista bastante convencional que faz parte do pacote de DVDs, beldades delicadas (Tamara Toumanova, Maria Palmer) são vistas de longe, numa espécie de tocaia.

Sexo e violência, como sempre. Mas na dosagem e nos filtros de uma coisa e outra está o segredo de todo o charme, humano ou felino, que Tourneur sabe transformar em cinema.

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Arrependimentos terminais

Por Folha
02/01/13 03:00

Poderia ser uma boa ideia para o final de ano. Em “Antes de Partir” (editora Jardim dos Livros), uma cuidadora especializada em doentes terminais fala do que eles mais se arrependem na hora de morrer.

A época, como se sabe, é boa para arrependimentos e resoluções, e não sofro especialmente de medo quando se trata de temas trágicos. Se alguém, como Bronnie Ware, aguentou tratar de pacientes desenganados por muitos anos, não seria impossível prestar um pouco de atenção no que ela quis contar.

Infelizmente, “Antes de Partir” acaba se revelando um livro de autoajuda, não muito diferente das dezenas que existem por aí. Às vésperas da morte, as pessoas com quem Bronnie Ware conversou não têm muito de notável a dizer.

Há cinco arrependimentos básicos, cada um dos quais explicado e reexplicado em capítulo próprio.

“Não deveria ter trabalhado tanto”, diz um dos pacientes. “Desejaria ter ficado em contato com meus amigos”, lembra outro. “Desejaria ter a coragem de expressar meus sentimentos”, confessa um terceiro. Outro alerta: “Não deveria ter levado a vida baseando-me no que esperavam de mim”.

Por fim, a chave de ouro: “Desejaria ter-me permitido ser mais feliz”. Claro que, nesse nível de generalidade, tudo se equivale. Mas esses arrependimentos também dizem um bocado sobre o tipo de personalidade mais comum em nossa época.

Há cem anos, ou 50, quem sabe, sem dúvida seriam outros os arrependimentos terminais. “Gostaria de ter sido mais útil à minha pátria”, diria alguém. “Gostaria de ter deixado um patrimônio maior para meus descendentes”, poderia suspirar o pai de família. “Deveria ter sido mais obediente a Deus”, confessaria um terceiro.

Ideias de autosacrifício, de dever, de empenho na construção do futuro da comunidade, tudo isso compunha um tipo de personalidade sem dúvida mais rígido e convencional, para quem os conceitos de honra, de virtude e de disciplina ainda faziam sentido.

É o que desaparece nos arrependimentos contemporâneos. Menos do que morrer com a sensação do nome limpo e do dever cumprido, morre-se com a sensação de um ego insatisfeito.

A insatisfação existe porque o ego, afinal, é insaciável. Por mais que eu me dedique a ser feliz em cada momento, a ser sincero com meus desejos, a fugir das obrigações, sempre vou achar que não me dediquei o bastante a mim mesmo. A vida autocentrada será, desse modo, inevitavelmente frustrante. Mais que isso, vida e frustração se tornam sinônimos. Quando o paciente terminal reclama de não ter pensado mais em si mesmo, ele no fundo está reclamando apenas de não estar podendo viver mais.

Não digo, é claro, que seja fácil morrer em qualquer circunstância. Mas o problema dos pacientes de Bronnie Ware, e dos leitores de seu livro, não é a falta de autoajuda. É o excesso de autoajuda; quem só se preocupa em atender a si mesmo sempre se sentirá desatendido.

O paradoxo é que a autora, conforme vai contando suas experiências, demonstra uma extrema capacidade para se dedicar aos outros. É vegetariana, por que não suporta a ideia de ver animais sacrificados. Depois de muitos anos prestando conforto a pacientes terminais, resolveu dar aulas de música para detentas (ela também compõe canções no estilo folk) e, para mudar um pouco de ambiente, faz shows para crianças em idade pré-escolar.

Nascida na Austrália, Bronnie Ware largou seu trabalho num banco para levar uma vida errante, e começou seu trabalho de cuidadora meio por acaso, no interior da Inglaterra.

É possível que tratar de pacientes terminais corresponda ao desejo de mudar sempre de casa, de vida e de lugar; durante um tempo Bronnie Ware morou no próprio carro, que aliás caía aos pedaços. A depressão, e um quase suicídio, estavam à espreita.

