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Marcelo Coelho

Cultura e crítica

Perfil Marcelo Coelho é membro do Conselho Editorial da Folha

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A fala do teaaatro

Por Marcelo Coelho
24/10/13 14:48

Reclamei (ver post anterior) da fala exagerAAAda dos aTOOOres na montagem de “Nossa Cidade”. Naturalmente, é comum sentirmos esse tipo de estranheza quando estamos no teatro. Lembro-me de uma “Fedra”, com Fernanda Montenegro, em que essa grande atriz não apenas fazia um bló-bló-bló afinal adequado ao texto clássico, mas em que repetia, a cada frase, a mesma “melodia” vocal, gerando uma sensação de pobreza de meios quase insuportável.

No caso de “Nossa Cidade”, além do hábito da empostação teatral apareceu também o desejo do diretor de tornar tudo mais estereotipado –afinal, tratava-se de americanos cretinos comuns— e também a intenção de “estilizar”, de dar uma aura de irrealidade e distância às cenas do cotidiano. De modo que ao primeiro exagero se somam dois outros.

Jorge Luís Borges disse certa vez, nas suas conversas com Bioy Casares, que numa obra de arte sempre é possível encontrar justificativas plausíveis para um defeito evidente. Digo “defeito”, no caso, como equivalente de algo que atinja o nosso gosto, as nossas preferências.

Em todo caso, faz parte da arte do diretor e do ator a capacidade de, dado um “parti pris”, uma escolha estilística, trabalhar ao máximo as nuances, acrescentar novos sentidos dentro da “gramática”, da coerência que se quis impor ao espetáculo. Quando não se faz isso, tudo se torna mecânico e pobre.
No blog da Companhia das Letras, há um texto interessante sobre a “falsa oralidade”, escrito pela editora Vanessa Ferrari. Cito alguns trechos.
Chamo de falsa oralidade quando alguém diz alguma coisa de um modo que foge ao registro natural da fala. E normalmente isso acontece porque a pessoa incorpora na fala uma regra que pertence à língua escrita, sem atentar para os problemas que essa transposição ipsis litteris pode causar. Um exemplo bastante comum da falsa oralidade são os desenhos infantis.
As crianças, como se sabe, são uma graça. Pelo menos uma parte do tempo. Elas reproduzem tudo tal qual ouvem e veem, sem ironias ou despistes, e são inúmeros os exemplos de como elas podem ser originais com o uso da língua, uma vez que ainda não foram enquadradas pelo manual da correção e do bom-tom. Mas essa originalidade, reconhecida e celebrada aos quatro ventos, implode quando elas imitam um personagem de desenho animado. Nessa hora, fingindo-se de super-herói, elas reproduzem essa falsa oralidade a que estou me referindo. Por exemplo, assim: “Vamos, sigam-me, amigos. A pedra filosofal está em minhas mãos e eu nunca mais deixarei que ela escape”. Sigam-me, amigos? Deixarei?

Ah, mas aí eu discordo. Acho ótimo que as crianças desde cedo usem esse tipo de vocabulário. Os desenhos animados são na verdade uma das melhores introduções ao mundo da linguagem escrita; sem contar que, entrando nesse mundo, estabelece-se a diferença entre realidade e ficção.

Outra coisa, claro, é fazer de “Nossa Cidade” um espetáculo dublado pela empresa Álamo.
Em todo caso, Vanessa Ferrari está certa quando diz que
No teatro, ao vivo, a falsa oralidade fica ainda mais gritante. Porque ninguém — absolutamente ninguém — fala sem achatar, comer, subtrair, trocar, incluir na palavra uma letra aqui, outra ali.
Nesse sentido, é justificável que se fale de maneira diferente no teatro. Só que,
Somada à ideia de apagar esses resquícios de “imperfeição” nos diálogos — que já foram construídos de forma pouco natural —, há um tipo de interpretação baseada no exagero que acentua muito essa impressão da falsa oralidade. Não é preciso arregalar os olhos para demonstrar temor. Tampouco fazer caretas nos momentos de insegurança. Quem chora tenta esconder a lágrima, não o contrário. Na maioria das vezes, o riso emite um som moderado, muitas vezes som nenhum. A risada desbragada é uma exceção. Medo e constrangimento raramente se traduzem por uma gagueira momentânea. E como é difícil gaguejar de mentira! O que fazemos o tempo todo é disfarçar as angústias e inseguranças. Mas boa parte da atuação cênica privilegia o escancaramento delas, numa espécie de caricatura de nós mesmos, embora, no fundo, não pareça ser essa a intenção. E se isso se repete com tanta frequência é possível que não seja só uma questão de direção, roteiro ou atuação, mas de algo tão arraigado que parece ser imutável.
Justificativas: bem, ninguém está obrigado a ser perfeitamente natural e realista numa montagem de teatro. Mas também é chato quando, para não ser “natural”, o ator acaba fazendo de seu personagem um pateta.

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Nossa cidade

Por Folha
23/10/13 03:00

Sofremos, e sentimos muita saudade, claro, quando morre uma pessoa querida. Mas a coisa pode ser pior ainda, se vista da perspectiva inversa. Imagine a dor dos mortos, se pudessem contemplar a vida dos familiares e dos entes queridos a quem deixaram.

