Na escuridão
05/02/14 03:00É muito difícil, e quase invasivo, falar de tragédias como a ocorrida com Eduardo Coutinho. Um assassinato a golpes de faca, ao que tudo indica cometido pelo próprio filho, que sofre de esquizofrenia: ninguém teria nada a acrescentar à brutalidade do acontecido —não fosse o morto um dos mais importantes cineastas da atualidade.
Não há como procurar sentido nos fatos, mas talvez se torne inevitável ver os filmes de Eduardo Coutinho de outro jeito a partir de agora.
Lembro por exemplo um documentário antigo do diretor, “Santo Forte”. Naquele filme, com depoimentos de vários moradores de uma favela sobre as próprias experiências religiosas, o limite entre loucura e sanidade mental era questionado o tempo todo.
Pessoas sensatas, e mesmo descrentes, falavam com naturalidade de eventos sobrenaturais; o surto psicótico e a visão religiosa se confundiam no que era narrado, sem que ninguém deixasse de parecer normal depois daquilo.
Normais, para lá de normais, também eram os moradores de “Edifício Master”. Nada mais desinteressante, na aparência, do que aquelas personagens da classe média carioca.
Bastava deixar o tempo fluir, entretanto, para que em cada conversa a pessoa mais banal abrisse abismos de singularidade e sofrimento. É como se ninguém pudesse passar ileso pela vida —e o que diferencia cada ser humano de outro consistiria, sobretudo, na sua soma própria de acidentes.
Uso o termo como quem fala em “acidentes geográficos”: uma encosta, um precipício, uma montanha, cada qual com sua forma particular, resultado de não sei quantos tremores de terra, desabamentos, enxurradas, depósitos, florescimentos e resistências.
Ileso, entretanto, e sempre igual, parecia ser o próprio Eduardo Coutinho, abordando seus entrevistados, filme depois de filme. Era uma atitude que cheguei a qualificar de “quase sádica” a propósito de “As Canções”.
Vai chegar a hora, pensa o espectador, em que o entrevistado vai desabar no choro, apesar dos esforços para demonstrar a própria força, a capacidade de reconstruir a vida depois de alguma tragédia familiar ou grande decepção amorosa.
Atrás da câmera, Eduardo Coutinho não se abria para ninguém; qualquer documentarista conta ademais com um álibi suplementar, porque nem sequer a sua fantasia entra em cena.
O sofrimento, pensa o espectador, está nos outros. Tratava-se, de um modo muito radical, de um cinema “na terceira pessoa”. Era tão grande a recusa de Coutinho em fazer do cinema um lugar para a própria imaginação que seus documentários mostravam sempre a parafernália das câmeras e dos refletores.
Com isso, mostrava-se que a realidade dos entrevistados já estava tingida, por si mesma, de uma dose considerável de delírio, de autoengano, de mania. Coutinho, da sua cadeira de diretor, ocupava sempre o lugar do equilíbrio, do enquadramento, do responsável por deixar as coisas em seus devidos termos.
Por isso mesmo, nos seus filmes ele ficava no escuro. A escuridão à sua volta, entretanto, parece ter sido maior do que qualquer pessoa poderia prever.
* * *
Sabia que tinha esquecido alguma coisa no artigo da semana passada, sobre “Tango Livre”. No filme, um grupo de presidiários aprende os segredos do tango, que historicamente começou de fato como uma dança só entre homens.
Sugeri que a descoberta da masculinidade envolve também, para não cair em caricatura, o conhecimento da própria feminilidade. A ideia me veio depois de ler uma página de “Hora de Alimentar Serpentes”, livro de prosas curtas de Marina Colasanti (ed. Global).
Numa carta a seu amigo Fliess, Freud escreveu que estava se acostumando “a considerar todo ato sexual como acontecendo entre quatro indivíduos”. Um dos personagens anônimos de Marina Colasanti incomoda-se “com a presença de tantos” ao fazer amor com a mulher.
“Por fim”, escreve a autora, “desfez-se dos outros três que lhe ocupavam os lençóis, e dedicou-se a amar somente a parte feminina de si mesmo”.
Muitas estratégias de “despersonalização” como essa criam as surpresas às vezes forçadas, outras vezes de muito impacto poético, de “Hora de Alimentar Serpentes”.
Cito, e talvez venha a propósito, o texto que inspirou o título do livro.
“Hora de alimentar as serpentes que habitavam sua cabeça. Concentrou o pensamento em pequenas criaturas vivas, rã, passarinho. Um gosto de sangue chegou-lhe à boca, e o mover-se do novelo sibilante, que apenas intuía, aquietou-se. Sua segurança estava garantida por mais algum tempo. Dia chegaria, entretanto, em que suas inquilinas haveriam de pôr ovos.”