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Marcelo Coelho

Cultura e crítica

Perfil Marcelo Coelho é membro do Conselho Editorial da Folha

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Imagine depois da Copa

Por Folha
14/05/14 02:00

O tempo cria suas armadilhas na cabeça da gente. Nem sempre os relógios e calendários coincidem com o pulso e a expectativa da vida interior. Tenho sempre a impressão, a cada ano que passa, que o Natal está chegando mais cedo. Da Páscoa, então, nem se fale: um dia depois do Carnaval já parece que o teto dos supermercados está coberto de ovos de chocolate.

Vou sentindo o contrário com esta Copa do Mundo. Falta menos de um mês para o primeiro jogo, e aqui por onde moro são raríssimos os lugares que já ostentam decorações em verde e amarelo.

Pode ser que a minha expectativa esteja um pouco exagerada. Pior ainda, corro o risco de já ter escrito as mesmas coisas em alguma Copa anterior.

Claro que, com o Natal e a Páscoa, interessa promover ao máximo as compras antecipadas; os estabelecimentos comerciais não têm nada a ganhar antecipando a torcida pela seleção.

De resto, apostar no oba-oba parece a adesão ao governo e aos interesses privados; a vontade de ser manipulado anda bastante baixa no país. Antes tarde do que nunca, muita gente percebeu o quanto há de inútil, de farsesco, de incompetente em toda a iniciativa.

Não quero parecer mal-humorado; de resto, minha tendência é achar que tudo vai correr bem com a organização do evento. Em 1956, quando Juscelino resolveu construir Brasília, havia todos os motivos para achar que aquilo nunca ficaria de pé.

Também é possível que o inferno astral esteja acontecendo agora, com o máximo de manifestações e greves que for possível, antes de recair sobre todos o pálio auriverde do esquecimento.

Vejo coisas dando errado todo dia: terminais de aeroporto, caixas eletrônicos, transportes. Imagine na Copa, diz o senso geral. Não, a Copa não me preocupa. Tudo pode azedar depois.

A primeira hipótese, muito improvável, é que o Brasil seja desclassificado logo. Aí será inevitável a sensação de que todos esses estádios e esses gastos foram feitos “para a festa dos outros”. O que era desnecessário irá revelar-se estúpido.

Mas isso dificilmente acontecerá. Em 2002, quando sediava a Copa ao lado do Japão, a Coreia do Sul chegou ao quarto lugar, vencendo a Itália e a Espanha, entre outras seleções. O juiz anulou um gol da Espanha para ajudar.

Os “erros de arbitragem” não são poucos em ocasiões, digamos, tão cheias de interesse. Sendo impossível provar o que quer que seja em matéria de conspiração, professo de qualquer forma minha fé no apito salvador.

Passada a Copa é que veremos tudo voltar ao anormal. A sensação de farsa, que já pressentimos, haverá de vir mais forte.

Enquanto os cérebros publicitários dão ainda seus últimos retoques à euforia programada, basta um exemplo preliminar.

Uma rede de shopping centers anuncia a tocante iniciativa. “Vamos vestir o Brasil de verde e amarelo”, diz a campanha. Consiste no seguinte.

Primeiro, você faz doações de roupas velhas. Elas serão distribuídas a moradores de rua. Essa é a parte sentimental da coisa.

A parte verde e amarela acontecerá antes da distribuição. As roupas serão “customizadas” por uma equipe de costureiras. Mas o termo é incorreto.

Serão preparadas, não conforme o desejo dos indigentes, mas conforme o espírito cívico-futebolístico que se quer incutir na população. A indumentária canarinho será dada aos infelizes.

Em vez de pagar um miserável para que segure o dia inteiro a placa de um novo empreendimento imobiliário com nome francês, teremos uma massa de pobres coitados pintada com as cores nacionais, dando um toque de vibração aos covis debaixo da ponte e às entranhas de algum lixão irregular.

Que tal distribuir plásticos verdes e amarelos para substituir aqueles, tão pretos, dos acampamentos de sem-terra? O melhor seriam máscaras de Neymar, para esconder o sorriso dos desdentados.

A golpes de chicote, os labregos da Rússia czarista eram tangidos para demonstrar entusiasmo na coroação do novo soberano. É assim que começa a ópera “Boris Godunov”, de Mussorgski. O stalinismo aperfeiçoou a técnica, e a Coreia do Norte ainda arrasa nos desfiles militares.

Aqui, os “moradores de rua” receberão seus uniformes “customizados”. Aceitarão o que lhe derem, claro. Mas, como eu digo, é bom não adiantar muito o cronograma. Caso contrário, as roupas já estarão esfarrapadas antes das oitavas de final. E veremos que o mendigo, não o rei, é que está nu.

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O milagre das galinhas

Por Folha
07/05/14 02:02

De forma respeitosa, mas como sempre implacável, Hélio Schwartsman escreveu sobre os milagres atribuídos a João 23 e João Paulo 2º, na edição deste domingo da Folha.

É complicado, disse ele, envolver comissões de médicos e cientistas nos processos de canonização. Os cientistas têm de atestar que o feito, a cura, os prodígios atribuídos ao candidato a santo “não têm explicação natural”.

É aí que o bicho pega, diz o articulista. Uma coisa que hoje não tem explicação científica pode ser explicada amanhã. A ciência progride sempre, e o caráter provisório de suas conclusões não combina com a força, em tese irreversível, de uma decisão papal.

Tendo a concordar com Hélio Schwartsman, mas abro espaço para dificultar um pouco as coisas. A igreja também “progride”, ou pelo menos vai mudando, ainda que com grande lentidão.

Até o século 10, diz o “Dicionário Crítico de Teologia” (ed. Paulinas/Loyola), a santidade era declarada muito mais informalmente. Bastava a “aclamação do povo” ou o decreto de um bispo.

“A multiplicação desses cultos levou o papado a intervir”, diz o autor do verbete. As regras para canonizar alguém foram sendo formalizadas, e o processo se centralizou.