Também eles, como os vivos, teriam de passar pelo longo trabalho do luto; a despedida não se completa de uma só vez. É preciso deixar que o tempo desfaça os laços do sentimento, até que por fim, em cada túmulo, os mortos se calem na indiferença, no descanso, no nada.

Essa ideia rende as passagens mais emocionantes de “Nossa Cidade”, peça de Thornton Wilder (1897-1975) agora em cartaz no Sesc Consolação. A inversão de perspectivas, que surge na segunda parte do espetáculo, já se anuncia em algumas falas iniciais dos personagens.

Um rapazinho e sua vizinha da mesma idade se descobrem, ou melhor, se adivinham apaixonados um pelo outro. A noite cai sobre uma cidadezinha americana; o ano é 1901.

Você sabia, pergunta ele, que a luz dessas estrelas demorou milhões de anos para chegar até nós? Vemos o cintilar de mundos que, provavelmente, estão mortos há muito tempo…

Talvez seja o contrário, diz a menina. Talvez nós é que estejamos mortos para eles…

É uma daquelas frases que funcionam lindamente no teatro. A plateia, que ouve aquele diálogo supostamente ocorrido há mais de um século, também se sente como as estrelas.

Acompanha em silêncio o cotidiano de pessoas quaisquer (um médico, um leiteiro, o organista da igreja), que ganham vida no palco, mas só ao preço de não saberem que já estão mortas, e que nunca existiram de verdade.

Mas por QUÊÊ os aTOOres TÊÊM de faLAAAAR deeeste jeiTOOO o TEEMpo inteirOOO? Não é bem uma cantoria, é uma entonação muito artificial, às vezes carregada de sotaque paulistano: “Descêêindo a rua”, passa o garoto “inteligêêinte”…

No caso, é possível que o diretor Antunes Filho tenha mesmo desejado acentuar a falsidade, a irrealidade daquela vidinha no interior dos Estados Unidos.

Pobre Thornton Wilder! Sua peça teve sucesso imediato, ao estrear em 1938. Logo vieram as críticas. É que “Nossa Cidade” faz uso de uma espécie de narrador, de apresentador, que se coloca fora da ação; a vida dos personagens ganha assim um olhar distanciado, e o realismo das cenas se recobre de um véu irônico.

Tratava-se, para os modernistas mais intransigentes, de uma espécie de desonestidade artística. No fundo, a peça de Wilder tinha objetivos puramente sentimentais e acríticos: “Como é doce a vidinha americana, em que todos nascem, casam, trabalham e morrem…”.

Para disfarçar esse conteúdo, continuam os críticos, usou-se de um recurso de vanguarda: a tática do estranhamento brechtiano, com o narrador mostrando que tudo é fragilidade e ilusão.

Seria o equivalente teatral de pintar aquelas ilustrações, tão confortáveis e “integradas”, de Norman Rockwell, só que acrescentando uns esfumados, uns desarranjos de perspectiva, para se vender como arte mais sofisticada.

Essa avaliação, carregada de rigor modernista, não resiste à beleza do texto. Trata-se de uma peça “fácil”, sem dúvida, na sua capacidade de dizer o que tem a dizer; mas nem por isso barata ou desonesta.

Aí entra Antunes Filho. Em tese, seria o diretor ideal para uma montagem de “Nossa Cidade”. Sempre soube emocionar o público, até com alguns toques de sentimentalismo; digamos que tem, como poucos, o dom de suscitar a simpatia pelos personagens de seu espetáculo.

Ao mesmo tempo, usa de vários recursos de estilização: as andanças dos atores de perfil, alguns movimentos em câmara lenta, o uso de atores no fundo do palco como uma espécie de “coro visual” para o que se passa na frente da cena.

Esse tipo de coisa não bastou a Antunes Filho. Ele quis ideologizar a peça: fazer do espetáculo uma espécie de libelo contra os Estados Unidos. Põe os personagens marchando com bandeirinhas americanas (de perfil, é claro), e uma menina empunhando a tocha da Estátua da Liberdade (em câmara lenta, é claro), para dizer que todos aqueles cidadãos de Thornton Wilder não passavam de babacas.

O narrador aparece de cadeira de rodas, como um veterano do Vietnã (só que tirado de algum filme de Hollywood sobre veteranos do Vietnã). A fúria do diretor diante da famosa “hipocrisia americana”, para usar um clichê, fica o tempo inteiro lutando contra a humanidade, que não é americana nem brasileira, de personagens que, simplesmente, viviam sua vida sem saber da própria morte. Que tentam voltar à vida, mas só encontram seu funcionamento mecânico, cego, talvez feliz, quando a encaramos da perspectiva do desaparecimento.

Thornton Wilder, mais uma vez, deve estar se remexendo na tumba.

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Alice Munro

Por Folha
16/10/13 03:00

Coisas horríveis podem acontecer na vida de qualquer pessoa, como sabemos. Sabemos também que, depois de um tempo, uma tragédia termina sendo “metabolizada” (para usar um termo da moda), ainda que nunca se supere de fato.

Parece ser esta a matéria-prima dos contos de Alice Munro, que acaba de receber o Prêmio Nobel de Literatura. Vou lendo seu livro mais recente, “Dear Life”, a ser lançado em português pela Companhia das Letras.

