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Marcelo Coelho

Cultura e crítica

Perfil Marcelo Coelho é membro do Conselho Editorial da Folha

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Olhos azuis

Por Marcelo Coelho
16/08/14 13:15

Apareceu na televisão, e depois no jornal, o depoimento de um cidadão que estava perto do acidente de Eduardo Campos. O homem, com lágrimas nos olhos, dizia ter visto uma bola de fogo –a queda do jatinho –os corpos espalhados no chão. Aproximou-se de um corpo. Abriu as pálpebras do morto: os olhos eram azuis. “Era o meu candidato…”, disse para as câmeras, forçando o choro.
O problema é que a identificação dos corpos não poderá ser feita nem mesmo pelo exame das arcadas dentárias, segundo a perícia.
A “testemunha” simplesmente delirava.
Qual será o impulso de alguém para mentir sem levar nenhuma vantagem com isso? Queria só aparecer na televisão? Não acho muito plausível. Talvez a vontade não seja exatamente de mentir; é a vontade de ver se o outro acredita. O homem buscava, no repórter que o entrevistou, um olhar que expressasse, digamos, uma “ausência de desconfiança”.
“Acreditam em mim!” Esse é o maior prazer do mentiroso; procura, no fundo, acolhimento.
Não por acaso fixou-se no detalhe dos olhos azuis. Nada disso é quantificável, acho, mas o fato de Eduardo Campos ter olhos azuis também contribuiu para sua popularidade. Talvez para nós, brasileiros, nos pareçam mais “verdadeiros”, mais “sinceros” os olhos claros.
O cidadão que “testemunhou” o acidente queria que acreditassem nele –nada melhor do que olhos azuis para dar veracidade a seu depoimento.

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Nicolau Sevcenko

Por Marcelo Coelho
14/08/14 19:00

Quando a morte de alguém importante aparece no jornal, já estamos mais ou menos preparados para a leitura: a notícia já circulou, diminuindo o choque da letra impressa.
Meu susto, ao ler o jornal de hoje, foi dar com outra morte, ocupando página inteira do “Cotidiano”: a do historiador Nicolau Sevcenko, aos 61 anos. Conheci-o na “Folha”, em meados da década de 80; tinha sido convidado para escrever editoriais no jornal, o que fez com brilho no mesmo dia –mas não tinha disponibilidade, naquela época, para um compromisso regular na atividade.
Era muito magrinho, jovem, simpático e esquisito. Depois ele me contou que, na infância, fora forçado a escrever com a mão direita. Sendo um caso extremo de canhotice, isso viria a atrapalhá-lo bastante. Era comum que gastasse várias folhas de cheque antes de preencher uma corretamente. Trocava letras e números o tempo todo, e na própria postura física e na expressão facial trazia as consequências dessa reorientação neurológica forçada.
Parecia, ao mesmo tempo, absolutamente confortável no mundo. Chegou à Folha com um paletó preto justo, camisa acho que xadrez, e uma gravatinha moderníssima, não sei se de couro ou de borracha; na lapela, uma estrela vermelha do PT.
Era o tempo do “PT light” e charmoso, atraindo pessoas com simpatias libertárias e visceralmente anti-estalinistas. Era também o tempo em que a intelectualidade da USP ia ficando mais “pop” e roqueira. Sevcenko era um historiador acadêmico respeitado, mas seu figurino e atitude nada mais tinham a ver com o jeito mais enfarruscado, quase de ex-militante argentino, que era (e talvez ainda seja) característico da área de humanas da USP.
Nesse mesmo espírito dos anos 80, Sevcenko se destacou por eleger a história cultural, especialmente o campo da modernidade urbana, como objeto de estudos. Tomava-se um fartão (pelo menos era o meu sentimento na época) de estudos coloniais e discussões sobre economia sucro-cafeeira. “Orfeu Extático na Metrópole” (um livro que critiquei na época, e não mudo de opinião) tinha o mérito de destacar assuntos menos austeros, como a paixão pelo futebol nos anos 20…
História do cotidiano, história das mentalidades. Walter Benjamin. Maio de 68. Desse caldo iam surgindo, pela editora Brasiliense, os livros de Sevcenko, de Olgária Matos, de Nelson Brissac Peixoto –e, naturalmente, já pela Companhia das Letras, o de Marshall Berman. Isso, mais as coleções “Encanto Radical” e “Cantadas Literárias” (Marcelo Rubens Paiva, Leminski, Reinaldo Moraes) ia formando uma geração –e Sevcenko foi uma de suas estrelas.

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O recado de Neymar

Por Folha
09/07/14 02:00

Disfarçando a tristeza com um sorriso simpático e hesitante, Neymar transmitiu num vídeo de pouco mais de um minuto sua mensagem à torcida, à comissão técnica e aos jogadores da seleção.

Foi um dos momentos mais tocantes desta Copa, e talvez diga um bocado sobre o nosso país.

Neymar começou se dirigindo, para usar suas palavras, à “rapaziada brasileira”. Soava um pouco antiquado, mas a escolha do termo tinha sua razão de ser.