Sístoles e diástoles: depois de muita rigidez, o Vaticano resolveu “tornar mais ágil” o procedimento para a canonização . Foi iniciativa de João Paulo 2º, em 1983. Talvez por isso já estejamos com três santos brasileiros.

O mais curioso é que, no caso de José de Anchieta, nem milagre específico se pediu. É a “canonização equipolente”, que segue três requisitos. Exige-se que exista um culto antigo ao santo, que ele tenha fé e virtudes comprovadas, e que por fim haja uma “fama” contínua de milagres em torno dele. Não se investiga nenhum caso concreto.

Fico feliz assim. Para que escarafunchar tanto o eletrocardiograma de Fulano, o exame de sangue de Beltrana, quando as pessoas querem apenas rezar por um santo? Talvez seja até meio vulgar, no sentido de excessivamente físico e grosseiro, esse interesse “científico” pela santidade.

Quem explora o tema com muita sabedoria é George Bernard Shaw (1856-1950), na sua peça “Santa Joana”. Em plena Guerra dos Cem Anos, a donzela de Orléans insistia com os poderosos para ganhar uma armadura e lutar pela expulsão dos ingleses que invadiram seu país.

Enquanto os nobres hesitam, nenhuma galinha bota ovo. Dão-lhe as armas e a permissão; imediatamente surge o bastante para alimentar de omeletes um exército inteiro.

Milagre? Mas o que é um milagre? Um dos personagens da peça, o arcebispo de Reims, toma a palavra. Milagre, diz ele, é um acontecimento que produz fé.

Mesmo se for uma mistificação, uma mágica, um truque? O arcebispo é sutil. “Truques produzem decepções quando descobertos.” O verdadeiro milagre, não.

Não existe, nesse raciocínio, um milagre “puramente físico”. Se um par de asas nascesse agora nos meus ombros, eu poderia desfilar pela Redação da Folha ou, quem sabe, marcar presença no Dia do Orgulho Gay —e só aumentaria, com isso, a incredulidade geral.

O mundo dos prodígios, em que galinhas deixavam de botar ovo ou criavam dentes, está terminado; sabemos, aliás, que nunca existiu. A questão é que, nos primórdios do cristianismo, tudo era prodígio. Como a ciência não explicava nada, ou pouquíssima coisa, o âmbito do “sobrenatural” tinha uma extensão inimaginável para nós.

Depois de João Paulo 2º e João 23, corre o processo de canonização de Paulo 6º, ajudado por um caso médico que os especialistas não foram capazes de elucidar. A rigor, seguindo Bernard Shaw, não importa se, no futuro, a ciência explicar o que aconteceu.

O silêncio dos cientistas, sua falta de resposta, ajudou na “produção da fé”. Nesse sentido, jogo água no moinho de Hélio Schwartsman: a fé sobrevive no vazio da ciência, no silêncio da medicina.

Não sei se a igreja seria tão tola a ponto de esperar o aval dos cientistas para saber se uma coisa é milagre ou não. Quando se fala de cura “milagrosa”, imagino que o importante seja evitar os riscos, e o vexame de desmascaramento no dia seguinte.

Num paradoxo, a ciência é quem dá o “nihil obstat”, “nada proíbe”, à crença no milagre de quem quer que seja. Depois de feito o santo, pode vir o dilúvio; já não importa mais.

De todo modo, a igreja parece estar colocando as burocracias e exigências de lado. Se os milagres produzem fé, não é menos certo dizer que a fé produz santos como nunca.

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Dane-se o padrão Fifa

Por Folha
30/04/14 02:02

O jogo entre o Legião e o Atlético Ceilandense, pelo campeonato de futebol de Brasília, foi às dez da manhã de um dia útil.

No estádio Bezerrão, o público era de nove pessoas, rendendo um total de R$ 90. Talvez o público de Brasília se ressinta do fato de que o estádio não tem, digamos, um padrão Fifa.

Não faz mal; com vistas à Copa do Mundo, foi construída uma “arena” nova, o estádio Mané Garrincha, com capacidade para 71 mil espectadores. Só que, como alerta o jornal “Valor”, a média de público no campeonato estadual de Brasília, o “Candangão”, é de pouco mais de mil pagantes por jogo.

Continuo lendo o que escreve Patrick Cruz, em reportagem publicada na sexta-feira passada. Seu objetivo é mostrar a “face real” do futebol brasileiro.

Veja-se o caso do goleiro Adeilson, do União Cacoalense, de Rondônia. Ele chegou a passar nove meses sem time (e sem salário); arranjou-se como servente de pedreiro e entregador de folhetos publicitários.

Há também a história de um torcedor como Tibério Barret, torcedor do Auto Esporte de João Pessoa. Comemorava um gol de seu time contra o Sousa, no campeonato paraibano, quando caiu da arquibancada do estádio Almeidão —que desobedece ao padrão Fifa. Morreu de traumatismo craniano.

Personagens assim poderiam aparecer nas crônicas de Luiz Guilherme Piva, colaborador do blog de Juca Kfouri, que lança agora a coletânea “Eram Todos Camisa Dez” (ed. Iluminuras).

Ele se volta, assim como a reportagem do “Valor”, para o mundo dos campinhos humildes, dos meninos descalços e das bolas feitas de papel velho enrolado em fita crepe.

O assunto se presta a muita pieguice, mas Luiz Guilherme Piva sabe driblar esse perigo. Primeiro, porque é muito bom quando se trata de descrever as coisas com precisão.

“O campinho de terra, depois de uns dias de chuva, resseca no sol forte. Tem uns pedaços do barro que endurecem e ficam como lascas de ovo de páscoa. Outros pedaços cedem sob os pés e esguicham barro esmagado entre os dedos.”

Mesmo um garoto urbano, acostumado às quadras de prédio, pode reconhecer essas cenas da experiência simples, feitas ao mesmo tempo de precariedade e força, de fragilidade e abundância.