É preciso ter bons nervos. Uma jovem mãe cede ao impulso de fazer amor durante uma viagem de trem. Deixa a filhinha num vagão, dormindo, bem quietinha, claro, e vai ao encontro do rapaz em outro vagão. Quando ela volta para ver a filha… xiii… O leitor já sabia, é claro, que boa coisa não iria acontecer.

Em outro conto, a personagem principal é uma menina pequena. Ah, ela tem uma irmã mais velha. A mãe se separou há pouco do marido, e vive num trailer, a meio caminho entre a cidade e o mato. Estamos no Canadá. Há lobos no lugar. Também faz frio. O degelo cobre de água uma cratera, de onde se extraem pedregulhos de construção.

Uns 20 pés de profundidade, especifica Alice Munro. A cachorrinha da família parece que entrou na água; não sabe nadar direito. A menina mais velha acha que sabe. Vai tirar a cachorrinha do poço. Hum, a menina está com roupas de inverno. Xiii…

Não estrago as surpresas da história, se é que existem, porque de qualquer modo outras coisas acontecerão, e nem todas acabam acontecendo. Mas com isso já se tem ideia do tipo de visão que Alice Munro pretende transmitir.

A ideia é explorar o passado como trauma. Para evitar a violência extrema das situações narradas, a autora recorre a uma estratégia de velamento. Ou seja, as pessoas não se lembram direito do que aconteceu, as coisas são contadas muito aos poucos, a aparente “ininteligência” do narrador infantil é reproduzida na escrita.

Evita-se, corretamente, que o leitor receba o impacto direto de uma revelação trágica; vai deduzindo por si mesmo tudo o que aconteceu.

Com isso, embora a narrativa se estenda por poucas páginas, o tempo subjetivo da história se torna lentíssimo, angustiante.

É uma espécie de câmera lenta emocional. Enquanto a dona de casa vai de um vagão a outro, cenas de seu casamento anterior, problemas profissionais ou domésticos vão sendo rememorados –como se a autora estivesse pronta a escrever um romance inteiro.

Só que, debaixo da largueza, da ociosidade desse fluxo de associações e memórias, os fatos reais estão acontecendo, e a tragédia se tece para os personagens.

São em geral mulheres a caminho da meia-idade, vivendo a vida sem graça de alguma cidadezinha canadense depois da Segunda Guerra Mundial, vagamente a par das tensões entre Estados Unidos e Rússia.

A ameaça nuclear já sumiu do horizonte contemporâneo, sem dúvida, mas o trauma dos atentados de 11 de Setembro justifica mal ou bem o clima sinistro.

Para este leitor brasileiro, entretanto, saltam aos olhos os sinais de artificialidade na escrita. Parece aqueles filmes baseados em histórias de Stephen King: num agradável bairro suburbano, com suas calçadas limpíssimas e gramados perfeitos, uma criança passeia de bicicleta.

Sol, primavera, “tudo normal”. A trilha sonora, entretanto, já está produzindo seus zumbidos graves e inquietantes. Estamos avisados.

O sentido do trágico se perde, e é substituído por outra coisa: o aziago, o agourento, o ominoso. Os contos de Alice Munro são como piadas de humor negro, só que sem humor nenhum.

Assume-se, para efeito de profundidade e desencanto, que tudo ocorre num universo sem Deus. Várias denominações religiosas protestantes voejam, como moscas, em volta dos personagens mais mortos do que vivos.

A falta do Pai, do Filho e do Espírito Santo não ganha muito, todavia, quando a autora apela ao simples Espírito de Porco. “Naquela época nós morávamos perto de um buraco de pedregulhos…”

Depois de meia dúzia de mortes e acidentes, o leitor sabe que essa descrição não está ali por acaso, e a suposta inocência de quem narra a história se compromete duplamente.

Tem de ser criança para que o horror apareça de forma velada. Tem de ser bastante adulta para reorganizar a experiência. O resultado é que muitas vezes os personagens de Alice Munro parecem pouquíssimo inteligentes; propostas de casamento, ameaças de chantagem, negócios imobiliários se sucedem com o óbvio intuito de produzir sofrimento. E de dar ao leitor a imagem de uma escritora desencantada e profunda.

Alice Munro ganhou o Prêmio Nobel. Bem, não é caso para maiores alarmes. Coisas bem piores podem acontecer.

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Mitos e luxos da Antiguidade

Por Marcelo Coelho
15/10/13 11:53

O estudo da antiguidade parece ainda trazer suas surpresas. Sabe os Jardins Suspensos da Babilônia? Gerações de arqueólogos procuraram vestígios da obra –e, pelos relatos, tratava-se mesmo de uma obra de engenharia complicada, exigindo canais e dutos que bombeassem água para regar árvores e plantas dispostas em vários andares.
Nunca acharam nada. Um livro de Stephanie Dalley, “The Mystery of the Hanging Gardens of Babylon”, cuja resenha leio no “NYRB”, traz a solução. Os Jardins Suspensos nunca estiveram localizados na Babilônia, e sim… na Assíria, império rival ao norte. Para os cronistas judeus e romanos, “Babilônia” funcionava como um termo genérico, para indicar a corrupção e o luxo das potências da Mesopotâmia. É nas ruínas de Nínive, na região que hoje corresponde à cidade iraquiana de Mossul, que se acharam vestígios de aquedutos, poços e canais compatíveis com a descrição dos jardins suspensos.
Outra história famosa está passando por revisão. Um exemplo famoso de imperador romano louco e celerado é o de Calígula, que nomeou seu cavalo para o Senado, e alimentava-o com aveia misturada a flocos de ouro.
Novas teorias argumentam que isso não era prepotência de Calígula, mas uma crítica pública aos excessivos gastos dos membros da instituição. É o que sugere uma das maiores autoridades inglesas no mundo antigo, Mary Beard, em “Confronting the Classics”.

