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Marcelo Coelho

Cultura e crítica

Perfil Marcelo Coelho é membro do Conselho Editorial da Folha

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Na escuridão

Por Folha
05/02/14 03:00

É muito difícil, e quase invasivo, falar de tragédias como a ocorrida com Eduardo Coutinho. Um assassinato a golpes de faca, ao que tudo indica cometido pelo próprio filho, que sofre de esquizofrenia: ninguém teria nada a acrescentar à brutalidade do acontecido —não fosse o morto um dos mais importantes cineastas da atualidade.

Não há como procurar sentido nos fatos, mas talvez se torne inevitável ver os filmes de Eduardo Coutinho de outro jeito a partir de agora.
Lembro por exemplo um documentário antigo do diretor, “Santo Forte”. Naquele filme, com depoimentos de vários moradores de uma favela sobre as próprias experiências religiosas, o limite entre loucura e sanidade mental era questionado o tempo todo.

Pessoas sensatas, e mesmo descrentes, falavam com naturalidade de eventos sobrenaturais; o surto psicótico e a visão religiosa se confundiam no que era narrado, sem que ninguém deixasse de parecer normal depois daquilo.

Normais, para lá de normais, também eram os moradores de “Edifício Master”. Nada mais desinteressante, na aparência, do que aquelas personagens da classe média carioca.

Bastava deixar o tempo fluir, entretanto, para que em cada conversa a pessoa mais banal abrisse abismos de singularidade e sofrimento. É como se ninguém pudesse passar ileso pela vida —e o que diferencia cada ser humano de outro consistiria, sobretudo, na sua soma própria de acidentes.

Uso o termo como quem fala em “acidentes geográficos”: uma encosta, um precipício, uma montanha, cada qual com sua forma particular, resultado de não sei quantos tremores de terra, desabamentos, enxurradas, depósitos, florescimentos e resistências.

Ileso, entretanto, e sempre igual, parecia ser o próprio Eduardo Coutinho, abordando seus entrevistados, filme depois de filme. Era uma atitude que cheguei a qualificar de “quase sádica” a propósito de “As Canções”.

Vai chegar a hora, pensa o espectador, em que o entrevistado vai desabar no choro, apesar dos esforços para demonstrar a própria força, a capacidade de reconstruir a vida depois de alguma tragédia familiar ou grande decepção amorosa.

Atrás da câmera, Eduardo Coutinho não se abria para ninguém; qualquer documentarista conta ademais com um álibi suplementar, porque nem sequer a sua fantasia entra em cena.

O sofrimento, pensa o espectador, está nos outros. Tratava-se, de um modo muito radical, de um cinema “na terceira pessoa”. Era tão grande a recusa de Coutinho em fazer do cinema um lugar para a própria imaginação que seus documentários mostravam sempre a parafernália das câmeras e dos refletores.

Com isso, mostrava-se que a realidade dos entrevistados já estava tingida, por si mesma, de uma dose considerável de delírio, de autoengano, de mania. Coutinho, da sua cadeira de diretor, ocupava sempre o lugar do equilíbrio, do enquadramento, do responsável por deixar as coisas em seus devidos termos.

Por isso mesmo, nos seus filmes ele ficava no escuro. A escuridão à sua volta, entretanto, parece ter sido maior do que qualquer pessoa poderia prever.

* * *

Sabia que tinha esquecido alguma coisa no artigo da semana passada, sobre “Tango Livre”. No filme, um grupo de presidiários aprende os segredos do tango, que historicamente começou de fato como uma dança só entre homens.

Sugeri que a descoberta da masculinidade envolve também, para não cair em caricatura, o conhecimento da própria feminilidade. A ideia me veio depois de ler uma página de “Hora de Alimentar Serpentes”, livro de prosas curtas de Marina Colasanti (ed. Global).

Numa carta a seu amigo Fliess, Freud escreveu que estava se acostumando “a considerar todo ato sexual como acontecendo entre quatro indivíduos”. Um dos personagens anônimos de Marina Colasanti incomoda-se “com a presença de tantos” ao fazer amor com a mulher.

“Por fim”, escreve a autora, “desfez-se dos outros três que lhe ocupavam os lençóis, e dedicou-se a amar somente a parte feminina de si mesmo”.

Muitas estratégias de “despersonalização” como essa criam as surpresas às vezes forçadas, outras vezes de muito impacto poético, de “Hora de Alimentar Serpentes”.
Cito, e talvez venha a propósito, o texto que inspirou o título do livro.

“Hora de alimentar as serpentes que habitavam sua cabeça. Concentrou o pensamento em pequenas criaturas vivas, rã, passarinho. Um gosto de sangue chegou-lhe à boca, e o mover-se do novelo sibilante, que apenas intuía, aquietou-se. Sua segurança estava garantida por mais algum tempo. Dia chegaria, entretanto, em que suas inquilinas haveriam de pôr ovos.”

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Melhor um tango argentino

Por Folha
29/01/14 03:02

O menino tem 15 anos, mas, como é comum nos países europeus, ainda parece estar na pré-adolescência. Volta machucado da escola; tinha entrado numa briga.

A mãe, que é enfermeira num hospital, está atrasada para o trabalho; dá um afago no garoto e se despede, recomendando que ele faça o curativo sozinho. Você sabe onde fica o estojo de primeiros socorros, diz ela, e bate a porta.

A cena poderia ter se encerrado aí. Mas “Tango Livre”, filme que entra em cartaz nos próximos dias, prolonga um pouco a situação. A câmera chega até o rosto do menino, que aproveita o ventilador ligado para refrescar a pele em carne viva.

Masculinidade e desamparo são sentimentos que dançam o tempo todo em volta dos personagens desse drama bonito, dolorido e otimista. Ainda que o diretor seja homem, muitas vezes um olhar feminino pousa sobre os personagens.

Quase tão frágil quanto o filho da enfermeira, Jean-Christophe (François Damiens) é guarda numa prisão, e leva uma vida solitária. Sua maior companhia é o peixinho vermelho do aquário, que no filme surge quase como outro detento, no cotidiano obscuro da classe baixa belga.