Não se está lamentando a falta de gramados perfeitos para as crianças do Brasil; que ninguém derrame lágrimas por isso. Trata-se, quem sabe, de lembrar que o jogo é mais importante do que o sucesso, e que a sensação da terra úmida nos pés é mais importante do que o jogo. Dane-se, portanto, o padrão Fifa.

Piva tem outra tática para evitar o sentimentalismo. Trata-se de reservar para o finalzinho do jogo a surpresa decisiva.

Tome-se, por exemplo, a história do camisa 5 que “morava e comia de favor numa oficina”, que tem “cabelo de estopa, pingando óleo”. É um miserável, que nunca se aventura além do meio de campo.

Serve, diz o narrador, como um escudo a proteger o seu gol. “Fora dali não tinha nada”, conclui o texto —mas acrescenta que, para o personagem, “talvez fosse uma bênção ter o que guardar”…

Em outro texto, Piva reflete sobre os saudosistas do futebol. Os saudosistas de hoje não são grande coisa, diz. Bons são os saudosistas de antigamente: “falavam de um futebol que eu não vi”.

Ele prossegue. Quanto mais passa o tempo, mais extraordinárias as jogadas. Vem o arremate. “Fica cada vez mais provável que o seu time venha, enfim, a vencer aquela decisão perdida, dolorosamente, em algum momento da sua infância.”

Um comentário final. É curioso que, num país ébrio de ufanismo futebolístico, seja tão forte a paixão pela derrota —pelo jogador fracassado, pelo time de várzea, pelos anos sem conquista de campeonato estadual.

Talvez porque, ao contrário do famoso lema, acreditemos que “o povo unido sempre será vencido”. A esquerda viciou-se na derrota.

Assim, rejeitamos o espetáculo global, os bilhões de dólares em jogo; não serão nossos. Há alguma usurpação nisso tudo.

Simpatizo com a atitude, mas vejo seus limites. Apesar das misérias da várzea, é provável que nunca tenhamos tido tantos times e jogadores como hoje em dia. De todo modo, não me deprimo com quem está na quarta divisão; ainda que a gastança com a Copa seja uma estupidez, o problema da injustiça se resolve em outro jogo, em outro campo.

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Selfies

Por Folha
23/04/14 03:00

Muita gente se irrita, e tem razão, com o uso indiscriminado dos celulares. Fossem só para falar, já seria ruim. Mas servem também para tirar fotografias, e com isso somos invadidos no Facebook com imagens de gatos subindo na cortina, focinhos de cachorro farejando a câmera, pratos de torresmo, brownie e feijoada.

Se depender do que vejo com meus filhos —dez e 12 anos—, o tempo dos “selfies” está de todo modo chegando ao fim. Eles já começam a achar ridícula a mania de tirar retratos de si mesmo em qualquer ocasião. Torna-se até um motivo de preconceito para com os colegas.

“Fulaninha? Tira fotos na frente do espelho.” Hábito que pode ser compreensível, contudo. Imagino alguém dedicado a melhorar sua forma física, registrando seus progressos semanais. Ou apenas entregue, no início da adolescência, à descoberta de si mesmo.

A bobeira se revela em outras situações: é o caso de quem tira um “selfie” tendo ao fundo a torre Eiffel, ou (pior) ao lado de, sei lá, Tony Ramos ou Cauã Reymond.

Seria apenas o registro de algo importante que nos acontece —e tudo bem. O problema fica mais complicado se pensarmos no caso das fotos de comida. Em primeiro lugar, vejo em tudo isso uma espécie de degradação da experiência.

Ou seja, é como se aquilo que vivemos de fato —uma estadia em Paris, o jantar num restaurante— não pudesse ser vivido e sentido como aquilo que é.

Se me entrego a tirar fotos de mim mesmo na viagem, em vez de simplesmente viajar, posso estar fugindo das minhas próprias sensações. Desdobro o meu “self” (cabe bem a palavra) em duas entidades distintas: aquela pessoa que está em Paris, e aquela que tira a foto de quem está em Paris.

Pode ser narcisismo, é claro. Mas o narcisismo não precisa viajar para lugar nenhum. A complicação não surge do sujeito, surge do objeto. O que me incomoda é a torre Eiffel; o que fazer com ela? O que fazer de minha relação com a torre Eiffel?

Poderia unir-me à paisagem, sentir como respiro diante daquela triunfal elevação de ferro e nuvem, deixar que meu olhar atravesse o seu duro rendilhado que fosforesce ao sol, fazer-me diminuir entre as quatro vigas curvas daquela catedral sem clero e sem paredes.

Perco tempo no centro imóvel desse mecanismo, que é como o ponteiro único de um relógio que tem seu mostrador na circunferência do horizonte. Grupos de turistas se fazem e desfazem, há ruídos e crianças.

Pego, entretanto, o meu celular: tiro uma foto de mim mesmo na torre Eiffel. O mundo se fechou no visor do aparelho. Não por acaso eu brinco, fazendo uma careta idiota; dou de costas para o monumento, mas estou na verdade dando as costas para a vida.

Não digo que quem tira a foto da cerveja deixe de tomá-la logo depois. Mas intervém aí um segundo aspecto desse “empobrecimento da experiência”. Tomar cerveja não é o bastante. Preciso tirar foto da cerveja. Por quê?

Talvez porque nada exista de verdade, no mundo contemporâneo, se não for na forma de anúncio, de publicidade. Não estou apenas contando aos meus seguidores do Facebook que às 18h42 de sábado estava num bar tomando umas. Estou dizendo isso a mim mesmo. Afinal, os meus seguidores do Facebook, sei disso, não estão assim tão interessados no fato.