 

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Não me diga que é um Matisse

Por Folha
09/10/13 03:01

O diretor Costa-Gavras está com 80 anos, e já passou para a história como autor de grandes filmes políticos. Recentemente assisti ao DVD de seu “A Confissão”, com Yves Montand.

Sem nenhuma crueza, aquele filme de 1970 tratava dos julgamentos espetaculares nas antigas ditaduras do Leste Europeu, em que altos dirigentes terminavam admitindo suas “traições” ao regime.

Confessavam tudo o que não tinham feito. Os métodos de tortura não seguiam o modelo brasileiro do pau de arara e do choque elétrico. Importava produzir, num tribunal farsesco, a impressão de que tudo era voluntário e verdadeiro.

Meses de privação de sono, além de outros métodos para produzir exaustão física e mental, levavam o preso a assinar declarações cada vez mais comprometedoras, graças a um estudado jogo de ambiguidades verbais.

Assim, o personagem de Yves Montand terminava admitindo ter feito seguidas reuniões com “trotskistas” e “agentes do imperialismo”. Eram apenas seus colegas de partido, entre os quais inúmeros heróis da resistência ao nazismo.

Ele podia dizer, e era verdade, que nunca soube que Fulano e Beltrano eram trotskistas. “Mas eram”, afirma o interrogador. “Você se reunia com Fulano e Beltrano?”
“Sim”, responde o preso. “Então, se você se reunia com Fulano e Beltrano, e se eles eram trotskistas, você se reunia com trotskistas.”

Estava feita a confissão; o crime era admitido pelo réu, “objetivamente”. Mesmo se, na época das reuniões, todos os participantes, americanófilos, trotskistas ou comunistas, estivessem unidos na resistência ao nazismo.

“A Confissão” é um filme que continua importante, ainda mais quando se sabe que o sistema de interrogatório preferido pelo governo Bush no combate ao terrorismo inspirou-se nas técnicas soviéticas.

Com a burrice suplementar, observe-se, que no Leste Europeu o objetivo da tortura era conseguir confissões falsas, e não informações de fato úteis sobre atentados em curso.

Aprendia-se algo com os filmes de Costa-Gavras de 40 anos atrás. Não é o caso de sua obra mais recente, “O Capital”, atualmente em cartaz em São Paulo.

Aqui, a ideia é mostrar a dureza e a ganância dos banqueiros. Recém-nomeado presidente de um conglomerado financeiro, Marc Tourneuil (Gad Elmaleh) terá de demitir milhares de funcionários para garantir o lucro dos acionistas.

Seu antigo chefe, afastado do banco por razões de saúde, fica chocado. Não é esta a tradição francesa de tratar com o problema social, argumenta. Nessa hora, o espectador deve tirar do bolsinho superior do paletó seu lenço de seda Hermès e enxugar uma lágrima comedida em homenagem ao tradicional sistema bancário europeu.

Quanta saudade. Hoje, os americanos estão por trás de tudo. Os controladores de um fundo de investimento com base na Flórida (?) querem dinheiro fácil.

Iates, supermodelos e ameaças irão cercar o cotidiano do novo executivo, sempre nervosinho e sensível a um rabo de saia. Clichês se sucedem. Tourneuil tem pouco tempo para a família. O filho adolescente nem tira os olhos do videogame quanto ele chega de suas aventuras.

Para conquistá-lo, o executivo traz um presente. “É seu primeiro cartão de crédito, filho.” O garoto nem agradece. Ah, conclui o espectador, “existem coisas que o dinheiro não pode comprar”.

Mas aí o mesmo espectador lembra que ouviu esse tipo de mensagem em algum anúncio, já não sabe se de banco ou de cartão de crédito. Pobres publicitários! As coisas que eles têm de fazer.

Que tal, então, mostrar os “bastidores reais” da alta cúpula? Os banqueiros se reúnem no salão de um palácio particular.

Um esplêndido quadro se destaca na parede. O executivo número 1 pergunta ao executivo número 2: “Matisse?”. Frrancameént. Clarro que se trrát de um Matisse. Da melhorr fááz. A esta altura do campeonato, até o mais humilde mendigo de Bobigny ou Bagnolet sabe reconhecer um Matisse.

Seguem-se declarações de princípios, do tipo “os sindicatos que se danem! O que importa é a alta da nossa cotação na Bolsa!”.

Tudo, mesmo as tramoias entre os rivais do conselho, fica nesse nível de abstração —como se, em vez de executivos reais, tivéssemos apenas um grupo de colegiais encenando a lição que aprenderam em alguma aula de atualidades.

Os realizadores de “O Capital” poderiam ter caprichado mais no roteiro. Mas, como sabemos, bons roteiristas também custam caro. Pode ser que a produção, coitada, não tivesse tanto para gastar. Ou, talvez, tenha economizado nisso para aumentar os próprios lucros.