Jean-Christophe aprende tango nas horas vagas, e nessas aulas acaba conhecendo a enfermeira, que lhe vira a cabeça.

Na “Carmen”, de Bizet, o pobre soldado José acaba seduzido pela cigana linda e magnética que dá seu nome à ópera. Liberta-a da prisão, foge com ela para o esconderijo dos criminosos, e termina preterido no coração de Carmen, que já se inclina para o toureiro Escamillo.

Alice, a enfermeira do filme, não é especialmente bonita, nem perigosa como Carmen. Simplesmente as coisas acontecem à sua volta. De todo modo, seu mistério e seu charme latino são capazes de perturbar mais marmanjos do que o pobre carcereiro. Ela tem dois maridos, e ambos estão presos, sob a guarda de Jean-Christophe.

Contando o filho, são quatro homens em torno da personagem, vivida pela atriz Anne Paulicevich, que também escreveu o roteiro do filme.

Alguns escritores homens são elogiados por “entender a alma feminina”. No caso de “Tango Livre”, a autora do roteiro entende admiravelmente a “alma masculina”, e seu diretor, Frédéric Fonteyne, parece ter pleno domínio do “olhar feminino” sobre as coisas.

Como se sabe, o tango originalmente era dançado apenas entre homens. A situação se reproduz no filme, do modo mais insólito: são os presos que resolvem aprender o tango, com alguns condenados argentinos que formam um grupinho à parte na cadeia.

Trata-se de um recurso dos dois maridos para não dar ao carcereiro Jean-Christophe, razoável dançarino, uma vantagem no coração de Alice.

Muita coisa ainda vai acontecer em “Tango Livre”, mas as cenas de dança na prisão, com as autoridades penitenciárias belgas sem saber muito como reagir ao fenômeno, já valem o filme inteiro.

A agressividade e a confiança, o machismo e a ternura, o feminino e o masculino se concentram e harmonizam no rosto de cada personagem. A extrema tensão de um presídio, aliada à outra tensão de uma múltipla rivalidade amorosa, parecem se formalizar numa dança que se faz sem música, só acompanhada pelo bater de palmas dos detentos.

Quem está livre, quem está preso numa situação dessas? Alice vive cercada, vigiada por seus homens. Ao mesmo tempo, exerce um calmo domínio sobre todos eles. São meninos, no fundo: com vários crimes nas costas, ou carregando apenas uma mochila de colegial, sofrem de uma insegurança permanente, engalfinham-se, xingam, fazem as pazes e querem colo.

Será que é isso, o “masculino”? Penso numa dificuldade extrema para amadurecer. Ao mesmo tempo, veremos no filme de que modo o filho de Alice se defronta, da noite para o dia, com o mundo real.

Saber que o mundo real não corresponde aos nossos sonhos é uma coisa. Outra coisa é conduzir a vida de acordo com essa percepção. Masculinidade e amadurecimento se confundem nesse processo.

Talvez o segredo, para os autores de “Tango Livre”, possa ser dominado como os passos dessa dança argentina. Nela, os homens por vezes se feminizam, sem deixar de ser homens o tempo todo; as mulheres seduzem, dominando, e cedem quando menos se espera.

Os papéis sexuais não deixam, quando estereotipados, de constituir uma prisão; nada menos maduro do que o menino assombrado pelas próprias dúvidas sexuais, tentando uma macheza que sua sensibilidade não permite.

Guardas, criminosos, meninos, mulheres, se entendem melhor com um pouco de jogo de cintura. Dentro de uma prisão belga talvez seja mais fácil; quanto aos cárceres brasileiros, talvez seja mesmo o caso de tocar um tango argentino.

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Metrossexualidade para todos

Por Folha
22/01/14 03:00

A velhice tem suas injustiças, e não me refiro apenas à comparação que possamos fazer com as pessoas mais moças. Surgem desequilíbrios internos, que a ciência por certo há de explicar. Um caso me intriga especialmente.

Você já reparou nas canelas dos senhores de mais idade? Para meu espanto, são em geral lisas e cerosas como as de uma noviça.

Ainda mais se, como se torna ademais um curioso hábito dos idosos, eles passam a usar bermudas no verão, combinando com o velho par de meias sociais dos tempos de escritório, e o humilhante tênis sem cadarço da Rainha, cor azul-marinho.

Trata-se de um hit da terceira idade, talvez porque amarrar o sapato dê muito trabalho, e porque o mocassim de couro tradicional não mais se adapte ao inchaço dos tornozelos.

Sim, mas onde está a injustiça? Está no fato de que, enquanto caem os pelos das canelas, os de outros lugares não param de crescer. Falo de orelhas, narizes e sobrancelhas.

Fosse algum decréscimo hormonal em todo o organismo, por que então essas orelhas de lobisomem, os pelos como labaredas, crepitando em torno de ouvidos surdos? Será para disfarçar melhor o aparelho auditivo?

Passo bem na ausência desse problema, mas tenho reparado, nas minhas sobrancelhas, aparições esporádicas de verdadeiras cerdas de javali. Uma ou duas por semana, como as baionetas de algum soldado em desespero a destacar-se de seus camaradas na trincheira.

Aprendi a utilidade da pinça.

Bom, mas por que você não deixa sua sobrancelha quieta, e que os pelos nasçam com a liberdade dos bambus? É que passei a vida inteira desconfiando daqueles varões de velha cepa, homens de Estado, capitães da indústria, professores de direito, os quais gostava de reunir imaginariamente no “clube dos sobrancelhas grossas”.

Quem não os encararia sem estremecimento? No mundo mais pacífico das ideias e da música, o sociólogo Zygmunt Bauman e o compositor Hans-Joachim Koellreutter são as figuras que me vêm à memória, acrescentando furiosos escovões brancos às eriçadas consoantes de seus nomes.

Quantos mais membros desse clube havia! Um rigoroso e lacônico ministro da Indústria e Comércio, um pertinaz e tradicionalíssimo jornalista, o dono imperturbável de um cartel do aço ou do cimento.