Não basta a sede, não basta o prazer, não basta a vontade de beber. Tenho de constituí-la como objeto publicitário. Preciso criar a mediação, a barreira, o intervalo entre o copo e a boca.
Vejam, pergunto a meus seguidores inexistentes, “não é sensacional?”. Eis uma cerveja, a da foto, que nunca poderá ser tomada. A foto do celular imortaliza o banal, morrerá ela mesma em algum arquivo que apagarei logo depois.

Não importa; fiz meu anúncio ao mundo. Beber a cerveja continua sendo bom. Mas talvez nem seja tão bom assim, porque de alguma forma a realidade não me contenta.

A imagem engoliu minha experiência de beber; já não estou sozinho. Mesmo que ninguém me veja, o celular roubou minha privacidade; é o meu segundo eu, é a minha consciência, não posso andar sem ele, sabe mais do que nunca saberei, estará ligado quando eu morrer.

Talvez as coisas não sejam tão desesperadoras. Imagine-se que daqui a cem anos, depois de uma guerra atômica e de uma catástrofe climática que destruam o mundo civilizado, um pesquisador recupere os “selfies” e as fotos de batata frita.

“Como as pessoas eram felizes naquela época!” A alternativa seria dizer: “Como eram tontas!”. Dependerá, por certo, dos humores do pesquisador.

coelhofsp@uol.com.br

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O país em marcha

Por Folha
16/04/14 03:02

Reconheço que, como todo articulista que se preze, às vezes sou bastante ranheta. Mas a culpa não é só da profissão: a rabugice vem de família.

Eu tinha 11 anos na Copa de 1970, e me lembro bem quando ouvi em casa, pela primeira vez, a célebre marchinha de Miguel Gustavo sobre os não sei quantos milhões em ação.

Na hora deu para perceber que a música era empolgante. Mas o comentário, lá em casa, tendia para o negativo. “Hum. Isso aí vai encher.”

Nem tanto. Sem ser musicólogo, acho que um dos segredos daquela melodia é que, um pouco como a música clássica, e principalmente como o próprio hino nacional, tudo procede por acumulação.

Sente-se isso até naquela introdução feita nas cordas (ou num coro de assobios, o que fica melhor ainda). Em vez de uma ideia curta, terminada em si mesma, a primeira frase da música acaba em suspenso, de forma quase interrogativa. A segunda frase, em vez de dar uma resposta rápida, aumenta a intensidade da pergunta inicial.

O suspense continua, porque a terceira frase repete o motivo por três vezes, como numa escadinha que cumprisse subir correndo, até a pausa que permite a entrada do coro.

Além disso, a música começa no grave e vai rumando certeira até o agudo. Quando chegamos ao refrão (“pra frente Brasil, Brasil, salve a seleção”), o desenho da melodia é descendente, e, se abstrairmos o ritmo, quase triste, em tom menor.

Nada é tão cansativo quanto o triunfalismo, e sem dúvida a gente se cansa menos quando a mensagem tende para o ambíguo e para o complexo. Um hino futebolístico ao mesmo tempo animado e triste, eufórico mas cheio de tensão, está sempre pedindo para ser ouvido de novo, porque dentro de nós seu recado não se absorveu de todo.

Ouvi algumas marchinhas —se é que vale o termo— preparadas para a Copa de 2014. Do hino oficial da Fifa, nem é bom falar.

“Vamos ter de ganhar na bola, porque na música já fomos derrotados”, disse o crítico Tárik de Souza a respeito de “We Are One”, cujos intérpretes oficiais são Pitbull, Jennifer Lopez e Claudia Leitte.

De fato, trata-se de uma mistureba latina com rap, mais histérica do que animada, e que ninguém vai sair cantando. Mas é preciso levar em conta que se trata da voz oficial da Fifa, ou seja, não serve para animar a torcida de nenhum país em particular. Seu objetivo é celebrar a união de todos os povos, o congraçamento esportivo, esse tipo de conversa.

“Vamos espalhar felicidade, é a Copa de todo o mundo”, aprova Gaby Amarantos, classificada na Wikipedia como cantora de “tecnobrega”, num belo clipe da Coca-Cola. Como se trata de entidade tão internacional quanto a própria Fifa, a ideia da união entre 7 bilhões de torcedores é o que prevalece.

Mas há toques interessantes. Primeiro, porque as imagens procuram fugir do estereótipo das praias, dos biquínis e do verde-e-amarelo. Vemos garotos fazendo skate entre os pilotis de Lúcio Costa e uma mulata que, em vez de se oferecer aos gringos, é ela própria uma turista tirando fotografias da cidade.

Há outra ideia simpática nessa intervenção multinacional: embora o ufanismo esportivo esteja banido (é “o mundo inteiro dando um show”), anuncia-se que nós, brasileiros, vamos “juntar todo mundo para batucar”. Alguma influência verde-e-amarela será benéfica às outras nações.

Nem tudo, entretanto, alcança tamanho equilíbrio químico no politicamente correto. Não sei mais em que vídeo do YouTube encontrei um grupo de rap no extremo oposto. Fala-se da bandeira verde, amarela, branca e azul. A rima é com azul. “Quem não for do Brasil vai tomar…” Abre-se um silêncio na trilha sonora, a ser preenchido pelo coro da torcida.

Entre a habilidade internacional e a agressividade periférica, há naturalmente espaço para a velha cultura brasileira nas músicas da Copa. O envolvente “jingle” da rádio CBN absorve o espírito de improvisação que caracterizou os preparativos do evento.

“De chaleira, de calcanhar,/ de bico ou trivela/ o importante é a bola entrar/ pra festa ser verde-e-amarela”. Houve tempo em que exigíamos mais, ou esperávamos mais, da seleção.

“Só faz gol de placa”, reage o sambista Arlindo Cruz, no simpático “Tatu Bom de Bola”. “Vai ferver”, canta Ivete Sangalo. Verso perigoso: será que ouvi “vai perder?”

Mas é a minha rabugice que volta. Na falta de melhor música, fico em silêncio.