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voltaire de souza

Por Marcelo Coelho
08/10/13 09:06

Algumas contribuições recentes do cronista do “Agora”

CONEXÃO REFEITA

Riso. Humorismo. Comédia.
Novos talentos surgem na internet.
Aos doze anos, Felipe acompanhava um site de piadas impróprias.
A mãe se chamava Orlanda.
–Já não faz a lição.
Felipe respondeu com palavras pesadas.
–Mãe chata pra car…
O primeiro tapa cortou a conexão do computador.
Outros atingiram o jovem usuário.
A TPM. O stress. A solidão de uma divorciada.
Recomendaram tratamento médico.
O dr. Pablo Monchea fazia atendimento domiciliar. Modelo cubano.
Orlanda já se sente muito melhor.
–Faz aquela varredura de vírus de nooovo…
O pequeno Felipe largou a comédia.
Assiste a discursos de Fidel Castro na internet.
E propõe plantar cana no jardim do prédio.
A vida familiar é como conexão de computador.
O cabo tem de entrar até o talo.

PONTOS PERDIDOS

Vexames. Derrotas. Decepções.
A crise se abate sobre alguns times do futebol paulista.
O humor de Hélder era dos mais sombrios.
–Porcaria.
Ele seguia pelo computador.
–Nem as musas da torcida se salvam.
O concurso traz belas torcedoras.
–Só baranga.
Hélder clicava.
–Olha a flamenguista. Isso é que é mulher.
O pensamento do rapaz voou para outros horizontes.
Cocos. Praias. Quiosques.
–Um chopinho… um papo.
A tarde chegava poluída para os lados de Congonhas.
Tocou o telefone.
Rose era uma antiga namorada.
–Quando é que você aparece aqui em Guaianazes?
O encontro terminou em zero a zero.
–Ai, Hélder. Não me diga que você já entrou na zona do rebaixamento.
O amor é um grande campeonato.
Por vezes, não adianta apelar para o time reserva.

HORA DA VERDADE

Tensão. Nervosismo. Expectativa.
Era dia de julgamento em Brasília.
O deputado Nilson Vaccalini recebia a visita de amigos e correligionários.
–Vai dar tudo certo, não se preocupe.
–É… mas o julgamento está empatado.
–Olha, olha, o voto vai começar.
O doutor Laurênio Librandi era experiente e equilibrado.
–Arrém, arrém… antes eu farei algumas considerações…
O coração de Vaccalini batia acelerado.
Duas horas se passaram.
–Ademais, sem querer me alongar, o parágrafo 98…
–Pô, ele não desembucha nunca.
Vaccalini respirou fundo.
–Então desembucho eu.
Foi até a janela. E saiu berrando para os repórteres.
–Sou culpado. Sou culpado, cacete. Me prendam. Pelo amor de Deus.
A Justiça, em sua lentidão, por vezes é a pior tortura.
SEM CATUPIRI

Ordem. Família. Religião.
Nosso povo precisa de orientação espiritual.
O padre Pelozzi preparava com capricho o seu sermão.
–A muglierata tem de engravidare.
Ele pensava em imagens sacras.
–La madonna. Com il suo bambino.
Olhava em volta.
–Cadê os barrigó?
Cai a natalidade nas cidades brasileiras.
Veio o suspiro.
–Vocês só gosta di home dando beggio em home.
O coroinha veio com a notícia ao pé do ouvido.
O papa Francisco avisa. A Igreja está com muita mania de falar de sexo.
–Va bene. Entó tô liberatto di falar dessa coisarata.
O sermão foi sobre a gula.
–Pizza de aliche. Meglior só três fatia. E senza catupiri.
A religião, por vezes, é como uma sessão do Supremo Tribunal.
As culpas são muitas. Mas tudo pode terminar em pizza.

JUSTIÇA SERENA

Pressão. Patrulha. Vigilância.
Pode ser complicada a vida dos magistrados brasileiros.
O dr. Edíneo suspirava.
–Mais um pepino…
O caso atraía as atenções da grande imprensa.
–Não aguento resolver mais essa.
Recomendaram-lhe ajuda espiritual.
O pai Futaba fazia sessões de descarrego.
Com toques de sabedoria oriental.
–Turibunaro compuricado.
Edíneo aproximou-se com respeito.
–Gostaria de manter serenidade nesta difícil decisão.
O pai de santo japonês preparou rezas e banhos.
–Agórua non urepete mensarô.
Edíneo fechou os olhos. Risos. Fúria. Gargalhadas.
–Vem, meu Exu.
Chutou poltronas e advogados. E já condenou até a moça do cafezinho.
Os poderes do além são como os tribunais de Brasília.
Na dúvida, é melhor suspender o julgamento.

TOQUE TROPICAL

Ventos. Chuvas. Tempestades.
Nem sempre é tranquilo voar.
Os passageiros no rumo de Belém estavam inquietos.
Aviso no sistema de som.
–Nova área de turbulência.
Dona Edília tentou pegar a caixinha dos remédios.
O tranco espalhou as pílulas pelo corredor.
–Ai que eu sofro do coração.
Maletas despencaram dos bagageiros.
Dona Edília gemia.
O comandante fez a pergunta.
–Algum médico a bordo?
Um braço gordo levantou-se no fundo. A pele negra.
Edília ficou mais nervosa.
–Ai meu Deus. Não me diga que é cubano.
–Calma, mi señora. Hay cosas peores que una agitación.
As mãos de Pablo Monchea tocaram com carinho a anciã.
Ela fechou os olhos. Rumbas. Praias. Palmeiras.
A calma veio junto com o suco de abacaxi.
Com açúcar, tudo se engole mais fácil.

