O clipe me chegou pelo Facebook, e é tão delirante que merece comentário. Chama-se “Beijinho no Ombro”, e o título só na aparência transmite mensagens amorosas.
Trata-se da produção mais recente da musa funk Valesca Popozuda. O vídeo, disponível no YouTube, começa em grande estilo: sobre um fundo negro, as letras brancas de “Map Style Entertainment” se destacam com elegância, em perfeita imitação do que seria o começo de um filme indicado ao Oscar.
Sons de filme gótico introduzem o ambiente, um castelo branco-azulado, como nas melhores produções de terror dos estúdios ingleses da Hammer, na década de 1970. Monges de capuz avançam lentamente na penumbra, prestando reverência a uma rainha coberta de vison preto.
É ela, Valesca: uma loira de traços algo masculinos, cabelos presos em coque, brincos de brilhante. Não chega a ser inconvincente na imagem de “grande dama”, algo que só mais adiante, quando ela começa a cantar, sua voz e seu sotaque irão comprometer.
O close no seu rosto se interrompe, há um corte no filme, para dar lugar a outra cena… em que aparece a mesma Valesca, no mesmo cenário, só que agora com outra roupa, descendo a escada do palácio.
Ela está vestida de rainha, até que bem, com mangas bufantes de cetim cor de vinho rosé, um diadema na testa, o mesmo olhar imperioso e classudo. Em primeiro plano, um lustre dourado de cristal. Não é tão de mau gosto como dou a imaginar nesta descrição. Estamos, talvez, num belo desfile de Carnaval, mas certamente longe da 25 de Março.
Só depois disso vemos que, da cintura para baixo, Valesca abandonou o estilo renascentista para adotar o visual típico da Xuxa em sua primeira fase. Botas, shortinho, meias fosforescentes. Os monges que a acompanhavam na primeira cena agora são bailarinos maquiados de calçãozinho preto, numa estética de strip-tease gay.
Agora ela entoa, com a mais assumida vulgaridade, o seu canto de guerra. Os plurais se atropelam. “Desejo a todas inimigas vida longa/ pra que elas veja cada dia mais nossa vitória.”
O “beijinho no ombro” não é uma carícia no namorado, mas o gesto de quem vira o rosto com desprezo antes de seguir em frente, deixando a fila das invejosas para trás. “Late mais alto que daqui eu não te escuto”, diz Valesca às supostas rivais.
“Do camarote quase não dá pra te ver”, completa a poderosa funkeira, e ameaça: “bateu de frente é só tiro, porrada e bomba”.
A música prossegue, e ela já trocou novamente de roupa e de cenário, toda de arminho, num trono vermelho de Papai Noel com neve artificial; mas volta ao vison, recai na Xuxa veneziana, entregue a um carrossel de fantasias que só termina com o recado definitivo: “rala, sua mandada”.
Muita coisa se mistura nesse clipe. Antes de mais nada, é o hino da emergente social, a que ascendeu “ao camarote”. Seu problema é que, embora tenha dinheiro para gastar, não se desvencilhou do círculo de origem. Não tem amigas nas “altas esferas”: dá-se, ainda, com as colegas mais pobres, tendo de enfrentar a inveja à sua volta.
É triste a situação: nesse enfrentamento, Valesca corre o risco de se revelar a “barraqueira” que não deixou de ser —e ameaça com “tiro, porrada e bomba” as possíveis inimigas. Como prosseguir na nova vida, se para se defender está aferrada aos códigos do tráfico e da polícia?
A solução será a de imitar aqueles que, mesmo privilegiados, tenham sido oprimidos também. Nada melhor que o gay rico em algum lugar do passado: sabe o que é o triunfo e a humilhação.
Valesca Popozuda se veste de rainha e se mostra desdenhosa em seu poder, como se correspondesse, digamos, ao sonho que Clodovil Hernandes tinha a respeito de suas vidas passadas.
É possível que algum gay da velha guarda imaginasse um tipo de mulher dominadora, rainha de conto de fadas, figura de infância inatingível, que lhe tivesse roubado o falo. A funkeira concretiza, na vida real, essa madame imaginária.
Não é apenas uma mulher dona de si mesma, mas uma madame “assumida”, como se falava dos “gays assumidos” 30 anos atrás, ou da “direita assumida” do cenário político atual. Com injeções de silicone, ela pode construir legitimamente, em pleno direito, o corpo feminino que alguns homens gostariam de ter.
Aquele universo infantil de Disneylândia e Parque da Xuxa é também um castelo assombrado, em que a “popozuda” adquire poder invocando os fantasmas de Clodovil e Clóvis Bornay.
O imaginário emergente, com suas fantasias de luxo, medo da inveja e agressividade à flor da pele, exalta o corpo perfeito e o “sucesso merecido”. Mas perde tempo quem procurar sinais de felicidade nisso, tal o peso da violência e do ressentimento.
Há outras formas de celebrar a ascensão social no mundo “funk”, mas ficam para um próximo artigo.