Vale o ingresso
27/11/13 03:00Conheço gente que, em especial depois da crise de 2008, tornou-se fundamentalista em matéria de investimentos financeiros. “O que você faria?”, perguntam. “Apostaria de novo todo o seu dinheiro em papéis e impulsos eletrônicos?”
Recomendam que se compre ouro. O velho metal amarelo é confiável há pelo menos 10 mil anos. O resto, com a possível exceção dos imóveis, não passa de fluxos de informação. Promessas de pagamento. Cartas de crédito.
Papeizinhos, em suma, que qualquer governo ou banco, um belo dia, pode rasgar. Pior que isso, bits na tela do seu computador.
Sim, pode haver algo de ilusório em tudo isso. Só que tendo a ser mais radical. O próprio ouro, afinal, concentra menos valor em si do que mitos e crenças. Supondo que valha para alguma coisa além de fazer anéis e obturações dentárias —mas estas já entram em desuso—, nada impede que seu preço desabe em definitivo.
Não entendo nada de finanças, mas já vi muita coisa de Woody Allen, e esses comentários sobre a importância do ouro vêm a propósito de “Blue Jasmine”, filme seu que entrou em cartaz recentemente.
Cate Blanchett (aposto meio quilo que ganha o Oscar) é Jasmine (na verdade Jeanette, mas ela trocou de nome), uma mulher grã-finérrima que perdeu tudo num escândalo financeiro. O marido (Alec Baldwin) era um desses magos do mercado que, a exemplo de tantos outros em 2008, manipulavam créditos podres em cima de créditos podres, iludindo milhares de poupadores e vivendo como nababos.
Woody Allen fez um filme bem mais dramático do que de costume. Não entrou, como costuma fazer de modo tão encantador, na fantasia dos seus personagens —caso de “Meia-Noite em Paris”, por exemplo.
Aqui, Cate Blanchett e algumas pessoas em volta dela vivem num plano de irrealidade mais ou menos intenso, mas o espectador se mantém a uma distância nítida daquilo que acontece.
A loucura, a ingenuidade, a simploriedade de muitas personagens faz com que o humor não desapareça de “Blue Jasmine”, mas a fonte de inspiração para a Jeanette/Jasmine de Woody Allen não poderia ser mais dramática.
Cate Blanchett é uma espécie de nova Blanche Dubois, a delirantemente refinada solteirona de “Um Bonde Chamado Desejo”, de Tennessee Williams. A exemplo daquela peça dos anos 1940, a grã-fina vai morar na casa da irmã, que tem uma vida pobre, simples, real.
No cinema, “Um Bonde Chamado Desejo” tinha um Marlon Brando belíssimo e brutal no papel do cunhado de Blanche. No filme de Woody Allen, o macho de plantão é Bobby Cannavale, namorado da irmã.
O ser humano, nos filmes de Woody Allen, nunca será tão mau como nas peças de Tennessee Williams. Há muitos patifes, mas não demônios. Há tentação e fraqueza, mas não perversidade.
Talvez isso seja a última ilusão de Woody Allen, que bem ou mal está com quase 80 anos, e não pretendo, de todo modo, fingir que sou mais experiente do que ele. Cada um julga as coisas segundo a própria experiência, e a minha, felizmente, de modo geral não me leva a desmenti-lo.
Nesse gênero de diagnósticos sobre a humanidade, tudo talvez se resuma a rótulos, palavras, papéis assinados ou escritos, tendo como testemunha Rousseau, Kafka, Nietzsche, Deus ou o Diabo.
Crédulo, em todo caso, Woody Allen não é. “Blue Jasmine” concentra na personagem de Cate Blanchett uma capacidade para a ilusão e para a mentira que, no fundo, parece disseminada na sociedade americana —e no mundo todo, por extensão.
Compramos produtos e mais produtos baseados no que nos diz a publicidade, sabendo perfeitamente que os anúncios não correspondem à verdade. As compras são feitas com cartões de crédito, que muita gente usa sem ter certeza de como vai pagar depois.
Parte de toda a dinheirama é, ou pelo menos foi, aplicada em títulos e fundos de investimento, sabe-se lá mais o quê, cujo valor se baseia na promessa de que alguém, algum dia, vai devolver todo o dinheiro, com um bom chantili de juros por cima.
Deu-se o calote, e o governo produz dinheiro para cobrir as perdas gerais; dinheiro no qual todos acreditamos, mas é papel, promessa de pagamento. Nem isso: ficaria louca a autoridade que quisesse produzir, fisicamente, todos os dólares que circulam por aí.
“Confiança” é a palavra mágica, em torno da qual gira a máquina e, com ela, todos os argumentos dos economistas. Não entendo de economia, como já disse; entendo um pouco de palavras, e sei que podem ser substituídas.
Que tal, em vez de “confiança”, “credulidade”, ou “mentira”? O cinema, como a literatura, produz as suas, claro; mas “Blue Jasmine” consegue dar à ilusão o peso, o lastro em ouro, do real. Vale, pelo menos, o preço do ingresso.