Ela se considera uma “doadora natural” –e sua maior dificuldade está, diz ela, em saber receber a ajuda dos outros. Com certa maldade, seria possível observar que no mundo da autoajuda perfeita ninguém estaria ligando muito para ajudá-la de qualquer modo.

Mas não é verdade. Seu livro tem um precedente respeitável na filosofia de Alain (1868-1951), para quem só as pessoas felizes podem ajudar plenamente o próximo. A felicidade não é um direito, dizia; é um dever. Que cada um cumpra o seu em 2013.

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Inhotim

Por Folha
26/12/12 03:00
A maior atração do Instituto Cultual Inhotim, nestes dias, não tem diretamente a ver com arte contemporânea, ainda que o belíssimo parque (a uns 50 km de Belo Horizonte) seja famoso internacionalmente pelas obras de Tunga, Cildo Meireles, Hélio Oiticica e muitos outros.
 
É que, além das galerias e galpões especialmente projetados para abrigar tantas instalações de grande porte, o lugar também funciona como um jardim botânico, exibindo muitos hectares (mas o que é um hectare, afinal?) de mata nativa e plantas de várias partes do mundo.
 
Entre essas plantas, está a sensação do momento. Trata-se de um espécime da maior flor do mundo, originária da Indonésia, e devidamente registrada no livro Guinness dos recordes.
 
O nome científico é Amorphophallus titanum (falo amorfo de um gigante?), mas o vegetal, que alcança até três metros de altura, deve sua denominação popular (flor-cadáver) ao péssimo cheiro que exala.
 
Como nada é tão ruim como se pensa neste mundo, a vantagem da Amorphophallus está no fato de que só floresce uma vez a cada dois anos. Pode demorar mais, até 12. Conta apenas com três dias para exalar um cheiro de peixe podre com açúcar queimado, capaz de atrair as moscas e os besouros responsáveis por sua polinização.
 
Nossa reportagem esteve em Inhotim para conferir o acontecimento, mas o cronograma não coincidiu. A flor-cadáver ainda se preparava para o grande dia. De todo modo, esta época traz vantagens para quem quiser conhecer a instituição. Os guias, estagiários simpáticos e nada pretensiosos, dizem que em feriados como o Carnaval aparecem mais de 5.000 pessoas.
 
Não peguei nenhuma fila, mas o calor no meio da mata nativa desafia os maiores entusiastas de Adriana Varejão, Chris Burden, Rivane Neuenschwander e Matthew Barney.
 
Cada um desses artistas tem um edifício próprio, onde felizmente não se faz economia de ar refrigerado. Carrinhos de golfe transportam os visitantes para os cantos mais remotos do parque; mesmo assim, caminha-se bastante.
 
Embora o paisagismo atraia muita gente, o notável de Inhotim está em provar que a arte contemporânea, tantas vezes acusada de incompreensibilidade, pode tornar-se um genuíno sucesso de público.
 
Apesar da verborragia que a cerca (e os textos explicativos em Inhotim não padecem desse defeito), a arte contemporânea não é tão inacessível quanto parece.
 
Muitas vezes, tudo reside no seu impacto sensorial. Um iglu do islandês Olafur Eliasson, por exemplo, oferece nada mais do que um jato d’água, como um bebedouro baixo, sob flashes de luz estroboscópica.
 
As formas que o jorro adquire se “congelam” numa série de imagens distintas, enquanto o ruído produzido pela água se mantém contínuo.
 
O efeito é instantâneo e mágico. Torna-se supérfluo, num caso desses, especular sobre o que a obra “significa”.
Conhecem-se as tentativas do gênero. O artista “joga com os conceitos de tempo e permanência”… “inverte a equação duchampiana”… “alerta para a finitude dos recursos naturais”…
 
Pode-se fazer esse tipo de discurso a respeito de qualquer coisa; a torneira aberta, no fundo da instalação “Desvio para o Vermelho” (Cildo Meireles), talvez tenha sido lembrada no bebedouro de Eliasson; pode aludir a um banho de sangue nas ditaduras latino-americanas.
 
Mas oferece, sobretudo, um efeito óptico para quem acaba de ver o interior de uma residência reproduzido em detalhes, com tudo (móveis, roupas, livros, quadros, tapete) na cor vermelha.
 
Claro, vermelho é sangue, vermelho é política, vermelho é hospital numa obra de Tunga; em outra do mesmo artista, preto é morte, esqueleto, carbonização, consumação.
 