NO RITMO DA RUMBA

Gripes. Viroses. Infecções.
O tempo seco ajuda a proliferação dos germes.
Elizângela se preocupava.
–A mamãe… anda com a saúde tão frágil.
Aos 80 anos, qualquer resfriado vira pneumonia.
Família grande. Os irmãos de Elizângela tinham outras preocupações.
–O banco ligou de novo?
Dívidas. Rombos. Juros altos.
Edmeu era o mais nervoso.
–E a mamãe naquele casarão.
A propriedade do Pacaembu poderia dar uma boa herança.
Veio a ideia.
–Chama um médico cubano.
–Boa. É de graça e… se ela não resistir…
–Quanto vale mesmo o terreno?
Dona Alcênia foi apresentada ao doutor Juan Pablo.
Simpático. Atlético. Tropical.
Ela rejuvenesceu mais de 30 anos. No ritmo da rumba e do cha-cha-cha.
Quando falta o amor em casa, o melhor é trazer de fora.

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Águas e águas

Por Folha
02/10/13 03:00

No final de “O Céu que Nos Protege”, filme de Bernardo Bertolucci com Debra Winger e John Malkovich, o narrador faz algumas reflexões sobre a história que acaba de contar.

“Como não sabemos a hora em que vamos morrer, temos a tendência de achar que a vida é uma espécie de poço inesgotável”: poderíamos sempre tirar água lá de dentro.

“Mas”, prossegue, “as coisas só acontecem um número determinado de vezes, um número bem pequeno, na verdade. Quantas vezes você irá ainda ver uma lua cheia nascendo no horizonte? Vinte, talvez. Quem sabe menos.”

Ele também pergunta: “Quantas vezes você ainda vai se lembrar de uma certa tarde na sua infância, uma tarde bem comum, mas que se tornou uma parte tão íntima de você mesmo que você não poderia imaginar sua vida sem ela?”

São feitos de tardes assim os contos de “Aquela Água Toda”, de João Anzanello Carrascoza (ed. Cosac Naify). O livro, curtinho, concentra-se em lembranças de infância, tendo como personagem principal alguém a quem o autor, na maioria das vezes, se refere só como “o menino”.

Assim, na primeira história (a que dá nome ao livro), ficamos sabendo que “o menino estava na alegria”. Era verão, e a mãe anuncia: “Iriam à praia de novo”. Em menos de quatro páginas, o conto mostra toda a expectativa do personagem até entrar novamente no mar.

“Ele flutuava no silêncio, de tão feliz”, escreve Carrascoza. Na véspera da viagem, o menino demora para dormir: “Não podia perder aquele futuro que chegava, de mansinho, aos seus pés”.

Até que ele adormece no sofá, e o pai leva-o para a cama, “com seus braços de espuma”.

A grandeza literária do autor não está apenas em manter, com admirável simplicidade, todas aquelas sensações do menino num âmbito de imagens marinhas: flutuação, espuma, dias que se aproximam de nossos pés como a água da rebentação.

O conto também evoca outro tipo de ambiguidade, que certamente sentimos ao entrar nas águas do mar. Ao mesmo tempo em que nos acolhe, o mar é infinito; pode ser uterino, mas é desconhecido também.

Também a infância se compõe de familiaridade e descoberta. Tudo é novo, mas não há nada mais forte do que a rotina, a sensação de que nada, nunca, irá mudar. O pai, carregando o menino nos braços, é suave, leve, contorna o corpo e brinca à sua volta, como a espuma.

Como a espuma, contudo, haverá de desaparecer rapidamente. Os contos de “Aquela Água Toda” estão longe de trazer uma visão adocicada da infância. Tem-se frequentemente a sensação de que algo muito ruim irá acontecer.

Por acaso, antes de ler o livro, eu o abri em uma página que terminou me preparando para o clima geral dessas narrativas de Carrascoza. O céu é sempre azul e o dia está sempre começando; as pessoas cuidam de abrir a janela, abrir a porta, de modo que o mundo, indubitavelmente bom, venha a oferecer-se em luz.

É a luz, entretanto, que torna mais branco ainda o papel de uma carta –que o menino não pode ler. O rosto da mãe se modifica. Também o coração do leitor se aperta, e irá apertar-se várias vezes nas poucas páginas desse livro belíssimo.

Reencontro em “Aquela Água Toda” as emoções de outra narrativa extraordinária,  “Uma Morte em Família”, de James Agee (ed. Companhia das Letras).

O romance começa com uma evocação da noite e do calor no sul dos Estados Unidos. O lirismo dessa passagem levou o compositor Samuel Barber a criar uma de suas mais belas obras para canto e orquestra, “Knoxville: Summer of 1915”, que não é difícil de achar no YouTube.

A família inteira, mãe, pai, tios, resolve se deitar à noite no quintal. Todos, diz o narrador, são maiores do que eu; a grama está úmida, as estrelas estão vivas, ouve-se o rumor de um bonde na distância. Cito traduzindo com minhas palavras.