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Economias

Por Folha
09/04/14 13:38

Vejo com simpatia os esforços do governo para reduzir o consumo de água. Sou dos que usam o jato da torneira como uma espécie de escovão, admirando a capacidade de um puro líquido, se pressionado a contento, na remoção das mais incrustadas cascas.

Mudar de hábitos nem sempre é tão difícil. O cinto de segurança virou rotina sem maior problema. Quanto ao uso do fio dental, faço progressos.

Só que a mudança nem sempre depende de uma conversão interior. O mundo externo, e seus objetos corriqueiros, também precisam colaborar.

Tome-se o caso da água. Tudo poderia ser mais fácil se eu soubesse, por exemplo, onde ficam as tampinhas do ralo. Imagino que em países mais econômicos, como a França ou a Inglaterra, não pareça especialmente porco deixar a água usada no fundo da pia, como numa espécie de aquário turvo, servindo para tirar o grosso da sujeira.

Contaram-me —mas a história vem dos anos 1970— que, na Inglaterra, a mesma água da banheira era usada pela família inteira em seu banho semanal. A estudante brasileira, que morava na mesma casa, recebeu a especial cortesia de ser a primeira a tomar banho.

Nunca chegaremos a tanto, mas temos economias intrigantes. Pródigos no uso da água, temos uma atitude supersticiosa com relação à pasta de dente. Não conheço brasileiro que não faça verdadeiras ginásticas digitais para extrair de um tubo exausto seu último dejeto.

Deve ser herança do tempo em que esses tubos eram de alumínio. Quando mal espremidos, metade de seu conteúdo se desperdiçava. Hoje em dia, com a embalagem plástica, quantidades desprezíveis, num valor que estimo em frações de centavo, ficam guardadas no tubo que chega ao fim.

Não nos conformamos; queremos extorquir da pasta seu último tesouro. Por outro lado, só raríssimas vezes pude ver uma caneta Bic com a carga usada até o fim.
Hábitos que mudam ou não mudam associam-se às economias que fazemos e não fazemos. Digo isso pensando no mal-estar da classe média, que se reflete, provavelmente, na queda de popularidade do governo Dilma Rousseff.

Por que não cairia?, pergunta o leitor, com razão. As obras não andam, o país parece aquele tubo de pasta de dente do qual não sai mais quase nada, e para falar em outro tipo de extração de material precioso, o caso da Petrobras atinge vergonhosamente a imagem de Dilma Rousseff.

Acrescento, contudo, um fator de impopularidade que valeria pesquisar melhor. À minha volta, vejo dois tipos de pessoas bastante enforcadas nas finanças domésticas.

Em primeiro lugar, há os brasileiros que devem (no cartão, no cheque especial), e desses nem é preciso falar. Desconfio que sejam em muito maior número do que atestam as estatísticas sobre inadimplência. Temo pelo dia em que uma grande bolha, uma grande maquiagem, um grande não sei quê seja revelado, mas não tenho nenhuma condição de prever acontecimentos desse tipo.

Em segundo lugar, existem os brasileiros que não devem dinheiro. Não sei quantos chegam a ter seus investimentozinhos. O que acontece com essa parcela da população?

A queda nos juros (que beneficia os devedores mas não muito), por outro lado prejudica os poupadores. A inflação não caiu; e volto ao meu raciocínio sobre os hábitos do cotidiano.

A classe média paga, além dos impostos de que reclama, uma série de “impostos brancos”, que vão desde os gastos com equipamentos de segurança do condomínio até o transporte escolar.

Essas coisas podem ir aumentando de preço de forma traiçoeira (penso nos planos de TV a cabo em que você paga pouquíssimo nos primeiros meses e que depois sobem a um patamar real).

Do salário das empregadas domésticas ao gasto com estacionamento do carro, parece que a classe média está chegando ao ponto em que sua disponibilidade financeira impõe uma mudança de hábitos ainda difícil de encarar.

É tudo uma hipótese, e não tenho como calcular sua amplitude. Para a metade de cima da sociedade, é possível que os juros gloriosos do tempo de Malan, de Meirelles e de Palocci tenham dado uma ajudinha que não existe mais.

Se há os enforcados pelas dívidas, também na outra ponta é possível que a corda aperte no pescoço. Por essas e por (muitas) outras, o governo Dilma é que vai ficando de língua de fora. Resta saber o quanto tem para gastar até as eleições. Lembrando que não há tanta água assim para passar debaixo da ponte.

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O outro problema

Por Folha
02/04/14 03:02

Um escritor policial da velha guarda chamado John Dickson Carr (1906-1977) era especialista nos chamados “mistérios do quarto fechado”. A vítima é encontrada morta, no seu gabinete de estudos, sem sombra de arma nem pegadas do assassino por perto.

Pior que isso, o lugar estava trancado por dentro; nenhum sinal de que janelas ou portas tivessem sido arrombadas. Como o assassino entrou? Como saiu? Como matou o milionário?

Crimes assim perfeitos terminavam resolvidos pelo obeso dr. Fell, que numa tarde de verão manteve estranha conversa com um homenzinho “grave e sincero”. O homenzinho conta ao detetive um crime complicadíssimo, no gênero “quarto fechado”.

Poucas páginas são necessárias para que o dr. Fell reconstrua mentalmente todo o mecanismo do assassinato. A vítima havia se encostado na janela, no ponto mais alto da mansão. Levara um binóculo aos olhos.

Dentro do binóculo, um mecanismo preparado anteriormente fizera saltar uma flechinha especialmente pontiaguda, que penetrou por um olho da vítima até perfurar-lhe o cérebro. O detetive prossegue em seus raciocínios, e conclui que o assassino tinha sido o próprio homenzinho que acabava de lhe contar o caso.

Vem dessa circunstância o título do conto, “O Outro Problema”. Por que, afinal, o próprio assassino procurou o detetive para lhe propor o enigma? Talvez quisesse se certificar de que ninguém, nem mesmo o dr. Fell, seria capaz de desvendar o crime.