O jogo proposto nessas obras, entretanto, não passa pela necessidade de “interpretar”. Um quadro renascentista da paixão de Cristo igualmente põe em cena “a questão do corpo”, se quisermos falar em “contemporanês”.
 
Na maior parte das galerias de Inhotim, a obra vale pelo que é, pelo impacto, pelo contraste que impõe sobre o cotidiano e a natureza. É uma arte da imanência —no fundo, não “remete” a nada, e seu interesse (ou não) depende pouco do discurso crítico.
 
Disso sabem os visitantes. Em seu paradoxo essencial —flor/fedor, morte/reprodução—, a Amorphophallus titanum não deixa de ser arte contemporânea também. Dura pouco a flor-cadáver. Longa vida à flor-cadáver.
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Orgulho corintiano

Por Folha
19/12/12 03:00

Acho que foi no ano passado. Imagens de um navio de cruzeiro ocupado por corintianos circularam pela internet.

Escondendo a fileira branca dos camarotes, uma vasta faixa da Gaviões atestava o triunfo popular. Em volta da piscina, homens e mulheres que não eram da Ford Models se punham à vontade, numa completa indiferença pela própria estética corporal.

Não me lembro se havia carvão e churrasquinho, mas a cerveja e o pagode corriam sem limites.

Aquelas fotos valiam como uma espécie de teste para o inconsciente político de cada um. A reação, de simpatia ou de repulsa, talvez valesse como sinal das atitudes mais instintivas do espectador com relação à era Lula.

Abuso, falta de senso, invasão, despreparo? O antilulismo pode ser, sem dúvida, a repugnância diante de uma “petralhada” que ocupa os espaços antes reservados às “pessoas de bem”.

Bem-estar, ascensão social, farra feliz? O cruzeiro corintiano seria exemplo dessa espécie de revolução benigna, desorganizada e imediata, garantida pela súbita melhoria dos padrões de vida experimentada nos últimos anos.

Claro que isso corresponde apenas a uma parcela da história. Sabemos bem, ou pelo menos sabemos um pouco mais, o que se passava na cabine de comando do navio, enquanto o pagode e a cerveja entorpeciam os frequentadores do convés.

Uma coisa não exclui a outra. Houve melhoria nos padrões de vida, enquanto os últimos padrões de ética política eram arremessados em alto-mar.

Seja como for, outro tipo de imagem circula agora na internet, tendo novamente a torcida corintiana como personagem principal.

Vi, por exemplo, a montagem de um falso avião, verdadeira sucata pintada de azul claro, com pilhas de caixotes, malas e trouxas amarradas ao teto.

Era o “avião da torcida”, preparando-se para partir no rumo do Japão. Outras fotos mostravam faixas corintianas, propositalmente escritas num português horrível e num inglês pior ainda, incentivando o Corinthians na batalha contra o “Chélssi”.

Os próprios corintianos, em suma, brincam com o estereótipo que cerca a torcida do time. Assim como as piadas contra o São Paulo associam —o que é clássico— um alto nível financeiro com baixo nível de masculinidade, a pecha de “ladrão” e “maloqueiro” é coisa com que todo corintiano está, de algum modo, forçado a conviver.

Existe o “orgulho corintiano” assim como o “orgulho gay”. E desse orgulho faz parte não a recusa à imagem de pobreza, mas sim a sua total apropriação. Na mesma linha, cresce o “orgulho zona leste”.

Sinal, acredito, de que não importa simplesmente a relativa melhora nos padrões de vida. O caminho da ascensão social, quando aberto apenas a uns poucos membros especialmente empreendedores, talentosos ou simplesmente sortudos da classe baixa, tende a trazer consigo a negação do passado periférico.

No máximo, há a história edificante da infância pobre do grande empresário. O próprio Lula é um subcapítulo do gênero.

A melhoria coletiva, por mais modesta que seja, tem outro efeito. Você sobe, mesmo ficando no mesmo lugar; a antiga favela se torna um bairro melhorzinho, especialmente se pacificado. A zona leste —uso o termo em sentido figurado— já não envergonha.

E a pobreza real, embora persista, vai se transformando também em patrimônio simbólico, em fato de cultura. Chegará o dia, espero, em que as antigas favelas do Rio se tornarão algo como as aldeias medievais tão pitorescas que hoje se visitam no interior da Itália, sem memória do esgoto, da miséria e das facadas de séculos atrás.