“Depois de um tempo me carregam para a cama. O sono, suave e sorridente, me acolhe; e todos me acolhem, os que cuidam silenciosamente de mim, como alguém amado e familiar naquela casa.”

Mas nenhum deles, prossegue Agee, “nenhum deles, não agora, não em momento nenhum, nenhum deles me dirá, nunca, que pessoa eu sou”.

Acrescente-se que, se lhe tivessem dito, Agee provavelmente não teria escrito livro nenhum. E João Anzanello Carrascoza não teria recolhido, de suas memórias junto ao mar e no quintal de casa, tanta água. São águas e águas.

Felizmente, o poço a que se refere Paul Bowles (autor do livro que inspirou “O Céu que Nos Protege”) é profundo o bastante para saciar a sede de muita gente e para alimentar as memórias de mais de um leitor –mesmo depois de terem desaparecido, como espuma, os personagens de tantas histórias.

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Jobs

Por Folha
25/09/13 03:00

Num tempo em que o Brasil ainda não era grande coisa, digamos no começo da década de 1980, um amigo especialista em relações internacionais tentava me curar do complexo de vira-lata.

Ele conhecia razoavelmente os bastidores da ONU. Garantiu-me que, por lá, as posições tomadas pelo Itamaraty eram levadas em consideração, e que nosso país não era visto como uma republiqueta.

“Você não sabe”, dizia o amigo, “o que o embaixador americano na ONU faz com os representantes dos países da América Central”. Chama-os para seu gabinete e, segundo se comenta, “as cenas ali são proibidas para menores de 18 anos”.

Chantagem? Corrupção? Ameaça física? Sexo forçado? Interlocutor discreto, o amigo nada mais me adiantou, e de todo modo minha curiosidade não ia tão longe.

Respirei aliviado, concluindo que, à falta de maiores ativos econômicos e políticos, o Brasil pelo menos contava com grande contingente populacional e com a sempre enaltecida extensão de seu território.

A ideia de que o poder pudesse exercer-se tão cruamente ficou na minha cabeça, mas não cheguei a ler livros de história capazes de dar bons exemplos gráficos desse tipo de coisa.

Mesmo no cinema, a violência das ruas supera em muito o que possa acontecer nos gabinetes.

O mais interessante de “Jobs”, filme de Joshua Stern sobre o criador da Apple, está no que consegue mostrar da pura brutalidade, verbal e moral, que parece prevalecer no mundo corporativo.

Não tenho nenhum fetiche por iPods, iPads, iPhones e outras coisas parecidas; para mim são todos bastante iguais, aliás, e qualquer admiração que eu possa ter pelo inventor desses badulaques já fica relativizada com a constatação de que, pelo menos em matéria de nomes de produtos, a criatividade de Steve Jobs não é das mais ofuscantes.

A julgar pelo filme, ele era antes de tudo um monstro. Desde sua entrada no mundo da informática, desenvolvendo aqueles joguinhos primitivos de Atari, Steve Jobs grita, humilha, apunhala e pisoteia quem passa pela sua frente.

Sua primeira negociação, com o proprietário de uma lojinha de acessórios eletrônicos, já se apresenta como duvidosa, para dizer o mínimo. Jobs mente, ou blefa, a respeito de suas possibilidades como fornecedor de um novo tipo de aparelho —no qual, mente de novo, inúmeras outras lojas estavam interessadas.

O aparelho, claro, é um modelo de computador que se pode usar dentro de casa, acoplado à tela de TV. A genialidade técnica da invenção não proveio de sua mente autocentrada, cujo caráter visionário e persistente se confunde com os defeitos do açodamento e da cegueira.

Ele percebeu que o mundo poderia ser outro, se surgisse alguém capaz de saber o que o consumidor deseja, antes mesmo que esse desejo fosse percebido.

O preço a pagar durante o caminho é de não ver mais nada, nem ninguém, entre o primeiro passo e o objetivo final. Jobs ignora tudo —até a namorada grávida e depois a própria filha— em favor desses aparelhos que, por sua vez, tanto nos ajudam a conhecer e a ignorar o mundo.

Isso seria o de menos, não fosse a presença de outros humanoides tão determinados e impiedosos quanto ele. São os que terminam por destituí-lo da própria empresa. Jobs só era suportável se desse lucros aos acionistas; mas sabemos de que modo as novas tecnologias têm o poder de emperrar e não dar certo.

Quando ele volta para a Apple, supostamente mais humano e sábio, o espectador já está farto de torcer por um sujeito tão detestável. O próprio Jobs se deixa amolecer, e os produtos da empresa começam a ganhar a aparência que têm hoje.

O jovem designer lhe mostra o protótipo de um computador arredondado e branco, de onde brotam, como num bufê infantil, balões transparentes de cor. Jobs aprova, recorrendo novamente à retórica de uma tecnologia humanizada e doce.

Mas o que havia de revolucionário no uso caseiro de computadores não se confunde com a cosmética de um novo produto, ou com sucessivas versões de um brinquedo básico.

Depois de nos convencer da antipatia fundamental do protagonista, o filme muda de foco. Jobs não importa mais; sequer sua mensagem merece atenção. Não é preciso elogiar o inventor; o filme só quer que gostemos da marca que ele criou. Jobs seria o primeiro a aprovar esse ponto de vista.