Seriam, quem sabe, os prussianos paulistas; por natureza sérios e enérgicos, ganhavam com aquela marquise cabeluda um suplemento de severidade que acentuava, temivelmente, a vivacidade de um olhar imune aos avanços do tempo.

Não; melhor arrancar esses pelos um a um, antes de me transformar num articulista com ar de porco-espinho. Pois aqui vai um segredo. No salão que passei a frequentar, quase uma casa de repouso para a terceira idade, o barbeiro (não mais jovem que os fregueses) perguntou-me se devia aparar também as sobrancelhas.

Presumo que seja o usual naquele ambiente, tão distante dos metrossexuais quanto a navalha do raio laser. Uma vez ele aparou; senti-me esquisitíssimo, uma espécie de Cristiano Ronaldo que tivesse entrado no corpo do técnico Felipão. Esse ainda precisa, aliás, de sobrancelhas mais espetentas.

Fico de fora. Mas não há saída; a vaidade masculina existe o tempo todo. Mário de Andrade dizia que publicar livros é vaidade, mas não publicar também é. Vaidoso também, lá com seus botões, é o sexagenário que faz da orelha o seu pequeno casaco de vison; o que expulsa de suas narinas dois pincéis da marca “Tigre” (para acabamento em verniz); o que cultiva sobre os olhos um canteiro de cactos.

Vaidade. Por isso cresce também o mercado dos hidratantes, dos cremes antirrugas, das “fórmulas anti-idade” para o público masculino. O processo é sutil, mas poderia ser mais ainda.

Tudo começa com o filtro solar, indicado na prevenção contra o câncer de pele. O uso do pós-sol também é recomendado nesta época. Uma vez achei um produto, não direi que era um creme de beleza, que fez maravilhas não para a minha estética facial, mas para abolir a sensação de calor na pele durante o dia.

Disseram-me depois que todo hidratante era capaz disso. Ótimo, desde que não tenha cheiro de jasmim ou de goiaba. Ah, conhece a nossa linha masculina? Pronto; eu estava a um passo da metrossexualidade.

A sutileza que ainda falta é a de deixar esses produtos mais ao alcance da mão. As farmácias em geral protegem seus cremes de beleza atrás de vidros, em redutos exclusivos. Ponham-nos ao lado dos barbeadores e das loções —e ninguém mais haverá de segurar os marmanjos deste Brasil na corrida no caminho da, hum, saúde facial. E sebo nas canelas.

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Verões antigos

Por Folha
15/01/14 00:30

Gostar de escola nunca foi minha especialidade: a chatice das matérias, a violência dos colegas, as lições a entregar, que até hoje são assunto de meus pesadelos, nada disso deixou saudades.

Das férias não trago lembrança muito melhor. Só passei a gostar de praia bem mais tarde na vida. Quando criança, incomodava-me a umidade imediata e pegajosa que, mal chegando a Santos, e mais ainda quando entrávamos no apartamentinho do Guarujá, assediava tudo —pele, roupas, maçanetas, o aparelho de TV.

Televisão? Mentira. Não tínhamos TV, e, se tivéssemos, faria pouca diferença; a imagem era péssima e melhorava pouco para quem tinha o famoso aparelho de UHF, precursor a lenha das antigas antenas Plasmatic.

No capítulo das comunicações, o telefone era outra inexistência. Havia um na portaria do prédio, para casos de necessidade; no geral, pegava-se a fila das cabines na agência do centrinho, onde as ligações pela telefonista poderiam, com sorte, completar-se em menos de meia hora.

Não era tão ruim; encontrava-se, ao menos, algo o que fazer durante a tarde, depois de tantas horas na praia lotada. Lotado, às vezes, também ficava o apartamento de dois quartos; bastava um casal convidado que a sala virava quarto de dormir. Salgado, cheio de areia, fungando, eu esperava a vez no único chuveiro da casa.

Faltava água e luz o tempo todo. Não por acaso estendo a lista dessas queixas póstumas. Quero notar apenas que, se as notícias sobre o verão deste ano podem ser alarmantes —viroses, congestionamentos, praias impróprias—, nada piorou tanto assim.’

As pessoas não se lembram que, na década de 1960, havia óleo de navio em toda praia que se prezasse. Junto à torneirinha da área de serviço, ficava sempre um vidro de benzina com um pano de estopa, razoavelmente eficiente para limpar os pés.

Ar condicionado era um luxo a que só se permitiam algumas poucas “butiques” da cidade. Desconheciam-se o filtro solar e o hidratante pós-sol; usava-se “o óleo”, algo que tinha a cor do azeite do dendê e servia para fritar a pele, e uma pasta espessa para o nariz.

Comprovada a sua inutilidade, era o momento de passar o medonho Caladryl: produto rosa que cobria de película impermeável a pele invadida de bolhas. Será que as mães de antigamente cuidavam menos das crianças? Desconfio que os produtos melhoraram muito.

Também os inseticidas e repelentes. Tínhamos a famosa “espiral”, cujo cheiro não me desagradava. Os mosquitos também gostavam. O defumador verde escuro queimava aos poucos durante a noite, soltando uma fumacinha limpa, levemente selvagem, como que exalada pela mata atlântica, se a mata atlântica fosse tabagista.

Os congestionamentos eram iguais, ou ainda piores do que hoje. Lembro-me do dia 15 de novembro de 1974, dia da grande vitória do MDB contra os militares: doze horas de São Paulo ao Guarujá.

Não havia tantos crimes, é verdade. Minhas últimas experiências no litoral paulista incluem um assalto dentro da farmácia, na véspera de Natal, três invasões da casa quando eu estava fora, gritos de socorro vindos da rua durante um almoço com amigos.

Ninguém se atreveu a ir até a rua para ver o que se passava. Horas depois, viemos a saber que a vítima era a sogra de um dos convidados. Não lhe levaram muita coisa; talvez nada. A água do mar é o diabo quando entope os ouvidos.