O corintiano postou, ele próprio, a foto do avião-favela parado na pista; sabe que, espremendo os gastos do cartão, pode embarcar para Tóquio. Lá ele se vira.

Contam-se histórias de quem desceu em terras japonesas sem falar uma palavra de inglês, sem nenhuma informação sobre fuso horário nem endereço de hotel.

Pode ser apenas uma lenda. A quantidade de corintianos que embarcou não se compunha, é claro, de pobres irremediáveis. Em qualquer time, seria fácil encontrar tipos sociais bem parecidos.

A simbologia funciona, entretanto. Sem ser corintiano, só posso esperar que no Brasil de hoje estejam sendo comemoradas vitórias ainda mais significativas, e permanentes, do que a do título mundial conquistado pelo time.

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O fortão da Paulista

Por Folha
12/12/12 03:00

O trânsito ali sempre é complicado, mas à noite, com as decorações natalinas, fico pensando se não seria o caso de interditar a avenida Paulista de uma vez.

Estando todos avisados que depois de certo horário só a circulação de pedestres é permitida, pelo menos diminuirá o número dos desesperados que, dentro do carro, esperavam chegar em tempo a seu destino, sem saber que a rua se tornou mais uma atração turística do que um meio racional de circulação.

O passeio pode ser simpático. Puseram árvores de luzinhas que fogem ao esquema habitual. Em vez de troncos com as lâmpadas chinesas enroladas em volta, surgiram espetos de tamanho médio, que durante o dia não se percebem muito, mas à noite se ganham o aspecto de magra e invernal vegetação iluminada.

Crianças pequenas tiram fotos com os pais, passadas as 23h. Adultos descansam sentados em parapeitos, a meio do longo trajeto. Andando por ali, tive sentimentos contraditórios.

Nunca passei o Natal fora do país, mas aquilo podia até ser parecido com Nova York, ou quem sabe Milwaukee. 

Estava tudo bem até eu ver três garotões de preto, cheios de tachinhas e pulseiras, sem o menor ar de admiração pelos trenós e presépios em volta.

Sosseguei ao ver que havia um carro de polícia estacionado logo ali. Pensei melhor, identificando os garotos mais com alguma vertente punk do que com neonazistas ou assassinos de homossexuais.

Bem à minha frente, dois jovens japoneses pareciam tomar conhecimento com a Paulista pela primeira vez, e temi pelo que pudesse acontecer com eles.

Algo está certamente errado com um lugar onde, ao mesmo tempo, crianças pequenas apontam para imagens de Papai Noel e homossexuais podem ser espancados e mortos à vista de todo mundo –das crianças inclusive.

Certamente, ataques aos gays existem em qualquer parte da cidade, mas não é casual que episódios desse tipo tenham acontecido várias vezes na avenida Paulista.

Provavelmente, o homofóbico faz questão de tornar especialmente pública a sua ação. Viu que na Paulista, na passeata do orgulho gay, existem muito mais membros dessa tribo do que ele próprio pensava.

O poder de centenas de milhares de gays o intimida. Se existem tantos, que será de mim? É claro que, lá no fundo, ele pensa: “quando chegará a minha vez?”.

Pois bem, passado o trauma da multidão, ele gostaria que a avenida voltasse ao normal. Um dia de tolerância aos gays não quer dizer que no resto do tempo a homossexualidade esteja permitida.

É como o machão que, certa vez na infância, no campinho de futebol, bem, você sabe… Mas ele é totalmente heterossexual, claro.

Dizem os alemães que uma vez é igual a vez nenhuma: “einmal ist keinmal”. Certo, um dia por ano admite-se a festa do orgulho gay. Cabe ao homofóbico destruir, então, qualquer vestígio do que aconteceu.

Não inovo ao dizer que o fortão da avenida Paulista quer destruir, acima de tudo, o seu próprio medo de ter desejos homossexuais. Procura ingerir a heterossexualidade junto com os anabolizantes.

Deveria pensar que a heterossexualidade, como a dimensão dos músculos, é uma questão de grau.

Um dos sujeitos mais heterossexuais que conheci considerava que, depois dos 40 anos, ter barriga é desejável. 

Mais do que isso, a ausência de barriga chegava a lhe parecer um bocado suspeita.

Há quem vá além. Soube de um cidadão que, mesmo nos transes da adolescência, nunca teve interesse em se masturbar. “Meu negócio é mulher”, dizia ele. E o onanismo, pensando bem, não deixa de ser uma forma de obter prazer com alguém do mesmo sexo.