“Ele é um exibicionista, um sádico”, disse o advogado José Carlos Dias a respeito do coronel Paulo Malhães, depois do depoimento em que este admitiu à Comissão Nacional da Verdade as torturas e assassinatos que cometeu durante a ditadura militar.

Disse ter matado “tantas pessoas quanto foram necessárias”; não soube se lembrar quantas torturou, só que foram “muitas”; contou que quebrava os dentes e cortava os dedos dos cadáveres, para impedir que fossem identificados.

Fico pensando, em todo caso, no “outro problema”, para usar o título daquele conto policial. O que leva um ex-torturador a comparecer diante da Comissão?

Imagino que certo machismo militar se misture à teimosia de suas convicções políticas. “Não sou homem de me acovardar; vou à Comissão e enfrento essa comunistada.” De resto, está afastado o perigo de que sejam presos depois do que disserem.

A construção mental vai além disso, entretanto. Ao longo de muitas décadas, o torturador teve tempo para repetir a si mesmo o que já dizia ao fim de cada sessão de interrogatório: estou cumprindo o meu dever, estou salvando o país da ameaça comunista.

É difícil, sem dúvida, imaginar que alguém fosse capaz de convencer-se disso depois de ter feito o que o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra fez com Maria Amélia Teles, segundo esta contou à Folha.

Ustra levou os dois filhos de Maria Amélia, Edson e Janaína, à sala onde ela estava sendo torturada, junto com o marido. As crianças tinham 5 e 4 anos de idade. “Mamãe, por que você está azul?”, perguntou a criança para Maria Amélia, coberta de hematomas.

O ex-dirigente do DOI-Codi silenciou na Comissão da Verdade quando perguntado sobre torturas, mas repete o que todos os personagens da repressão dizem sempre. “Lutávamos pela democracia.”

A contradição, embora salte aos olhos, é das mais comuns. Para defender a democracia, faço uma ditadura. Para que o comunismo não acabe com os direitos humanos, acabo eu com os direitos humanos.

Nós matamos, mas “eles mataram também”. Até aí é fácil de ir. Não sei se algum torturador chegou a afirmar que “eles torturavam também”.

“Era uma guerra”, dizem os generais e os civis mais graduados do sistema, como se ignorassem que até nas guerras vale a Convenção de Genebra. Nós não inventamos a tortura, dizem outros. A Gestapo também usava… Por que tanta perseguição contra nós?

Uma frase do coronel Malhães acrescenta novo ingrediente a esse espetáculo de cinismo, de deboche e impunidade. “A tortura é um meio”, afirmou aos membros da Comissão. “Se o senhor quiser saber a verdade, tem que me apertar.”

Talvez seja essa a maior provocação. “Não conto tudo o que sei a respeito da ditadura. Vocês terão de me torturar para saber. Torturem-me. Mostrem que vocês são no fundo iguais a mim. Só desse modo conseguirei provar que eu estava certo ao fazer o que fiz.”

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Corpos em desalinho

Por Folha
26/03/14 03:02

Quem visitar o Instituto Tomie Ohtake até o dia 30 de março pode experimentar um bom susto. Digo melhor: um susto bom.

Basta entrar numa sala muito escura, no fundo de alguns corredores nada iluminados, tomada por uma espécie de som eletrônico, um bordão grave como o de um transformador elétrico sobrecarregado.

Calma. Nenhum monstro ou grito súbito pega de surpresa o espectador. O susto é bom: não estamos dentro de nenhum parque temático de Halloween. Uma parede inteira está ocupada por grandes fotos de corpos nus, iluminadas como na tela do computador mais nítido.

Cada imagem mostra, juntos ou distantes, os corpos de um homem e de uma mulher. Serão, talvez, uma dúzia de retratos diferentes, mas todos com o mesmo tipo de ângulo e de luz. Vemos, na verdade, detalhes de corpos: pés, canelas, panturrilhas, captados bem de perto e um pouco distorcidos.

O olhar passa de foto em foto, identificando aos poucos a diferença e a semelhança entre cada uma delas. Aí acontece o susto. O rabo do olho percebe, sem que o cérebro se dê conta inteiramente, que algo mudou naquela parede.

Uma foto (não a que estávamos olhando) começou a se mexer. Procuramos, na parede, qual foi a imagem que deu início ao movimento; mas enquanto isso outras já se mexeram também, caindo como um dominó lentíssimo de corpos até chegar nos retratos ao rés do chão. Tudo, em seguida, imobiliza-se de novo.

Susto bom, porque um movimento de arranjo e desarranjo apareceu do nada, sem aviso, conforme um comando invisível do computador. O espectador se pergunta o que está acontecendo, nada lhe explicam, e só depois de terminado o movimento é possível perceber que todo o ambiente —a escuridão, o som eletrônico— construía um suspense que, curiosamente, não punha nossos nervos em estado de tensão.

“Only You”, mostra-instalação com fotos de Leonardo Kossoy, apresenta nessa sala uma espécie de balé fotográfico. O encantamento visual dessas imagens ritmadas não precisa de palavras para ser fruído.

Mas a sala do painel computadorizado corresponde ao ponto culminante de uma história que começou a ser contada bem antes na exposição. Para fazer as fotografias de “Only You”, Leonardo Kossoy convidou um ator e uma atriz, nenhum dos dois especialmente notável pela beleza corporal.

Com exceção das cenas iniciais, que parecem tiradas de algum filme dos anos 1950 em technicolor, com o homem e a mulher se desentendendo e se entediando numa luxuosa mesa de jantar, todas as outras fotografias mostram o casal sem roupa nenhuma.

A exposição assume um caráter de “tema e variações”: a nudez do casal pode surgir emaciada e azul, como num quadro de El Greco. Outras vezes, um negror de Goya ameaça engolir os dois. Uma parede inteira é ocupada por suas figuras miniaturizadas, quase redondinhas, reluzindo como o ouro de Rembrandt contra camadas de púrpura e ferrugem.