Na semana seguinte, outra senhora vasculhava a calçada: tinham-lhe arrancado um brinco de estimação. Perseguidos, os meninos de rua teriam jogado por ali o fruto do assalto.
Eram bem mais tediosos os verões de 50 anos atrás. Havia a fila do pão, a fila para pegar água da bica, a fila do elevador, a fila da balsa que ligava Santos ao Guarujá.

Mas eu gostava da balsa. Chegávamos já no escuro. A água do canal ganhava as luzes do embarcadouro e o arco-íris caprichoso e repelente do óleo despejado. Grandes navios ficavam à espera, levando tatuados no dorso negro nomes e bandeiras estrangeiras. O silêncio do mar continha a vibração constante dos motores, que se transmitia pelos pés.

Meu pai também ficava em silêncio, segurando a barra de ferro que circundava a balsa. Encontrava-o depois na sacada do apartamento, ainda sem dizer nada, diante da nesga de negrume que correspondia ao mar.

O farol de uma ilha piscava de tempos em tempos, comunicando sua própria solidão. A cada três voltas da luz branca, seguia-se um sinal vermelho, mais curto, que eu me entretinha em esperar.

São assim muitas de nossas memórias, intermitentes, constantes, repetidas, marcando com impulsos quietos a escuridão do tempo.

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Cuidado com seus projetos

Por Folha
08/01/14 03:00

Previsões e planos, duas coisas comuns nesta época do ano, costumam sofrer depressa o desmentido dos fatos. Raras vezes esse desmentido foi tão brutal, contudo, quanto na Primeira Grande Guerra, cujo início faz cem anos agora em 2014.

Comecei a ler um pouco sobre o assunto, para depois resenhar os livros que estão programados para a efeméride. Pelo que andei vendo, um bom ponto de partida é o estudo de Barbara Tuchman, publicado pela primeira vez em 1962.

Chama-se “The Guns of August” e representou uma virada nas interpretações sobre o período. Ela relativiza, por exemplo, a importância do famoso assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando em Sarajevo —tantas vezes mencionado, numa síntese que nunca explica muita coisa, como sendo o “estopim” da Primeira Guerra.

A autora de “A Marcha da Insensatez” (Bestbolso) dá ênfase a toda a verdadeira máquina infernal de preparativos militares, tanto da Alemanha como das demais potências, que tornava qualquer ameaça de conflito praticamente impossível de reverter. Na narrativa de Tuchman, planos desse tipo se chocam com as previsões, que eram muitas também. Como em todo ano novo, 1914 encenou dramaticamente a ironia entre o que se quer que aconteça e o que se pensa que vai acontecer.

Nunca entendi por que o famoso filme de Jean Renoir sobre a Primeira Guerra se chamava “A Grande Ilusão”. Que ilusão? A de que pessoas de diferentes nações são diferentes entre si? A de que a amizade entre um alemão e um francês pode superar rivalidades? A ilusão é a paz? Ou a ilusão é a guerra?

Graças ao livro de Tuchman, aprendi que “A Grande Ilusão” é o título de um estudo escrito pelo inglês Norman Angell (1872-1967). A obra fez sensação na “belle époque”.

Demonstrava-se, ali, a improbabilidade absoluta de uma nova guerra europeia. Os recursos técnicos e humanos à disposição de cada país eram tão vastos que qualquer conflito seria suicídio: mesmo a nação vitoriosa emergiria dele totalmente arruinada e destruída. Num mundo interessado no lucro, quem apostaria em prejuízos de tal monta?

O livro saiu em 1910. Ninguém menos do que o chefe do Conselho de Guerra do Império Britânico, Lord Esher, entusiasmou-se com a tese e tratou de divulgá-la em palestras e cursos. Uma das figuras máximas do militarismo alemão, o marechal Von Moltke (1800-1891), já enunciara ideias semelhantes. As guerras por vir jamais seriam curtas, e o seu preço, mesmo para o país vencedor, seria catastrófico.

Enquanto as previsões iam nessa toada, os planos caminhavam em sentido contrário. Ou melhor: levando em conta os mesmos fatos, conduziam a uma conclusão oposta.

Sabendo-se que todas as potências eram fortíssimas, e que uma guerra longa e custosa poderia acontecer, o único método para garantir a vitória consistiria em atacar de uma vez, o mais cedo possível…

Beneficiando-se de uma ofensiva-surpresa, que passasse por cima da Bélgica, tão fraca e tão neutra, os alemães contavam chegar a Paris em questão de semanas. Do lado francês, o Estado-Maior concluía, em 1913, que “só a ofensiva conta”.

Estabelecido o dogma militar, parece pesar pouco a vontade dos participantes no momento em que o drama se aproxima. Esta, pelo menos, é a interpretação de Barbara Tuchman, que narra um episódio arrepiante com o Kaiser alemão.

Não se tratava, evidentemente, de nenhum pacifista. Mas a guerra entre Alemanha e Rússia já estava declarada, e era do interesse de qualquer estrategista evitar que França e Inglaterra entrassem no conflito. Para os alemães, sempre seria um pesadelo dar conta de duas frentes —a do Oeste e a do Leste— ao mesmo tempo.

Surge uma chance. Eram cinco horas da tarde do dia 1º de agosto de 1914 quando aparece, em Berlim, um telegrama em código informando que os ingleses estavam dispostos a manter-se neutros na guerra, caso os alemães se comprometessem a não atacar a França.

Mas todos os planos para o ataque já estavam em movimento. O Kaiser hesita: e se for um blefe? E se os franceses atacarem antes do mesmo jeito? Conversa com seu chefe de Estado-Maior.

Moltke, o Jovem (sobrinho daquele marechal do mesmo nome que previa ruína e exaustão para os vencedores), já não tinha paciência para com os palpites do imperador. Como se lê em “Os Três Imperadores”, de Miranda Carter (Objetiva), Guilherme 2º desde cedo manifestava grande vaidade intelectual, achava que entendia de tudo.