Com a camiseta preta e o boné de pala virada para trás, Neymar correspondia mais uma vez ao visual adolescente que o caracteriza. Talvez tenha falado em “rapaziada” —incluindo nisso Felipão e outras autoridades—de modo a que todos, de alguma maneira, se igualassem no seu estado juvenil, o de quem sabe que há sempre um longo futuro pela frente.

Ao mesmo tempo, era um modo de se apresentar como alguém mais velho, mais maduro do que o público a que se dirigia. Sua tristeza não poderia tomar as cores de uma frustração infantil; era um adulto, afinal, quem se rendia à evidência médica e aos imprevistos do futebol.

Daí em diante, as palavras de Neymar se encaminharam para um terreno bastante íntimo, pessoal, personalista até.

“Só queria dizer”, começou ele, “que eu vou voltar o mais rápido possível, quando menos se esperar eu estou de volta…”

Agradeceu, naturalmente, as manifestações de carinho recebidas.

Em seguida, tomando fôlego, fez a declaração mais enfática: “O meu sonho ainda não acabou. Foi interrompido por uma jogada, mas ele continua. Tenho certeza que meus companheiros vão fazer de tudo para que eu possa realizar o meu sonho…”

Talvez seja exagero de minha parte, mas não imagino com facilidade um alemão, um francês, com esse tipo de discurso. O mais comum seria o craque estrangeiro minimizar o aspecto pessoal do problema, e partir logo para a conclamação patriótica.

Algo como “venceremos”, “a Pátria será mais forte”, “vive la France”, “Deutschland über alles”.

Mesmo num instante difícil como esse, é como se nossa cultura rejeitasse a mobilização ultranacionalista, a ordem unida de marchar avante. Neymar falou, sobretudo, de si mesmo —e, na hora de se referir à seleção, confiou na possibilidade de que esta realizasse o “seu” sonho.

Longe de mim querer fazer uma crítica ao que ele disse. Ao contrário, ele foi absolutamente natural e sincero. Sabia de sua importância para a seleção, e ao longo de toda uma carreira marcada pelo talento excepcional, seria muito hipócrita se dissesse que o coletivo é mais importante do que o indivíduo.

Para bem ou para mal, tendemos a concordar com ele. O Brasil não teria tantos craques de fama internacional (e tão poucos técnicos importantes atuando na Europa) se não fosse, antes de tudo, um país que confia menos na organização do conjunto do que na inspiração do momento.

Não entendo nada de futebol, mas desconfio que o grande desafio de quem dirige um time brasileiro é o de arrumar uma tática na qual os jogadores possam sobressair individualmente. As tentativas de submeter os craques a um esquema rigoroso provavelmente não são as que dão certo.

Há também, naturalmente, o fato de Neymar ser muito paparicado pela publicidade e pela imprensa. Isso fortalece o destaque dado, na mensagem, à sua própria pessoa. No início de sua trajetória, ele teve mesmo a fase “monstro”, em que algumas declarações arrogantes chegaram a assustar os que primeiro confiaram em seu talento.

Foi admirável, entretanto, a rapidez com que superou aquela fase. Paparicado ou não, Neymar estava jogando com muita garra nesta Copa, corria para baixo e para cima do campo, mostrava estar mais disposto do que qualquer um a ganhar o jogo.

Pode ser implicância minha, mas nada me irritava mais do que a atitude de outro grande craque, Ronaldinho Gaúcho, que costumava sorrir sempre que perdia um gol. Embaraço, vergonha, talvez. Mas, para mim, muitos craques internacionais pareciam descomprometidos quando vestiam a camisa da seleção brasileira.

Neymar, não. Era como se tivesse vestido a sua camisa, e a dos outros dez jogadores também. Lutou como se fosse o Brasil inteiro, embora sabendo que era único.

Imitando a famosa frase de Brecht, caberia dizer que é infeliz o povo que precisa de craques. Ou não?

Talvez seja precisamente uma coisa boa do Brasil, a de que o personalismo das relações, o improviso e a falta de rigor militar nos seus esquemas possam de quando em quando se transformar em garra, em vontade de vencer, em realizar um sonho coletivo, muitas vezes adiado.

P.S.: Férias. Volto dia 20 de agosto.

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Um fordeco em 1970

Por Folha
02/07/14 02:00

Sem pensar no que estava fazendo, uma amiga da família vestiu uma saia verde e uma blusa amarela e saiu para trabalhar. Estávamos em 1970, plena Copa do Mundo.

Sua roupa causou comoção. Pessoas buzinavam enquanto ela andava na Paulista. Gritos, acenos e manifestações eufóricas fizeram com que ela passasse a maior vergonha de sua vida.

Hoje em dia, claro, nada haveria de anormal em usar as cores do Brasil. Anormal, de fato, seria pensar que em alguma época isso era diferente.

É que a memória engana muito. As surpresas seriam imensas se uma máquina do tempo nos levasse para 40 anos atrás.

Eu mesmo custo a acreditar, mas tenho certeza do que vi, numa aula de inglês em 1967 ou 1968. A classe reunia crianças e pré-adolescentes; seria algo como um curso “kids”, mas a palavra não se utilizava na época. Era o “Juvenil 2”, ou coisa parecida.