Juntos ou separados, os dois atores nunca se comunicam. Podem espremer-se, encaixotados num espaço mínimo: não tomam conhecimento um do outro. Podem estar lado a lado, cada qual empurrando como Sísifo as pedras invisíveis de seu próprio cotidiano, de suas próprias neuroses: os olhares não se cruzam.

Podem mover-se, em cenas filmadas; podem ter sido captados em plena dança, com o cabelo e as mãos indistintas como numa névoa; seus gestos não convergem, sequer expressam intenções de fuga ou de separação. Numa absoluta igualdade de condições, no puro despojamento de seus corpos humanos, estão apenas lado a lado. Quanto mais nus, menos são capazes de se ver.

A sequência das salas se apresenta ao espectador quase como um romance, em que a vida de um casal prossegue às cegas, num clima que não é o do conflito, o do desentendimento, mas o da coexistência num labirinto sem paredes, em que ninguém se encontra.

Nem tudo está perdido, entretanto. Nas últimas imagens de “Only You”, a nudez desaparece, os corpos do homem e da mulher mal se percebem. Cobre-os uma nata branca, uma pátina cremosa de tecido, uma nuvem de lençóis hialinos. Adivinhamos, mais do que vemos, dois rostos que pela primeira vez parecem felizes.

Num poema célebre, Manuel Bandeira disse que “os corpos se entendem”, mas que “as almas, não”. Sem dúvida, os últimos tempos depositaram um excesso de energias e de esperanças na apresentação do corpo. A valorização da nudez representa uma aposta correta, mas custosa, numa vida mais natural, menos reprimida, mais exposta aos outros.

Leonardo Kossoy parece enfatizar o oposto disso tudo. Na nudez de seus personagens, prevalece a incomunicação, o peso do convencionalismo, das prisões de cada um. A intimidade se recupera, todavia, quando constrói o espaço incorpóreo da escuridão, do recolhimento e do silêncio.

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Mocinhos e bandidos

Por Folha
19/03/14 03:02

“Alemão”, de José Eduardo Belmonte, é um filme que merece ser visto e revisto. Fiquei com uma impressão errada da história quando vi o trailer: dava-se tanto destaque à presença de Antonio Fagundes no elenco (como o delegado que organizava a célebre ocupação do complexo de favelas carioca), que o compromisso em retratar o “mundo real” saía um pouco prejudicado.

O problema volta e meia acontece quando se recorre a atores muito famosos da televisão. Por melhores que sejam, fica esquisito quando encarnam personagens reais. Lembro-me de um filme sobre Canudos, em que Antônio Conselheiro era ninguém menos do que José Wilker.

Arranjaram uma barba preta para ele, que parecia feita com um escovão de piaçava. Podia ser o Antônio Conselheiro mais perfeito do mundo, mas como espectador eu não conseguia deixar de perguntar: “Mas o que é que o José Wilker está fazendo de batina e barba postiça?”.

De todo modo, Antonio Fagundes nem aparece tanto assim no filme. Numa notável mistura entre realidade e ficção, o roteiro situa o delegado procurando controlar, da distância do gabinete, uma investida perigosíssima contra Playboy, o chefe do tráfico da favela, vivido por Cauã Reymond.

Enquanto isso, cinco policiais infiltrados na favela têm de sobreviver escondidos, por longos dias, até o momento em que o Exército finalmente possa invadir o império de Playboy. O tráfico já conhece a identidade desses informantes; todos os recursos são utilizados para expulsá-los do esconderijo. Já nessa situação se pode ver muito da arte do roteirista.

Em vez de mostrar o traficante cercado pela polícia, “Alemão” mostra os policiais cercados pelos traficantes. A salvação só pode vir “do céu”, o que se representa pelo ruído dos helicópteros sobrevoando o morro.

Playboy aparece quase sempre ao ar livre, tomando banho de piscina no terraço de seu “apartamento de cobertura” em pleno coração da favela. As pesadas correntes de ouro que —como seus comparsas— carrega consigo simbolizam ao mesmo tempo os seus hábitos de ostentação e o fato de estar “com a corda no pescoço”, como se diz.

Outra corrente de ouro —essa bem modesta e fininha— passará das mãos de um jovem policial para outros personagens, em momentos de grande impacto emocional da história. Mas o núcleo dramático do filme está nos conflitos, nas diferenças extremas de personalidade, nas alternâncias de medo e inatividade que marcam o convívio dos policiais escondidos.

Tem-se tudo, aqui, para fazer um excelente filme com baixo orçamento, misturando suspense e drama psicológico. “Alemão” atinge esse objetivo com pulso e velocidade.

Em vez de considerar os policiais em bloco, o roteiro acaba distinguindo tipos sociais e psicológicos muito distintos. Cada um desconfia dos outros: quem terá denunciado sua identidade ao tráfico?

Um dos informantes é garoto mestiço da própria favela. Como não pensar que foi ele quem se aliou, no sufoco, ao tráfico? O outro é gorducho, medroso e dissimulado. Um terceiro é inexperiente, imbuído de ideais e cultura universitária. O quarto é um “tira” da velha guarda, capaz de bater e fuzilar sem hesitação. O quinto, mais sedutor, aposta em táticas de longo prazo.

O problema é que, numa situação dessas, cada um desses estilos pode se revelar o mais adequado num determinado momento, e um desastre total minutos depois. “Alemão” joga magistralmente com essa ambiguidade.

Há uma ambiguidade maior cercando o filme, entretanto, que talvez seja mais difícil de resolver.

Pouca gente há de discordar que as UPPs foram uma coisa muito boa. “Alemão”, assim como o belíssimo documentário “Morro dos Prazeres”, de Maria Augusta Ramos, não tem como não deixar de mostrar o quanto de necessário, de correto e de heroico foi feito para tirar as comunidades do domínio do tráfico e das milícias.