Que dizer, ademais, de um homem que faz questão de sair com mulheres bonitas? É o que quer a maioria; enquanto isso, muitas mulheres não ligam para a feiura dos companheiros.

Concluo que as mulheres, provavelmente, são mais heterossexuais do que os homens —tão ligados, afinal, em frescuras estéticas, enjoamentos, exigências e minúcias.

Como é que aquele gay, pensa o homofóbico da Paulista, pode ser mais bonito do que eu? Surge o impulso agressivo. Ele volta, depois, à academia de ginástica. O espelho, ali, reflete a sua imagem. Ele é a madrasta de Branca de Neve. Que as luzes do Natal não iluminem seu desfile pela Paulista.

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No metrô com James Bond

Por Folha
05/12/12 03:00

Meu conhecimento dos filmes de 007 é praticamente nulo –acho que só assisti ao primeiro da série, o de Sean Connery contra o satânico doutor No, além de um outro na década de 1980.

Eu achava aquelas histórias muito sem pé nem cabeça, com James Bond indo de um lugar para outro sem ter a menor ideia do que estava fazendo. O inimigo mortal acabava sendo derrotado graças a uma série de coincidências e absurdos.

Claro que eu estava perdendo o humor de tudo, em especial uma coisa que reconheço agora no último filme de Bond, “Skyfall”. Seria, digamos, a arte das pequenas surpresas.

Exemplo inesquecível, logo no começo da série. Um mergulhador sai do mar, com roupa de borracha, pés de pato, garrafão de oxigênio. Tira a máscara: é Sean Connery. Abaixa o zíper da roupa: está impecavelmente vestido num “summer jacket”, pronto para entrar no mais caro cassino tropical.

Há alguns desses imprevistos silenciosos no novo filme de Sam Mendes. Melhor não contar.
Não sei se os maníacos de 007 acham “Skyfall” melhor ou pior do que os anteriores, mas para mim tudo funciona muito bem, com grandes atores (Judi Dench, Albert Finney, um Javier Bardem insuperável como vilão) e perseguições espetaculares.

A grande caçada que inicia o filme é uma obra-prima do gênero e tem essa característica da improvisação, do absurdo, que impregna de humor toda a seriedade dos personagens.

Ninguém imaginaria o que uma retroescavadeira poderia fazer numa corrida em alta velocidade –mas o filme mostra que qualquer coisa, por mais pesada e lerda que seja, pode ser útil nas mãos de James Bond.

O próprio agente do serviço secreto britânico está pesado e lerdo, para nada dizer da instituição em que trabalha e do país que representa. O filme explora a ideia de um Bond já entrado em anos, ruim de pontaria e com um desempenho físico deixando a desejar.

Claro que a Inglaterra será sempre a Inglaterra, ainda mais porque o próprio vilão parece estar vitimado pela mesma decadência.

Numa das cenas mais “disgusting” do filme, pode-se ver que a figura de Javier Bardem, recoberta de maquiagem, tintura loira e falsos dentes brancos é, na verdade, algo bem mais horrível do que a espécie de Donald Trump dos pobres que se apresentava no início.

As armas mirabolantes e carros cheios de truques já não adiantam nada contra esse tipo de inimigo. Ele é capaz de dominar tudo graças a uma rede de computadores, escondida dentro de uma ilha em ruínas.

De certo modo, é como se o mundo da prosperidade industrial civilizada já não existisse mais. As grandes potências do Ocidente escondem seus sinais de velhice, o eixo econômico se transferiu para a China, e o aparato tecnológico de destruição, antes guardado nos arsenais de poucos países, hoje está ao alcance de qualquer gênio com um teclado à sua frente.

Num artigo para o site Artinfo, Kelly Chan conta a história da cidade arruinada que serve de esconderijo para Javier Bardem. Trata-se da ilha de Hashima, no porto de Nagasaki. Usada como dormitório para mineiros de carvão, chegou a ser um dos lugares com maior densidade demográfica de todo o mundo.

A preferência pelo petróleo terminou deixando o lugar abandonado, mas a memória do apinhamento, da superpopulação, volta ao filme em alguns momentos.

O vilão conta que, na sua família, o método usado para exterminar ratos era guardá-los vivos dentro de um barril, até que todos se entredevorassem. Outra perseguição notável em “Skyfall” se dá dentro de um metrô lotado, na hora do rush.