Em pleno Itaim, na rua das Fiandeiras, o quintal da escola se desfazia, sem muros, num matagal; não muito longe, na neblina da manhã, via-se um riacho limpo e luminoso como uma pintura.

Sonho ainda com isso. Pode ser que tenha imaginado a cena —a memória da infância, como se sabe, veste-se de algumas fantasias.

Mas não foi fantasia a entrada de uma menina, mais velha do que eu, bastante feiosa e meio gorducha, naquela sala matinal do Juvenil 2.

Um murmúrio correu pela classe. De calça jeans, ou melhor, rancheira, e com um casaco azul, que aliás era uma japona, ela não usava nada que chamasse a atenção.

Exceto pelo detalhe escandaloso: estava de tênis! Ou melhor, de Keds! Ou, melhor ainda, como dizia minha mãe: de chancas! Preto, cano alto, o horroroso Bamba progredia pela sala até a carteira da menina, que se sentou sorrindo, mas incomodada, à espera da aula e do futuro.

Três ou quatro anos depois, o futuro ainda não tinha chegado plenamente. Estávamos esperando as mães (raro o pai que aparecesse) na porta do colégio, em 1971 ou 1972, quando novo ato revolucionário se deu.

Quieta, dentro do carro, a mãe de um colega produzia o mesmo espanto da menina do inglês. Também ela usava tênis! Parece que jogava vôlei num clube ali perto. Mesmo assim, era inédito.

Tentando manter a discrição, todos passavam perto do carro estacionado para ver a motorista calçada como um menino. O mundo estava perdido.

Logo as mulheres passariam a jogar futebol, a televisão deixaria de ser um objeto feio demais para ficar na sala, e na casa dos colegas conheci um novo item do mobiliário. Tinha o nome estranhíssimo de “caixa de som”.

Poderia continuar nas reminiscências, mas o importante está em outro lugar. Dizem que nossa memória é seletiva, no sentido que esquecemos os fatos de que não queremos nos lembrar.

Mas a memória não é só seletiva desse modo. Ao contrário do que parece, o presente lança a sua sombra sobre o passado. Mudanças graduais nos costumes vão sendo absorvidas; tornam-se tão dadas, tão óbvias, que quando evocamos o passado colocamos em cena detalhes impossíveis de estar ali.

Um encanador italiano, muito velhinho, veio consertar alguma coisa em casa no exato dia em que a seleção de Pelé e Jairzinho marcava 4 a 1 contra a “Azzurra”. Para piorar as coisas (já disse que ele era bem velhinho), seu carro era um fordeco de 1930, verdadeiro calhambeque.

Não sei por que, minha mãe e eu pegamos uma carona no carro do encanador, que subiu alegre e irresponsavelmente uma rua que dava na Paulista. Ninguém atinava com o que estava acontecendo.

“É uma passeata!”, exclamou minha mãe, ainda presa às memórias de 68 ou 64. Claro que não; eram as comemorações do tri. A população paulistana, efusiva como tinha sido no caso da amiga de verde e amarelo, celebrou a passagem do calhambeque. Alguns montaram no estribo.

O encanador —chamava-se Olímpio— pediu delicadamente que o deixassem passar. “Per favore, eu voleva atravessare questa via, estavo com pressa…” O rosto de um torcedor desfigurou-se.

“O cara é italiano!” Minha mãe, cujo senso de humor era por vezes inadequado, resolveu responder: “no, io sono brasiliana…!” Quase viraram o calhambeque de cabeça para baixo.

Nada aconteceu, por sorte; o Ford seguiu adiante, atravessou a Paulista e desceu por uma ladeira interminável, até mergulhar no riacho prateado e nebuloso do tempo.

 

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As previsões dos outros

Por Folha
25/06/14 02:00

No mercado financeiro, disse o jornal “Valor” desta segunda-feira (23), também correm apostas sobre a Copa do Mundo.

A consultoria KPMG, por exemplo, desenvolveu um modelo que dava à Espanha 19% de chances de ganhar o campeonato, quase ao lado do Brasil, com 21%.

O modelo matemático do Lloyd’s, empresa britânica que é craque no campo dos seguros, teve desempenho pior: confiava numa final entre Espanha e Alemanha.

Feito o balanço desta fase do Mundial, quem se mostra mais confiável é a velha e boa Goldman Sachs, dando 48,5% de chances ao Brasil, com Argentina e Alemanha bem atrás.

Seria injusto tripudiar sobre tais erros: pouca gente imaginava o total fiasco dos espanhóis.

Os modelos não foram construídos aleatoriamente. Como toda previsão, partem dos dados do passado. Uma vez que, nos últimos meses ou anos, a Espanha andava jogando bem, o razoável era supor que continuaria indo bem durante a Copa.

O razoável se torna absurdo, entretanto, se pensarmos nos raciocínios em que se fundamenta. A saber: quem vai bem sempre irá bem, o passado é prolongável no futuro, e nenhuma novidade jamais acontecerá.

O futuro, em suma, reproduzirá o passado; eis um belo conservadorismo, embora alguns possam chamá-lo de lições da experiência humana.

Exagero um pouco ao dizer isso. Claro que, se os economistas pensassem desse modo, eles não estariam apostando apenas na Copa de 2014, mas também na de 2026.