Moltke chorou ao ver aquelas tentativas apaziguadoras do Kaiser. Era hora de deixar a guerra para os militares, que entendiam do assunto. Assim foi feito.
Previsões e planos para 2014? Por vezes, não fazer nada já é uma iniciativa e tanto.

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A sopa e as nuvens

Por Marcelo Coelho
02/01/14 17:20

Eis o poema em prosa de Baudelaire, “La Soupe et les nuages”, a que me referi no artigo desta quarta-feira (ver abaixo), sobre “A Vida Secreta de Walter Mitty“.
Minha doidinha adorada me servia a ceia, e pela janela aberta da sala de jantar eu contemplava as moventes arquiteturas que Deus faz com os vapores, as maravilhosas construções do impalpável. E eu dizia a mim mesmo, durante essa contemplação: “tantas fantasmagorias são quase tão belas quanto os olhos da minha adorada, a doidinha monstruosa de olhos verdes”.
E de repente recebi um violento murro nas costas, e ouvi uma voz rouca e sedutora, uma voz histérica e como que corrompida pela aguardente, a voz da minha queridinha adorada, que dizia: “vai comer essa sopa de uma vez, bicho lazarento de vendedor de nuvens?
[Ma petite folle bien-aimée me donnait à dîner, et par la fenêtre ouverte de la salle à manger je contemplais les mouvantes architectures que Dieu fait avec les vapeurs, les merveilleuses constructions de l’impalpable. Et je me disais, à travers ma contemplation : « — Toutes ces fantasmagories sont presque aussi belles que les yeux de ma belle bien-aimée, la petite folle monstrueuse aux yeux verts. »
Et tout à coup je reçus un violent coup de poing dans le dos, et j’entendis une voix rauque et charmante, une voix hystérique et comme enrouée par l’eau-de-vie, la voix de ma chère petite bien-aimée, qui disait : « — Allez-vous bientôt manger votre soupe, s…. b….. (sale bête) de marchand de nuages ? »]

Ainda que seja bonito falar das nuvens como “construções do impalpável”, o contraste desejado por Baudelaire nesse pequeno texto é um bocado grosseiro, e a ironia várias vezes repetida na qualificação da “petite folle bien-aimée” carece de qualquer sutileza. Os “poemas em prosa” raras vezes, para não dizer nunca, são capazes de atingir a grandeza das “Flores do Mal”, a obra pela qual Baudelaire merece mesmo ser conhecido.

Seja como for, nesse texto está sem dúvida a origem do conto de James Thurber, que reencena a situação da mulher prática, puxando as orelhas do marido sonhador.

Vale conferir este trecho, em que Walter Mitty se imagina um aviador da Primeira Guerra Mundial.

“Será um voo de quarenta quilômetros através do inferno, sir”, disse o sargento. Mitty tomou seu último conhaque. “Afinal de contas”, respondeu suavemente, “o que é que não é?” O estrondo dos canhões aumentou, havia o ratatá das metralhadoras, e de algum lugar vinha o pof-pof-pof ameaçador dos novos lança-chamas. Walter Mitty caminhou até a porta do abrigo cantarolando ‘Auprès de ma blonde’. Ele se virou e acenou para o sargento. “Sempre em frente!”, ele disse…
Algo acertou seu ombro. “Fiquei te procurando o tempo todo neste hotel”, disse a sra. Mitty. “Por que é que você tem de se esconder nessa poltrona velha? Como você imaginava que eu ia achar você?”
A mulher (desde que consumado o casamento) é o símbolo das obrigações terrestres, do cotidiano banal, enquanto o romantismo se reserva ao sexo masculino. O qual, superado o foco da paixão amorosa, entrega-se às nuvens, ou às aventuras de rapazinho imaginadas por Walter Mitty: batalhas sangrentas, expedições aventurosas no Ártico.

Ben Stiller, numa das belas paisagens do filme

Ben Stiller, numa das belas paisagens do filme

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O filme tem o cavalheirismo de fundir a fantasia de um envolvimento amoroso com o ideal intrépido do alpinista, do navegador. Assim, o tímido (timid) Mitty terá de realizar duplamente a missão de tornar-se homem: conquistando a sua colega de escritório e vencendo o próprio medo para encontrar-se com o fotógrafo-alfa que parecia esperá-lo nas alturas do Himalaia. Escapista ou não, o filme de Ben Stiller pelo menos não tem a rigidez do contraste exposto por Baudelaire ou James Thurber. Como ator, Ben Stiller realiza nas próprias feições e no modo de ser uma grande –e bem-vinda—transformação do começo até o final da história.

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Walter Mitty

Por Folha
01/01/14 03:00

Qualquer que seja o livro, e qualquer que seja o filme, em geral todo mundo concorda: o livro é muito melhor. Com “A Vida Secreta de Walter Mitty”, acontece o contrário.

O filme, dirigido e estrelado por Ben Stiller, tem uma riqueza de conotações e uma exuberância imaginativa que o simpático e curtíssimo conto de James Thurber (1894-1961) não consegue alcançar.

O texto, publicado pelo cartunista e escritor americano em 1939, parte de uma excelente ideia —e praticamente se resume a essa ideia apenas. De profissão indefinida, com uma mulher exigente e banal, Walter Mitty visita o centro de sua cidadezinha dirigindo seu automóvel —que imediatamente, em sua imaginação, transforma-se numa embarcação de guerra.

Ele tem de levar a mulher até o cabeleireiro e comprar ração de cachorro no armazém. Essas atividades comuns se transfiguram numa cirurgia de alto risco ou no sensacional julgamento de um assassino impiedoso.

Os parágrafos do conto se alternam simetricamente entre a vida comum e as fantasias, alimentadas de literatura barata e reportagens sensacionalistas, em que o personagem submerge.

Apesar de sua doçura humaníssima, o conto padece de um esquematismo formal, de um tique-taque entre as situações, que torna suas poucas páginas até excessivas para o ponto que se quer demonstrar.

