Imagine depois da Copa
14/05/14 02:00O tempo cria suas armadilhas na cabeça da gente. Nem sempre os relógios e calendários coincidem com o pulso e a expectativa da vida interior. Tenho sempre a impressão, a cada ano que passa, que o Natal está chegando mais cedo. Da Páscoa, então, nem se fale: um dia depois do Carnaval já parece que o teto dos supermercados está coberto de ovos de chocolate.
Vou sentindo o contrário com esta Copa do Mundo. Falta menos de um mês para o primeiro jogo, e aqui por onde moro são raríssimos os lugares que já ostentam decorações em verde e amarelo.
Pode ser que a minha expectativa esteja um pouco exagerada. Pior ainda, corro o risco de já ter escrito as mesmas coisas em alguma Copa anterior.
Claro que, com o Natal e a Páscoa, interessa promover ao máximo as compras antecipadas; os estabelecimentos comerciais não têm nada a ganhar antecipando a torcida pela seleção.
De resto, apostar no oba-oba parece a adesão ao governo e aos interesses privados; a vontade de ser manipulado anda bastante baixa no país. Antes tarde do que nunca, muita gente percebeu o quanto há de inútil, de farsesco, de incompetente em toda a iniciativa.
Não quero parecer mal-humorado; de resto, minha tendência é achar que tudo vai correr bem com a organização do evento. Em 1956, quando Juscelino resolveu construir Brasília, havia todos os motivos para achar que aquilo nunca ficaria de pé.
Também é possível que o inferno astral esteja acontecendo agora, com o máximo de manifestações e greves que for possível, antes de recair sobre todos o pálio auriverde do esquecimento.
Vejo coisas dando errado todo dia: terminais de aeroporto, caixas eletrônicos, transportes. Imagine na Copa, diz o senso geral. Não, a Copa não me preocupa. Tudo pode azedar depois.
A primeira hipótese, muito improvável, é que o Brasil seja desclassificado logo. Aí será inevitável a sensação de que todos esses estádios e esses gastos foram feitos “para a festa dos outros”. O que era desnecessário irá revelar-se estúpido.
Mas isso dificilmente acontecerá. Em 2002, quando sediava a Copa ao lado do Japão, a Coreia do Sul chegou ao quarto lugar, vencendo a Itália e a Espanha, entre outras seleções. O juiz anulou um gol da Espanha para ajudar.
Os “erros de arbitragem” não são poucos em ocasiões, digamos, tão cheias de interesse. Sendo impossível provar o que quer que seja em matéria de conspiração, professo de qualquer forma minha fé no apito salvador.
Passada a Copa é que veremos tudo voltar ao anormal. A sensação de farsa, que já pressentimos, haverá de vir mais forte.
Enquanto os cérebros publicitários dão ainda seus últimos retoques à euforia programada, basta um exemplo preliminar.
Uma rede de shopping centers anuncia a tocante iniciativa. “Vamos vestir o Brasil de verde e amarelo”, diz a campanha. Consiste no seguinte.
Primeiro, você faz doações de roupas velhas. Elas serão distribuídas a moradores de rua. Essa é a parte sentimental da coisa.
A parte verde e amarela acontecerá antes da distribuição. As roupas serão “customizadas” por uma equipe de costureiras. Mas o termo é incorreto.
Serão preparadas, não conforme o desejo dos indigentes, mas conforme o espírito cívico-futebolístico que se quer incutir na população. A indumentária canarinho será dada aos infelizes.
Em vez de pagar um miserável para que segure o dia inteiro a placa de um novo empreendimento imobiliário com nome francês, teremos uma massa de pobres coitados pintada com as cores nacionais, dando um toque de vibração aos covis debaixo da ponte e às entranhas de algum lixão irregular.
Que tal distribuir plásticos verdes e amarelos para substituir aqueles, tão pretos, dos acampamentos de sem-terra? O melhor seriam máscaras de Neymar, para esconder o sorriso dos desdentados.
A golpes de chicote, os labregos da Rússia czarista eram tangidos para demonstrar entusiasmo na coroação do novo soberano. É assim que começa a ópera “Boris Godunov”, de Mussorgski. O stalinismo aperfeiçoou a técnica, e a Coreia do Norte ainda arrasa nos desfiles militares.
Aqui, os “moradores de rua” receberão seus uniformes “customizados”. Aceitarão o que lhe derem, claro. Mas, como eu digo, é bom não adiantar muito o cronograma. Caso contrário, as roupas já estarão esfarrapadas antes das oitavas de final. E veremos que o mendigo, não o rei, é que está nu.