Além disso, eles não levam em conta só o desempenho recente das seleções. Consideram que o fato de ser sede da Copa aumenta as chances do Brasil, por exemplo —com o que concordo plenamente.

Outro fator seria a “tradição” dos competidores —o que também é razoável, na medida em que desacredita de uma final entre Coreia e Irã. Mas o que isso significa? Apenas que a previsão funciona se não houver nenhuma surpresa.

Haveria dois modos, acho, de melhorar os palpites desse tipo. O primeiro seria incluir no modelo outras variáveis, como a idade dos jogadores, o desempenho do técnico e assim por diante, até o computador aguentar.

Uma segunda forma de aperfeiçoar o sistema seria usá-lo apenas como ponto de partida. Identificados os favoritos, digamos Brasil e Espanha, caberia analisar em profundidade suas condições reais de jogo.

A isso se dedicam, naturalmente, os especialistas em futebol, menos confiantes no poder da estatística. Talvez se saiam ainda pior do que os economistas, entretanto.

Quanto às minhas próprias previsões, começo com a mais errada de todas. Previ que estaria longe do Brasil nesta Copa do Mundo; que não suportaria o oba-oba, a patriotada, a manipulação obscena dos sentimentos nacionais.

Cá estou, acompanhando não só os jogos do Brasil, mas de seus eventuais adversários. Digo em meu favor que, primeiro, o oba-oba tem sido muito menor do que das outras vezes. O bombardeio da “corrente pra frente” foi mitigado pelo movimento do “não vai ter Copa”, e entre os dois extremos chegamos a uma atitude aceitável de torcida com algum realismo.

Em segundo lugar, eu não queria saber de Copa do Mundo porque, desde a derrota por pênaltis do Brasil em 1986, irritava-me o misto de displicência e imaturidade de tantos jogadores brasileiros —mais interessados, a meu ver, em farras e Ferraris do que nas cores nacionais.

Eis que Neymar, justamente a estrela mais mimada da seleção, luta com todas as forças para dar o campeonato ao Brasil; os outros jogadores, com brilho variável, mostram garra equivalente.

De modo geral, os jogos estão muito mais emocionantes do que nas outras Copas, a média de gols tem sido alta, minha velha sensação de estar sendo iludido desaparece.

Meu método de prever o resultado dos jogos tem sido o mais aleatório possível. Acertei, pelo jeitão da coisa, o empate entre Brasil e México. Acertei Bélgica um, Rússia zero, com base na teoria de que a Bélgica é pequena demais para ir além de um gol.

Imaginei qual a melhor final, num sistema de cartas marcadas, para garantir uma vitória brasileira. Pois, convenhamos, o Brasil vai ter de ganhar de qualquer jeito.

Apostei então em Portugal —nada mais simbólico e estético do que isso, além de trazer pouco perigo a nosso país, com um embate entre Neymar e Cristiano Ronaldo para melhorar as coisas. Brasil e Portugal? Vê-se que não tenho muita moral para zombar do Lloyd’s e dos economistas do mercado financeiro.

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Tempo de viradas

Por Folha
18/06/14 02:00

Acompanho pouco o futebol, mas pelo que me lembro a seleção brasileira tinha uma coisa bem irritante alguns anos atrás.

Ficava enrolando, enrolando, sem conseguir marcar nenhum gol quase até o final do primeiro tempo. Claro que acabava dando chance para o adversário. Perdendo de um a zero, o Brasil se descontrolava; já não sabia mais o que fazer em campo.

Talvez se sentisse tão predestinado à vitória que nem se preocupava em atacar. Levando um gol, caía na realidade. Mas a realidade não surgia como algo a ser enfrentado; tratava-se de um labirinto, uma armação, um pesadelo. Tudo corria como se a realidade fosse uma coisa irreal.

Escrevo sem saber o resultado do jogo Brasil e México. Mas nesta Copa do Mundo o comportamento geral (não só dos brasileiros) parece bem diverso. Está predominando o espírito da “virada”: depois de um gol contra, a seleção venceu a Croácia.

De virada, a Costa Rica superou o Uruguai, a Suíça fez o mesmo contra o Equador, e a Costa do Marfim, o Japão. Os jogos melhoram muito.

Fora dos campos de futebol, talvez esteja acontecendo algo parecido. Veja-se a “virada” produzida nos meios de comunicação depois dos xingamentos a Dilma Rousseff.

Os candidatos de oposição enxergaram, inicialmente, uma oportunidade para se dizer afinados com o “sentimento popular”. Nas redes sociais, entretanto, o jogo virou com rapidez. Tornou-se reprovável, quase hediondo, xingar a presidente. Aécio e Eduardo Campos recuaram.

Coisa semelhante ocorreu durante as manifestações de junho. O jogo das opiniões foi movimentadíssimo. No começo, tudo se inscrevia na rotina dos pequenos protestos que causam grande congestionamento. A truculência da PM foi o gol contra que virou a partida em favor dos manifestantes. A radicalização dos black blocs decidiu o jogo.

Boa parte dessa velocidade se deve às redes sociais. Acelera-se o fluxo das opiniões “públicas” —no sentido de que não se confinam a um grupo de ouvintes a quem conhecemos pessoalmente, mas se espalham para indivíduos que nunca vimos na vida.