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Questões de ordem

Por Marcelo Coelho
19/09/13 10:41

Artigo publicado hoje na Folha.

Pingos nos is

Pode ser chato aceitar isso, mas o voto de Celso de Mello foi magistral. É má notícia, claro, ver o processo do mensalão se arrastar, como haverá de acontecer, por mais tempo em alguns casos. A sessão de ontem do STF foi, mesmo assim, uma lição de Direito.
Como sempre, Celso de Mello gastou um termo enorme com preliminares, com rememorações históricas, com sinônimos e mais sinônimos para repisar noções básicas, na linha de dizer, por exemplo, que o respeito, a obediência, a observância, das normas, das leis, dos regulamentos, que fundamentam, embasam, alicerçam, o estado democrático, a república, a ordem jurídica, etc. etc…
Foram significativos, contudo, os argumentos com que defendeu a necessidade de o tribunal examinar os embargos infringentes, na próxima fase do processo.
A ministra Carmen Lúcia, apoiada por outros membros do plenário, considerava incoerente aceitar recursos que já foram abolidos, por lei, em outros tribunais federais. Estaria sendo ferido o princípio da isonomia. Alguém julgado no STJ (Superior Tribunal de Justiça), por exemplo, não teria direitos iguais aos de quem caísse no STF.
Nada disso, assinalou, frisou, sublinhou Celso de Mello. Qualquer pessoa que tenha perdido nesse tribunal sempre pode recorrer, em último caso, ao STF. Sobra sempre essa possibilidade. Só não sobraria para quem caiu direto na corte mais alta do país!
Por isso mesmo, repetia ele sílaba por sílaba, e com muitos errres pelo meio, é necessággrrio que grreste uma porrgta, uma saída, uma al-terrg-na-ti-va grre-cugrr-sal em julgamento feito por instância única de decisão.
Tanto é assim, lembrou Celso de Mello, que TODOS os regimentos internos do Supremo Tribunal, o de 1909, o de 1940, o de 1970, o de 1980, estabeleceram a possibilidade de recurso, quando surgem quatro votos divergentes.
Gilmar Mendes, num momento exaltado na última semana, perguntara qual a razão desses quatro votos. Se é para reexaminar o que já se decidiu, por que não falar em três, dois, um, ou zero voto divergente? Qualquer número justificaria o pedido para a corte pensar melhor no que decidiu.
Não se trata de número cabalístico, disse Celso. Com quatro votos, há mais possibilidade de que o recurso não seja pura protelação, mas possa de fato modificar o conteúdo do que se julgou… Abre-se a possibilidade de uma dúvida razoável quanto ao acerto da decisão.
O ponto mais decisivo da intervenção de Celso de Mello não foi propriamente jurídico, mas factual. Ministros como Joaquim Barbosa e Fux consideravam que a lei 8038, promulgada em 1990, tinha abolido a possibilidade dos embargos. Mesmo sem mencionar o tema, a lei teria tornado obsoleto um artigo do regimento interno do tribunal, que previa isso.
Ora, lembrou Celso de Mello, tanto esse artigo não estava obsoleto que em 1998 o então presidente Fernando Henrique elaborou um projeto de lei, eliminando (agora sim de modo explícito) os embargos infringentes. E esse projeto foi rejeitado pela Câmara, com votos dos principais líderes partidários.
Ou seja, PSDB, PFL (o atual DEM) e outros partidos decidiram que os embargos infringentes deveriam continuar. O Senado foi da mesma opinião. A própria presidência da República se conformou e não insistiu mais no assunto.
Como poderia então o STF achar que o Legislativo aboliu tacitamente, em 1990, um recurso cuja permanência fez questão de manter em 1998? Este, pelo menos, o raciocínio de Celso de Mello.
De resto, se a divisão no plenário é tão grande, sendo a questão decidida apenas por um voto, vale o princípio de que deve prevalecer a tese mais favorável ao condenado…
Celso de Mello foi firme, quase esmagador, na alegria de manter a própria posição e de resguardar sua autonomia de juiz face ao clamor de “maiorias eventuais”. Com a insistência vocal de sempre, colocou os pingos nos is. É de se temer que os “is”, no caso, sejam os da palavra “impunidade”.

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Outro argumento de Celso de Mello

Por Marcelo Coelho
18/09/13 16:08

Não haveria, ademais, ofensa ao princípio da isonomia [como argumentou Carmen Lúcia na sessão anterior] se aceitarmos os embargos infringentes. Pois não há nenhuma instância que se superponha ao STF. Não cabe recurso a outro órgão. Mas nos acórdãos dos tribunais regionais federais cabem recursos para o próprio supremo, sem falar de habeas corpus. O STJ, que não tinha competência para instituir seus embargos infringentes, tem seus julgamentos submetidos ao controle do STF. Mas no STF não há órgão nenhum mais a recorrer. Temos, eu e Marco Aurélio, que não cabe habeas corpus para o STF. Ou seja, não há possibilidade de nenhum recurso. E isso é grave! Por isso mesmo o STF em seus regimentos, de 1980, de 70, de 1940, de 1909, construiu um modelo recursal de modo a haver controle de suas próprias decisões!!

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