James Thurber traduz para a vida concreta americana algo que Baudelaire, num poema em prosa ainda mais seco e óbvio, já fizera em meados do século 19. O marido viaja nas nuvens, enquanto a mulher grita para que ele tome a sopa de uma vez.

Para lembrar de outros personagens parecidos, Walter Mitty é também um ancestral de Snoopy, o cachorrinho das tiras de Charles Schulz, que por vezes brinca de ser um ás da aviação na Primeira Guerra Mundial ou o bacanão de um campus universitário.

No filme atualmente em cartaz, Walter Mitty é solteiro, e sabemos tudo de sua profissão. Ele é encarregado de arquivar os negativos fotográficos da revista “Life”, o que faz com que seu emprego esteja duplamente ameaçado.

A revista toda será fechada, em tese porque o jornalismo impresso perde espaço para mídias digitais; pior ainda, nenhum fotógrafo usa o filme convencional, de modo que já não há negativos para guardar.

Com esse contexto concreto e atualizado para o conto, o roteiro do filme (assinado por Steve Conrad) cria ao mesmo tempo uma metáfora que dá novos significados à situação.

Walter tem de achar o negativo de uma imagem especialíssima, feita pelo aventuroso e genial fotógrafo Sean O’Connell (Sean Penn). Viajando pelos lugares mais perigosos e selvagens do planeta e enfrentando todo tipo de perigos (Afeganistão, Groenlândia, neves, terroristas, vulcões), o fotógrafo tem no medroso Walter Mitty seu exato “negativo”.

Enquanto isso, as fantasias do personagem se imiscuem no filme de um modo muito menos mecânico do que no conto. No universo de James Thurber, a ficção impressa ainda era o que fornecia o ópio imaginativo do personagem —isso, num tempo em que o cinema já reinava na cultura americana.

No filme de Ben Stiller, a passagem para o ilusório se faz sem quebras, uma vez que tudo —seja verdadeiro ou fantasioso— já se passa no ambiente onírico por excelência, o dos filmes de Hollywood.

É assim que o espectador terá de atentar para ilusões em dupla direção. Sem aviso prévio, Walter Mitty sai da realidade para um mundo de aventuras hollywoodianas. Mas a própria realidade é hollywoodiana, e a história do filme pode conferir ao personagem saídas que o conto não se dispunha a oferecer.

Como um negativo fotográfico, o verdadeiro Walter Mitty será “revelado” ao longo do enredo —mas o espectador pode se perguntar se esse novo personagem é de fato “verdadeiro” ou simplesmente uma nova, e mais elaborada, ilusão.

Estou, em todo caso, sofisticando demais um filme talvez longo demais, e que aspira a ser, sobretudo, um entretenimento de ótimo nível. Como sempre, saímos do cinema para reencontrar, inalterada, a realidade de nossas próprias limitações e de um cotidiano tantas vezes desinteressante.

Mas, quando o ano termina, e alguns projetos se fazem para o futuro, é também possível que ao olhar para trás a gente perceba que muita preocupação real agora já se transformou em ilusão.

Cada pessoa, que mal se conhece a si mesma, pode ter sido vítima de aparências e de sombras sem substância. Quem sabe se descubra como realmente é, melhor e mais forte do que pensava. Talvez essa descoberta seja apenas outra invenção, não importa. Como dizem no Ano-Novo, importa mais que seus sonhos se realizem.

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Flávio de Carvalho

Por Folha
18/12/13 03:00

Às vezes o excesso de talentos atrapalha. Melhor ser bom numa coisa só do que em várias. Jean Cocteau (1889-1963) foi poeta, cineasta, desenhista, cenógrafo, teatrólogo e teórico do modernismo. Seus diários trazem amargas reflexões sobre o preço que isso lhe custou.

“Cada livro meu seria capaz de assegurar a reputação inteira de uma pessoa”, queixa-se ele, sabendo que sua celebridade dependia “de uns filmes e desenhos à margem de minha obra principal, e de uma lenda a meu respeito, feita de inexatidão e de ouvir dizer”.

O brasileiro Flávio de Carvalho (1899-1973) sem dúvida sofreu de uma maldição parecida com a de Cocteau. Pintor, desenhista, arquiteto e “performático” antes que o termo se tornasse moda, Flávio de Carvalho conhece uma fama intermitente, sem nunca alcançar o reconhecimento, digamos, de um Oswald de Andrade ou de uma Tarsila do Amaral.

Em parte, isso é uma questão de cronologia: ele entrou na história um pouquinho tarde, a tempo apenas de aderir ao movimento antropofágico, mas sem participar da Semana de 1922.

O arquiteto e agitador cultural iria empreender sozinho, em 1931 e em 1956, suas famosas “experiências”. A primeira, que quase lhe valeu ser linchado, consistia em andar no sentido inverso ao de uma procissão de Corpus Christi.

A outra foi desfilar, de saia e meia arrastão, no centro de São Paulo. Flávio de Carvalho pretendia lançar um novo estilo de moda masculina, mais adequado ao clima tropical.

Na exposição dedicada a Flávio de Carvalho, em cartaz na Faap até dia 19 de janeiro, pode-se ver a blusa idealizada pelo artista. Em duas camadas, uma das quais feita com tela de plástico –daquelas que antigamente se punham nas janelas da cozinha para não entrar mosca—, aquela roupa devia ser desconfortável ao extremo.

Detalhe insignificante, por certo, quando o objetivo é ser moderno a todo custo. A exposição também mostra sua obra arquitetônica. São casas de uma estética limpa, sintética, comparáveis aos trabalhos de Warchavchik e Lúcio Costa.

Nada dessa arquitetura faz pressupor o traço bizarro, as deformações dos lábios e o colorido quase caótico das telas do mesmo autor. São retratos de personalidades conhecidas, como a pianista Yara Bernette, o maestro Eleazar de Carvalho e o compositor Camargo Guarnieri.

Há ali a intenção clara de confundir figura e fundo, rosto do retratado e mosaico de cores atrás dele, produzindo uma sensação de exagero quase diletante. Alguns passos adiante na exposição, e surgem desenhos a nanquim que poderiam perfeitamente ser de algum outro artista, mas nunca do mesmo que pintou os quadros ali do lado.