Não é impossível que, com isso, os habitantes do velho universo público —comentaristas de TV, articulistas de jornal, candidatos a cargos eletivos— sejam pegos no contrapé.

O caso de Arnaldo Jabor, em junho passado, foi o mais notório: começou chamando os manifestantes de playboys, burguesinhos ou coisa parecida, e teve de voltar atrás.

Não é que não tenha direito a mudar de ideia; os próprios fatos, aliás, mudavam de figura. O problema, para continuarmos no mundo futebolístico, é que quando o ataque desembesta tudo fica muito atrapalhado na hora de recuar.

Ao mesmo tempo, a multiplicação dos “opinadores” nas redes sociais impõe uma concorrência brutal. Como todos competem pela atenção, pode sair ganhando quem fala mais alto. Os comentários crescem em extremismo e estridência.

Há o risco de ter de recuar mais tarde. Não chega a ser dos mais sérios, porque, como há muita velocidade e quantidade de opiniões, ninguém se lembra direito nem do que leu nem do que escreveu.

Mas aí ocorre outro paradoxo. Como a internet funciona por ondas, um velho boato ou uma antiquíssima besteira renascem, meses depois de terem sido arquivadas. A mentira pode ter pernas curtas, mas volta sempre.
Há ao mesmo tempo uma hipertrofia da memória —tudo pode ser lembrado— e uma atrofia da memória, porque tudo será esquecido. Na política, Fulano denuncia um caso de corrupção, que equivale ao outro em que ele próprio estava envolvido.

Claro que isso sempre aconteceu no Brasil, mas a internet contribui como nunca para eliminar as distâncias de espaço e tempo.

Parecem paquidérmicos, em contraste, os esforços dos marqueteiros tradicionais para construir as campanhas de seus candidatos na propaganda do rádio e da TV. O “micromarketing” de twitters e postagens talvez não seja capaz de alterar as grandes tendências do eleitorado neste ano, mas não deve ser desprezado.

Uma última metáfora esportiva: como num jogo de basquete, os minutos finais contam mais que o jogo inteiro. A política vai ficando instantânea —e me arrisco a dizer que o futebol também. Todos correm muito, o gol contra de cinco minutos atrás já foi esquecido, e cada jogo parece constituir-se de noventa minutos de uma decisão por pênaltis. Só não sei se nas eleições há tantos craques assim.

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Vai ter de engolir

Por Folha
11/06/14 02:00

Peguei um voo para Brasília, na semana passada. O atraso de quase uma hora estava, digamos, dentro do normal.

Nem tão normal era o movimento de uma equipe de TV perto do avião. A fuselagem era o motivo: tinham-na pintado de verde e amarelo, e com um imenso logotipo ainda por cima. Toda a “aeronave” era um veículo de propaganda do guaraná Antarctica.

Ótimo. Um grupo de passageiros, não sei se pagos para animar a coisa, entusiasmou-se e tirou seus “selfies”, enquanto eu desconfiava que o atraso no embarque tinha algo a ver com isso.

Já na escadinha, topei com o aviso insultante.

Ao entrar neste avião, dizia o cartaz, você está concordando em ter sua imagem divulgada na próxima campanha publicitária do guaraná Antarctica.

Como assim? E se eu não concordasse? Deveria descer da escadinha, requerer minha bagagem de volta, fazer novamente o check-in e chegar atrasadíssimo ao meu compromisso?

Não havia alternativa, exceto a de entrar, com cara de poucos amigos, no elenco de extras que faria parte do anúncio a ser filmado.

Quanto custa alugar um avião e remunerar uma centena de falsos passageiros? A economia seria feita com a minha colaboração, imposta sem nenhuma cerimônia.

No corredor, profissionais já se espremiam com câmeras e aqueles microfones que parecem os chapéus de pelo de urso da guarda real britânica.

Menos mal: avisaram que, se alguém discordasse da filmagem, poderia avisar a aeromoça. Uma foto de mim teria de ser tirada, entretanto, para que na hora da edição cortassem o meu rosto.

Achei que seria mais fácil passar o resto da viagem com o dedo médio em riste, obtendo imediata supressão da face do meu descontentamento. Mas aí seria excesso de mau humor, e não fiz nada. Ah, terá pensado alguém mais oportunista do que eu, quem sabe depois dá para entrar com um processo…

Mas àquela altura só havia felizes no avião. É que o aviso de atar cintos tinha sido dado por uma figura simpaticíssima, o craque Cafu, da seleção de 2002. Vestido de comissário de bordo, foi ele quem serviu o “lanche especial” e, claro, o guaraná gratuito aos passageiros.

Enquanto isso, uma cantora de sucesso declarava seu amor a todos nós e ao Brasil, obtendo vivas e o-la-lás de todo mundo.

Eu estava em minoria, é claro. Isso nem sempre é um problema. Aprendi, contudo, como pode ser difícil o simples ato da resistência silenciosa. Dada a felicidade geral, vem logo a sensação de que o errado sou eu. Todos, de Cafu ao passageiro do meu lado, entregavam-se de boa vontade ao que acontecia.