Fazer um filme “a favor”, entretanto, nunca é fácil. O caso Amarildo surgiu exatamente na época em que “Morro dos Prazeres” era lançado em São Paulo. “Alemão” termina com um discurso de Lula, anunciando a vitória sobre o tráfico na favela. O filme já devia estar pronto quando ocorreram as manifestações de junho e os episódios de violência policial que as acompanharam. Cuidou-se, assim, de acrescentar cenas da repressão enquanto passam os créditos do filme.

Hoje, a maré da opinião pública já virou novamente. Os black blocs atraem a antipatia que, meses atrás, se voltava contra os excessos da PM e as insensibilidades de Sérgio Cabral. O tráfico volta a atacar no Complexo do Alemão.

Esses filmes são muito bons. Mas a realidade que retratam certamente tem a forma de um seriado —que está longe de ter chegado à sua última temporada.

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Mensalão, um rápido balanço final

Por Marcelo Coelho
15/03/14 19:46

Esta terá sido (espero) minha última coluna sobre o julgamento. Saiu na “Folha” de hoje.

Contas feitas

Para quem esperava penas rigorosíssimas, de preferência a cadeira elétrica para os principais acusados, o final do julgamento do mensalão foi um bocado decepcionante, ou ao menos anticlimático.
Verdade que as decisões recentes do Supremo Tribunal Federal (inocentando José Dirceu do crime de quadrilha e livrando João Paulo Cunha do de lavagem de dinheiro) não podem ser consideradas absurdas.
Deixemos de lado a polêmica, já bastante explorada, do conceito de “quadrilha” –no qual o senso comum e a definição jurídica parecem ir em direções opostas. Não é despropositado dizer que, quando a mulher de um corrupto saca o dinheiro da corrupção no banco e o leva para casa, seria forçado considerar que houve lavagem.
Com paciência, o ministro Marco Aurélio Mello leu o texto que define o crime. Trata-se de “ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade” do dinheiro ou dos bens resultantes de atividade criminosa. João Paulo Cunha não elaborou nenhuma ficção, do tipo bilhete premiado na loteria, para justificar seus proventos. Simplesmente abocanhou-os, com a intermediação da própria esposa.
O plenário, graças à nova maioria composta por Teori Zavascki e Luís Roberto Barroso, . aceitou as teses da defesa. Nada de especial a reclamar quanto a isso.
Do mesmo modo que muita gente reclama da brandura dos novos ministros, no campo oposto existe quem continua afirmando que todo o julgamento foi político, e que José Dirceu, Genoino e Pizzolato nada fizeram de errado.
No fundo, a primeira lição que se tira de todo o processo é que tudo depende, sempre, do entendimento de cada juiz. Há quem se convença, e quem não se convença, das provas apresentadas contra José Dirceu. Foram suficientes para alguns, não foram para outros.
O que não dá para acreditar é na tese de que o STF “inventou” teorias novas para condenar esses acusados em particular. A famosa tese do “domínio do fato” não foi um expediente para condenar José Dirceu sem provas.
Houve provas, só que não tão fortes como uma gravação telefônica ou uma filmagem com câmera escondida. Testemunhas confirmaram o papel de Dirceu no esquema, confirmou-se a existência de reuniões entre Dirceu e Marcos Valério.
Podem não ter sido para tratar de nenhum crime, podem ter sido apenas para conversar sobre o mundo. Mas o célebre princípio da “presunção de inocência” tem seus limites –um deles é o grau de credulidade ou de burrice do juiz encarregado de examinar o caso.
Por outro lado, o Ministério Público deixou passar os favores recebidos pela ex-esposa de José Dirceu, que seriam capazes de embasar uma condenação do ex-ministro por outro crime, o de corrupção passiva.
Julgamento “político”? Como dizer isso, se Gushiken foi inocentado e se Lula sequer foi acusado pelo Ministério Público?
Feitas as contas, mesmos os ministros mais favoráveis aos acusados foram capazes de condenar Pizzolato e Genoino. Feitas as contas, foram altíssimas as penas contra alguns acusados, em especial os banqueiros. Feitas as contas, e esta é uma última surpresa para tantos que acompanharam o julgamento, mesmo quem amargou vinte e tantos anos de prisão pode livrar-se em pouco tempo.
Entende-se, assim, a vontade punitiva de Joaquim Barbosa e outros que seguiram na sua linha. Há tantos meios de diminuir o tempo de cadeia, que a severidade de seus julgamentos resulta mais aparente do que real.
Não poderia ser muito diferente. Tudo nesse julgamento –queiramos ou não—foi feito de acordo com a lei, e com as interpretações que os ministros têm o dever e o direito de seguir.
Foi pela lei que o julgamento demorou absurdamente. Foi pela lei que se deu o paradoxo de um mesmo tribunal ser encarregado de fazer a revisão dos próprios julgamentos (o caso dos embargos infringentes). Foi pela lei –pelas muitas leis— que as penas para corrupção terminam menos graves do que as de lavagem de dinheiro.
Pressão da “mídia conservadora”? Quem reclama disso ignora voluntariamente a tese contrária, segundo a qual Barroso e Zavascki foram sensíveis à pressão de quem os nomeou. Partes da opinião pública pressionaram claramente Celso de Mello para que ele não aceitasse os últimos recursos da defesa. Ele –que queria a condenação dos envolvidos por quadrilha—aceitou os embargos infringentes, que inocentaram os mensaleiros dessa acusação.
A Justiça, com falhas e erros, funcionou. Nenhum dos ministros estará plenamente contente com o resultado a que se chegou no plenário; bom sinal.
Funcionará no futuro? O julgamento servirá para alguma coisa? Pessoalmente, tenho muitas dúvidas. Mas a sociedade mudou suas expectativas com relação ao papel do Supremo; de algum modo, concordando ou não com o veredito, entendeu-se mais sua importância, sua lógica própria, sua independência.

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