Com toda a paciência que parece ausente dos quadros a óleo, os desenhos vão compondo, contra um fundo neutro, figuras femininas que ganham volume através de infinitas ramificações de tinta preta, como se Flávio de Carvalho, em vez de mãos, tivesse patas de aranha.

Com tantas personalidades, quase “heterônimos”, Flávio de Carvalho não facilitou as tarefas da posteridade. Sua fama é centrífuga, resistente e frágil como uma teia de aranha também.

Tentou, além disso, o cinema. Organizou uma equipe e se meteu no Xingu, com o projeto delirante de filmar “A Deusa Branca”, história de uma beldade loura a ser cultuada pelos indígenas.

A história dessa empreitada virou tema de um documentário dirigido por Alfeu França, que também descobriu nos arquivos de Flávio de Carvalho os rolos do que foi filmado na expedição.

O documentário teve pré-estreia no Itaú e deve voltar a ser exibido no ano que vem. Além de todo o seu interesse histórico e biográfico, é engraçadíssimo. Alfeu França decidiu manter a mesma impassibilidade que Flávio de Carvalho demonstrava em suas performances, e a narração não move um músculo enquanto mostra, passo a passo, a completa loucura de todo o projeto.

Interessado tanto nas louras (que recrutou com um anúncio de jornal em Porto Alegre) quanto no cinema, o artista entrou numa rivalidade com o indigenista que comandava a expedição.

Depois de tentar liquidar o assunto a tiros, Flávio de Carvalho foi abandonado num igarapé e salvo por missionários.

Em meio à inviabilidade e ao improviso totais, o filme mantém a narrativa como numa espécie de exaltação protocolar, ao estilo dos documentários oficiais de 1950, da intrepidez do gênio.

Essa loucura a frio, essa provocação arquitetada a ponta seca, e realizada com ares de rabisco, talvez esteja na raiz da personalidade de Flávio de Carvalho. Haverá mais exposições sobre ele no ano que vem; falta muito, ainda, para se ter um retrato completo de seu talento disperso, feito de coragem e inconstância.

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Benjamin Britten

Por Folha
11/12/13 03:00

Com dez anos de idade, ele já tinha composto uma carrada de quartetos de cordas. Aos 14 anos, a lista de suas obras já alcançava 534 títulos.

A produção desses primeiros anos pouco se conhece hoje em dia, claro, mas a “Sinfonia Simples” de Benjamin Britten (1913-1976), terminada em 1934, aproveita com muita graça e verve algo dos materiais infantis do compositor.

Uso uma expressão algo estranha, “materiais infantis”, mas é de propósito. Quarto filho de um dentista, Britten nasceu numa cidadezinha pesqueira na costa leste da Inglaterra, e desde cedo foi objeto de um verdadeiro culto familiar.

O passado de menino prodígio iria sem dúvida ter reflexos difíceis na vida dele. Ofendia-se com facilidade; sem saber muito como, conhecidos de longa data de repente passavam a entrar na sua “lista negra”, tornando-se vítimas daquilo que um crítico classificou como “Britten’s characteristic froideur”. A típica frieza de Britten.

Além disso, os biógrafos se dedicaram a investigar as suspeitas de pedofilia em torno do maior compositor inglês do século 20. Nada de concreto, que eu saiba, ficou comprovado.

Durante toda a vida, ele manteve um respeitável casamento com o tenor Peter Pears; a homossexualidade, que na época impunha discrição, não impediu Pears de virar “sir” e Britten de receber uma distinção ainda mais elevada, tornando-se “lord Britten de Aldeburgh”.

Só não há dúvidas quanto à especial atenção que Britten dedicava a coros de meninos. Mais do que isso, a infância –e, especificamente, as ameaças sexuais a meninos bonitos– está presente em muito de sua produção.

Os entusiastas da ópera tiveram, em 2013, uma efeméride dupla: tanto Richard Wagner (1813-1883) quanto Giuseppe Verdi (1813-1901) têm celebrados os 200 anos de nascimento.

O centenário de Britten também merece ser marcado pelos apreciadores do canto lírico; mais do que ninguém, foi ele quem manteve a ópera como um gênero vivo em meados do século 20.

Sem ser dodecafônica nem vanguardista, a música dele pode ser bem áspera, ou melhor, aflitiva.

Algumas pessoas têm arrepio com isopor, canetinhas hidrográficas ou giz arranhando na lousa. Excelente orquestrador, Britten pode fazer coisas parecidas com cordas agudíssimas, sopros gélidos e xilofones batendo os dentes.

O frio, o vento, os impulsos do mar intratável da costa inglesa faziam parte da memória infantil de Britten e soam em muitas de suas composições. É preciso acostumar-se a elas: depois da “Sinfonia Simples”, um bom caminho é o “Guia dos Jovens para a Orquestra”.

Mostrando de forma brilhante e acessível os diferentes timbres dos instrumentos, é uma das raras obras genuinamente alegres de Britten. Ele pode ser exultante, animado, eufórico —mas a felicidade não é exatamente o seu forte.

Na sua cantata “Saint Nicolas”, a história fala de crianças ameaçadas de virar picadinho; elas vencem no final, mas a marcha comemorativa que termina a peça não deixa de parecer ambígua, ácida e crispada.

A ambiguidade está na raiz, entretanto, de suas obras mais significativas. Depois do “Guia”, vale a pena aventurar-se nos gélidos e engenhosos interlúdios que Britten compôs para “Peter Grimes”, ópera de 1948 que consagrou o compositor.

Música à parte, “Peter Grimes” vale como excelente espetáculo teatral também. Conta a história de um pescador, solitário e violento, que contrata aprendizes para ajudá-lo no barco.

O primeiro garoto morre; acidente, decidem as autoridades da aldeia. Outro menino o substitui. Volta do barco cheio de equimoses; numa tempestade, morrerá também.