A folia não durou mais que uma hora e meia. Eu não tinha de fazer nada, a não ser ficar em silêncio, sem olhar para os lados. Já era o suficiente para me sentir culpado: eu, o ranzinza; eu, o do contra; eu, o que ainda preserva crenças esquerdistas e não aceita entrar no jogo das agências publicitárias e das celebridades que mal conheço.

Imagine então alguém que, sozinho numa multidão, se recusasse a levantar o braço na saudação nazista. Ato minúsculo, e além disso inútil, numa situação daquelas. Percebi que talvez eu não conseguisse; a constatação me deu mais força, em todo caso, para manter a cara fechada naquele festival de brasilidade forçada.

Muito menos do que a questão dos gastos na construção de estádios e outras bobagens, acho que vem daí a minha antipatia com a “Copa de todas as Copas”. O que me incomoda é a sensação, presente nos governantes e empresas interessadas no evento, de que basta promover um evento exaustivamente que todo mundo vai ter de engolir.

As velhas manipulações da era Médici, com “o país que vai pra frente”, o “ritmo de Brasil grande” e o “ame-o ou deixe-o”, não passaram por uma renovação que lhes desse grande acréscimo de sutileza.

O slogan do “não vai ter Copa” parece, entretanto, uma recusa ao oba-oba programado; a recusa se mistura com outro sentimento, o medo de repetir-se o “maracanazo” de 1950.

A recusa se torna mais forte, sem dúvida, quando a propaganda deixa de ter origem puramente oficial, para se privatizar em grande escala. Um avião, de empresa privada, é privatizado por uma marca de refrigerantes, e o que houver de coletivo entre os passageiros se põe, gratuitamente, a seu serviço.

Quando vejo os que ainda dizem “não vai ter Copa”, não me animo muito. Mas pelo menos sinto que não estou sozinho.

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Isso passa

Por Folha
04/06/14 02:00

Li algumas vezes o artigo de Nuno Ramos, publicado quarta-feira passada na Folha, e continuo sem entender direito o que ele quis dizer.

Ele transmitiu, com espírito associativo de artista, as inquietações vagas de muita gente a respeito do futuro do país. Mas retratar sentimentos nebulosos é insuficiente —e o artigo termina com um lance retórico de alto impacto: “Suspeito que estamos fodidos”.

A graça da coisa está em preparar secretamente o leitor para esse estampido final. O texto inteiro acumulava uma série de “suspeitas”, com os parágrafos começando de maneira idêntica, para tratar das coisas mais variadas.

Nuno Ramos “suspeita” que a violência seja o tema principal da sociedade brasileira, encadeia isso a uma associação com a estreiteza das praias urbanas, com os shows de Luciano Huck, com a falência do tropicalismo, com a falsa intimidade da dupla do “Jornal Nacional”, com a dívida que temos em relação a “priápicos” e “tiozinhos de padaria”.

Expostas essas “suspeitas”, e outras mais, vem a conclusão (ao mesmo tempo inapelável, arbitrária e conjetural): “Suspeito que estamos fodidos”.

Não digo que estejamos ou não. Acho apenas que o efeito da última frase depende muito pouco do que veio antes. Ou melhor, sinto falta de encadeamento lógico no artigo —que acumula coisas como uma instalação.

Por certo, a violência na sociedade brasileira é e sempre foi muito grande. Uma das obras mais marcantes de Nuno Ramos, aliás, foi a instalação “111”, cujo motivo era o massacre dos presos do Carandiru, em 1992.

Estamos hoje pior do que em 1992? Ou 1971? Não sei dizer; a novidade, em nossa ampla história de massacres de presos e torturas, talvez seja a de que a violência se reveste de bandeiras políticas contraditórias.

Os generais negavam que houvesse tortura. O governador Fleury nunca disse que desejava a morte dos presidiários. Hoje, quando amarram um menor de rua pelado a um poste, há quem aplauda. À esquerda, os black blocs defendem atos violentos contra “a violência dos bancos”.

Essa nova “ideologização” da violência, com a defesa do linchamento imediato de delinquentes, ou a irrupção de vandalismo em movimentos que até a véspera eram pacíficos, teria então a ver com o que Nuno Ramos chama de “sentimento de agoridade” que assola o país.

Será por isso que ele “suspeita” da necessidade de “maior lentidão e inércia”? Será uma proposta política, uma proposta moral ou uma proposta estética?

Mas Nuno Ramos passa a outro assunto. Há prédios feios e desconectados da cidade (com o que concordo plenamente). Desconectados porque a classe média teme a violência? Mas por que acrescentar a ideia de que o Instituto do Patrimônio Histórico está aliado à especulação imobiliária?

Segue-se a “suspeita” de que há crueldade nos programas de TV. Mas isso é antigo, como Nuno bem sabe; ao lembrar-se de que Chacrinha jogava bacalhau na plateia há 40 anos, ele dá mais uma volta.

Os tropicalistas gostavam dos despautérios de Chacrinha, mas o tropicalismo talvez “tenha naturalizado nossa indústria cultural até um ponto sem retorno”. Seria agora o momento de “perceber o tiquinho de crueldade” que havia nos programas de auditório.