Também abandonada e erma, por outro lado, é Skyfall, a propriedade dos antepassados de Bond, perdida nas solidões da Escócia. O casarão semidestruído será o cenário para o embate final entre 007 e seu inimigo.

Decadência por toda parte. Não será daí, na verdade, que o terrorismo tira suas forças? A ilha destruída de Javier Barden se assemelha, em seus escombros pálidos, às imagens da faixa de Gaza.

Ia-me esquecendo: lá a superpopulação é um problema também. Um pouco mais de espaço, não digo vastas propriedades na Escócia, sempre ajuda a pacificar os ânimos.

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Divisões conservadoras

Por Marcelo Coelho
30/11/12 01:22

 

“Upstream –The Ascendance of American Conservatism”, de Alfred Regnery, é  um longo, detalhado e sóbrio relato do crescimento do conservadorismo americano, a partir de 1945. Escrito pelo filho de Henry Regnery, editor de dois livros pioneiros do movimento conservador nos primeiros anos da década de 1950 (“God and Man at Yale”, de William Buckley Jr., e “The Conservative Mind”, de Russell Kirk), o livro é um primor de organização expositiva, abordando a cada etapa histórica os vários aspectos –político, intelectual, financeiro—do movimento conservador.

Trata-se de uma história evidentemente triunfal. Os conservadores autênticos eram minoria, diz ele, na época de Eisenhower; o Partido Republicano não se afastava muito do modelo inaugurado pelo democrata Roosevelt no “New Deal”. A exceção era o anticomunismo exacerbado de Joseph Mc Carthy e de Whittaker Chambers, sem contar a John Birch Society –que, depois de considerar o próprio Eisenhower um agente de Moscou, começou a cair em descrédito até mesmo nas páginas de “The National Review”, a revista de William Buckley Jr.

O livro faz um breve histórico das principais instituições conservadoras, enfatizando que os primeiros “think tanks” eram financiados modestamente por alguns poucos empresários –nada que se comparasse, diz ele, às fortunas de que dispunham instituições progressistas como a Fundação Ford.

É muito útil para mapear as dissensões entre os vários subgrupos da direita americana. Os ultra-libertários adeptos de Ayn Rand, por exemplo, não contavam com muita simpatia por parte de conservadores tradicionais: o ateísmo e o individualismo nietzscheano da autora tendiam a ser heréticos demais, e a coisa azedou de vez quando a “National Review” criticou “Atlas Shrugged”, paquidérmico romance de Rand.

“Upstream” ajuda a entender melhor a tentativa de síntese feita por Frank Meyer (ver post anterior) entre as principais tendências do conservadorismo dos anos 50: o tradicionalismo, o anticomunismo e o libertarianismo.

Tradicionalistas como Russell Kirk defendiam o papel do governo na promoção da virtude cívica, da religião, do patriotismo. Enquanto isso, para os libertários, seria ilegítima qualquer intervenção do Estado na autonomia individual –estando assegurado aos cidadãos, portanto, o direito de fazer escolhas “más” ou “imorais” por conta própria.

O problema de Meyer seria, portanto, como conciliar o valor da liberdade individual, absoluto para os libertários, com o valor da virtude cívica, posto em primeiro lugar pelos tradicionalistas.

“Cedendo um ponto aos tradicionalistas”, diz Regnery, “[Meyer] admitia que os liberais do século 19 estavam errados ao basear seus argumentos a favor da liberdade no conceito de utilidade social; deveriam ter baseado seus argumentos num entendimento metafísico do ser humano como orientado em direção à liberdade. Mas ele insistia que, por outro lado, os conservadores do século 19, no seu zelo exagerado em sufocar a revolução, negligenciaram as justas aspirações em favor da liberdade.”

A solução foi dizer que, embora fosse o objetivo último do ser humano, a virtude estava no campo do dever pessoal, sem ser uma questão propriamente política. “A virtude só teria valor autêntico, argumentava Meyer, se buscada e atingida sem sofrer pressões externas. Desse modo, virtude e liberdade estavam inter-relacionadas, assim como libertários e tradicionalistas, pois o sistema político americano estava projetado para manter ambos em equilíbrio”.

Daí a teoria de Meyer ter sido chamada “fusionista”; embora híbrida, ou por isso mesmo, diz Regnery, ela “funcionou politicamente”.

Alfred Regnery (fora.tv)

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