Conforme a encenação, o pescador pode ser apresentado como um sádico ou apenas como vítima de circunstâncias especialmente infelizes. “Morte em Veneza”, “A Volta do Parafuso” e “Billy Budd”, outras óperas de Britten, mostram igualmente o jogo entre inocência e culpa, entre sedutor e seduzido, adolescente e homem adulto.

Alguns críticos, como Richard Taruskin, viram na situação de isolamento do homossexual a chave para “Peter Grimes”, escrita numa época em que “sodomia” ainda era crime na Inglaterra. Com o passar do tempo, é a pedofilia que surge como o segredo inconfessável dessa ópera.

Melhor pensar, entretanto, que o verdadeiro drama de Britten não reside em particularidades sexuais desse tipo. O adulto impiedoso e a criança sedutora convivem na mesma pessoa.

Cada ser humano sabe, na verdade, de que modo tratou e trata a criança que tem dentro de si. As dissonâncias e suavidades da obra de Britten constituem um fundo musical possível, e inquietante, para a história que todos carregamos dentro de nós.

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Gregorio Duvivier

Por Folha
04/12/13 03:00

Tirar poesia do cotidiano não é coisa tão rara assim. Afinal, ninguém mais se propõe a versejar sobre os deuses do Olimpo, os heróis da pátria ou as odaliscas do Oriente. Fala-se mais do gatinho de casa que dos colibris da Flórida, mais da casca de um pão que dos vinhos de Agrigento, mais do bar da esquina que das escadarias de Halicarnasso.

O problema, muitas vezes, não é que o cotidiano seja esquecido. É que ele se torna abstrato. O poeta escreve “pão”, “gato”, “rua”, “esquina”, “botequim” -e se dá por satisfeito.

Outra coisa, a meu ver, é recuperar o que existe de realmente cotidiano, de trivial, de pouco nobre, de passageiro, em palavras desse tipo. Se, em vez de “gato”, dissermos “gato amarelo” (o exemplo é de Roland Barthes, falando sobre Chateaubriand), a coisa melhora muito.

Se, em vez de “pão”, dissermos “pão de centeio”, também esse efeito de despretensão será reforçado. Mas é possível ir mais longe; em vez de “pão de centeio”, por que não escrever “Wickbold” de uma vez?

É o que faz Gregorio Duvivier em seu livro “Ligue os Pontos – Poemas de Amor e Big Bang” (Companhia das Letras). Miojo, revistinhas do Cascão, nuggets, rua Mena Barreto, Ford Ka, todo tipo de marca e produto pode entrar nesses versos de Duvivier, como nota o cronista Antonio Prata, também colega aqui da Folha.

Tudo poderia ser, entretanto, simplesmente uma poesia engraçadinha, documental e pop. Mas “Ligue os Pontos” vai muito além disso.

Experiências do dia a dia muitas vezes são registradas no papel sem maior elaboração, como se o trabalho do poeta fosse apenas anotar qualquer coisa em versos curtinhos e seguir adiante.

Tipo: “Oi/ como vai/ me dá um chopps/ e dois pastel”. Pronto, o poema está feito. Duvivier não cai nessa armadilha oswaldiana; seu cotidiano, e sua poesia, estão mais próximos de Manuel Bandeira que de Oswald de Andrade.

O segredo está, creio, em manter o texto sob tensão. O registro verbal instantâneo, a referência ao Ford Ka, não funcionam sozinhos. Se o objeto comum não se ilumina, não irrompe de algum lugar desconhecido, a poesia se empobrece.

Não vou contar como surge o Ford Ka num dos mais belos poemas de Duvivier; nem de que modo o pão da Wickbold aparece diante de seus olhos. Basta dizer que não estão ali à toa. Vêm carregados de toda a força poética que, ao longo dos versos anteriores, estava sendo preparada -como quem leva uma pedra até bem alto de um morro e, só no fim, deixa que despenque.

Para isso, o poeta usa de vários procedimentos. Destaco dois. O primeiro poderia ser chamado de “metáfora oculta”. Duvivier é mestre em criar imagens verbais muito precisas. Assim, a avenida Niemeyer, no Rio de Janeiro, se esgueira entre o mar e a montanha “como o Chile”, e a baía da Guanabara “é uma sopa de óleo diesel”.

Mas essas metáforas são apenas uma parte do jogo. Inserem-se em poemas que são comparações mais amplas, entre coisas escondidas.

O melhor exemplo está num poema sobre a necessidade de apagar a luz às seis da tarde, no mês de outubro, “sobretudo nos bairros sem praia”.

Ao longo de 20 versos, tudo nos leva a crer que se trata de algo amedrontador, que o assunto do poema são bandidos, milícias, traficantes; mas nada se diz a esse respeito, e menos ainda a respeito do que realmente está sendo descrito, e que se revelará sem dificuldade numa segunda leitura.

É a metáfora oculta, a metáfora “verdadeira” debaixo da metáfora “aparente”. Artista de primeira ordem, Duvivier não se torna chato nem hermético por causa disso.

O segundo procedimento é ainda mais refinado, acho, mas novamente não resulta em formalismo e “rigor” ao gosto acadêmico.

Quando veio o modernismo, o público se chocava com versos irregulares e sem rima. Esse efeito de novidade não existe mais. Duvivier segue, nesse ponto, a lição do poeta Armando Freitas Filho. Os seus versos são todos do mesmo tamanho, só que a “música” deles não acompanha o metro e o compasso das sílabas.

As pausas entre uma linha e outra parecem interromper o fluxo da frase; as repetições e as rimas, ou “quase rimas”, como que pulam de surpresa no meio dos versos. Palavras aparentemente casuais, como “volta”, “Urca”, “mate”, parecem estar botando a cabeça para fora da sintaxe, mudando de sentido e cortando a respiração do leitor.

Daí, sem dúvida, a tensão que se acumula durante o poema, e se libera no final. É o momento em que o leitor finalmente “liga os pontos” do que estava diante de seus olhos. Descobre com isso, também, uma nova e intensa estrela no horizonte da poesia brasileira.

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