O que isso significa? Que antigamente seria aceitável flertar com a indústria cultural, e agora não mais?

Mais adiante, Nuno Ramos “suspeita” que o Plano Real e o Bolsa Família não estejam distantes do “imaginário desenvolvimentista” da ditadura militar. Sim? Não? Talvez?

Será, por fim, verdade que privatizaram “a risada e o pôr do sol”? Devemos reclamar do fato que o lado positivo da vida está a serviço de interesses comerciais? Será que devemos reivindicá-lo para nossa arte, nosso jornalismo, nossa política?

Não digo que, com este último suspiro, Nuno Ramos esteja propondo que se abandone o espírito crítico. É seu espírito crítico que parece não achar exatamente um alvo.

A melancolia corresponde a uma perda de objeto: algo entre 1970 e 2014, não sabemos, está ou estava certo ou errado, mas de todo modo o país não tem volta. A sociedade se acelera; Nuno Ramos quer mais lentidão.

Suspeito que seu mal-estar tenha a ver com a emergência de novos atores sociais; suspeito que tenha a ver com certa angústia pré-Copa do Mundo; com a desaceleração do crescimento; com a ressaca de junho; suspeito que a melancolia passa logo.

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‘Junho’

Por Folha
28/05/14 02:00

Para marcar o primeiro aniversário das manifestações de 2013, o documentário “Junho”, de João Wainer, terá lançamento simultâneo nos cinemas e na internet (via iTunes) no próximo dia 5.

O filme, que tem produção da “TV Folha”, haverá de produzir reações quase tão desencontradas quanto o próprio movimento. Vai aqui a minha opinião.

A esta altura, acho que o mais interessante a discutir seria não como tudo começou, mas por que não foi adiante.

Seria, talvez, o tema para outro documentário, não o que João Wainer quis fazer. Ele privilegiou as imagens vibrantes da rua. Na primeira metade do filme, a montagem é rapidíssima, procurando transmitir o clima das manifestações iniciais, com a câmera ao rés do chão.

O desafio, que “Junho” vence com inteligência, é manter-se equilibrado em meio a tantos solavancos. Mostra muito bem a revoltante violência da PM, sem deixar de ouvir, em pleno calor das passeatas, o que dizem os soldados.

Seguem-se imagens, gravadas bem de perto, dos saques a uma loja de eletrodomésticos —claramente propiciados, como diz um entrevistado da “Mídia Ninja”, pela intencional omissão das forças de segurança.

Mas é a partir daí —e quando alguns grupos tentam invadir a prefeitura, o Palácio dos Bandeirantes e, que sei eu, o Congresso, o STF, até o Itamaraty— que o documentário perde o foco.

Como tantas vezes acontece, uma minoria radicalizada termina desencadeando o naufrágio dos movimentos de transformação. Não penso apenas nos “black blocs”, que fizeram às autoridades o favor de tirar a população das ruas e legitimar a violência policial.

Ainda não foi esclarecida a suspeita de que forças ligadas ao crime organizado ou à própria polícia tenham tido sua parte nos estragos; no Rio de Janeiro, pelo menos, o quebra-quebra na Assembleia Legislativa levantou hipóteses nesse sentido.

O governador Sérgio Cabral, cujo histórico de papelões não se limitou ao mês de junho de 2013, não aparece no filme, centrado excessivamente em São Paulo.

No capítulo das omissões, acho importante lembrar que Dilma Rousseff não fez apenas, em seu discurso pela TV, uma explicação sobre os gastos da Copa do Mundo e uma conclamação à paz esportiva.

Lançou, e eu achava que estava certa, a proposta de uma Assembleia Constituinte para promover uma reforma política. A ideia foi bombardeada de todos os lados, sendo invocado o argumento, a meu ver puramente formal, de que uma Assembleia Constituinte não pode ter limitadas as suas funções. Bem, que se mudasse o nome então.

O fato é que tanto a camada governante quanto as próprias lideranças originais do movimento —focadas na questão das tarifas de transporte— perderam a oportunidade de dar uma saída política para o que aconteceu.

Ficou-se, como disse com bom humor o poeta Sérgio Vaz, entrevistado em “Junho”, num estado de “ejaculação precoce”: houve muito prazer nas preliminares, mas a transformação real não foi adiante.

De certo modo, o documentário de João Wainer acompanhou, na sua própria estrutura, esse desencanto. Torna-se mais lento e repetitivo a partir da segunda metade.

Não pelas razões corretas, todavia. O certo, na minha opinião, seria acompanhar o declínio do movimento, até a desmobilização quase completa. Em vez disso, “Junho” quis terminar numa espécie de alto astral.

O foco do documentário muda para a Copa das Confederações. Vemos o momento, por certo emocionante, em que toda a torcida canta sozinha o Hino Nacional, mesmo depois de terminada a gravação da banda sinfônica, na final do campeonato.

Cubra-se a tela, enfim, de multidões vestidas de verde e amarelo. Por mais que o comentarista Juca Kfouri assinale que o entusiasmo pelo futebol não abafa o descontentamento geral, o filme termina substituindo uma coisa pela outra.

É ao mesmo tempo uma retrospectiva das manifestações e um “esquenta” para a Copa do Mundo, a ser distribuído para uma plateia internacional.

Haveria tempo para falar de tudo? Para mostrar, ainda que o caso tenha ocorrido depois de junho, a morte do cinegrafista Santiago Andrade, atingido por um rojão? Para saber se algum policial foi punido pelas barbaridades cometidas?

Talvez se pudesse economizar, diminuindo um pouco a quantidade de comentaristas e politicólogos entrevistados no filme. Mas é hora deste comentarista dar o exemplo e ir parando por aqui.

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Leitura a jato

Por Folha
21/05/14 02:00

Ainda faço parte dos que leem jornal impresso e livros de verdade. Reconheço a utilidade dos iPads e kindles; acho bom, mas não uso.

No fundo, é o mesmo livro e a mesma leitura. No máximo, tem a página iluminada e o tamanho das letras ajustável.

A experiência talvez se altere muito no futuro, se der certo uma tecnologia que fiquei conhecendo na internet. Chama-se “Spritz”, e há uma demonstração em português no site da companhia.

Eles prometem acelerar loucamente a velocidade de sua leitura. Funciona do seguinte modo.

No papel ou no Kindle, a página fica parada: nossos olhos é que percorrem cada linha. Seguem, é claro, a velocidade de nossos músculos, de nossa concentração, de nosso tédio.

Com o Spritz, perdemos esse controle, ou essa vagareza. Nossos olhos não se movem. As palavras é que aparecem, uma a uma, como flashes. Uma/palavra/de/cada/vez. Só que com uma velocidade alucinante.

Segundo os inventores da tecnologia, 80% do tempo de nossa leitura se perde em paradinhas minúsculas do globo ocular quando percorre uma linha escrita. Com o olho imóvel, é possível ler livros a jato. As palavras surgem e somem sem que precisemos fazer nada.

Achei muito tentador, mas é possível prever alguns problemas. Uma coisa é ver um texto curto correndo desembestado em sua direção, numa escada rolante maluca fornecendo alimento para o cérebro.

Outra é ler um livro inteiro desse jeito; provavelmente o excesso de velocidade traz o preço de um cansaço em tempo recorde. Penso também nos efeitos sobre a memorização.

Será que, quanto mais rápido o aprendizado, também mais rápido será o esquecimento? Sinto isso quando assisto ao noticiário da televisão. Basta o locutor dizer “boa noite”, que me sinto incapaz de citar mais de dois ou três dos fatos relatados. Tudo passou diante de mim; nada se gravou.

Imagino que o Spritz irá transferir para a leitura o que acontece na TV. Favorece a passividade do olhar; seremos lidos pelo texto. Pode até ser conveniente, em todo caso, e não exclui outros tipos de leitura.

Vai no sentido oposto, por exemplo, da interação da palavra com a imagem, a foto, a ilustração —outra tendência de que os nostálgicos do “texto puro” reclamam bastante.

Em vez de se dar no espaço de uma página, o texto surge como enunciação abstrata num lapso curtíssimo de tempo. Deixa de ser “coisa” para ser visto como “evento”.

E, como as palavras ganham independência, desaparecem as linhas. Não é o pior; meu medo é que, com isso, deixemos também de ler as entrelinhas.

Ninguém está dizendo, em todo caso, que será interessante ler Proust ou Thomas Mann na tecnologia do Spritz. O objetivo há de ser o relatório, o artigo, a notícia, desde que você não precise anotar nada nem fixar no cérebro os dados principais.

É o caso da grande quantidade de coisas que temos de ler apenas “para saber do que se trata”. Com um aplicativo qualquer, tenho acesso ao texto de dezenas de jornais e revistas do mundo inteiro.

Foi num desses, aliás, que tomei conhecimento do tal Spritz. É a solução para a angústia diante de tanta coisa interessante para ser lida.

“Lida”? Vale substituir por um termo da moda: “Explorada”.

Associa-se a outra palavra com que topamos o tempo todo: “Experiência”. “Explore a experiência da Fast Fly Air Lines.” Fica melhor em inglês: “The McNought Experience”, “the Keystone Experiment”, “explore the new Dandruff Project”.

“Exploramos”, desse modo, novas “experiências”, dentro de algum “projeto”. Até na música clássica a moda pegou. Antes, um maestro gravava a integral das sinfonias de Beethoven. Agora, ele lança os “volumes” de seu “Beethoven Project”.

Percebe-se facilmente que está em jogo, na verdade, o oposto do que essas palavras sempre significaram. Um “projeto” não é uma agenda, um cronograma, mas algo que se pretende fazer sem saber se vai dar certo ou não.

“Explorar” um território era atividade que pressupunha algum tipo de risco; não se confunde com uma visita guiada, um “sightseeing”, um “test drive” (que nunca testou coisa nenhuma, aliás).

“Experiência” exige algum tipo de esforço, de troca pessoal, de perda e ganho subjetivo. Na sua versão contemporânea, “experience” é algo como “vivência”, ou menos ainda; trata-se de sentir passivamente o que nos é proposto.

Desse tipo de experiência, não somos os sujeitos, mas sim as cobaias. Vamos sobrevivendo, com os pelos eriçados e as patinhas correndo sem parar.

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