Aviso
21/10/14 23:00Este blog deixará de ser atualizado.
A partir desta quarta-feira (22), as colunas serão publicadas no endereço folha.com.br/colunas/marcelocoelho.
Perfil Marcelo Coelho é membro do Conselho Editorial da Folha
Perfil completoEste blog deixará de ser atualizado.
A partir desta quarta-feira (22), as colunas serão publicadas no endereço folha.com.br/colunas/marcelocoelho.
Para quem se irrita com os debates eleitorais, uma grande peça de teatro pode servir de antídoto.
O melhor da coisa, acho, é quando determinado personagem faz um discurso bem longo e elaborado, dando todas as razões que tem para se comportar como se comporta.
Ele explica, demonstra, justifica-se, exalta-se: o espectador está praticamente convencido de tudo, há um silêncio… E então o outro personagem toma a palavra, demolindo com perfeição os motivos do antagonista.
Um belo momento desse gênero ocorre em “Não se Brinca com o Amor”, peça que o poeta Alfred de Musset (1810-1857) escreveu aos 24 anos. O texto até hoje mantém muito de sua aparência primaveril e graciosa. Mas é só aparência; há belezas maiores em jogo. A peça está em cartaz em São Paulo, no teatro da Aliança Francesa, e gira em torno de um casalzinho de 20 anos.
Camille e Perdican são primos, passaram a infância juntos, e se amam. Reencontram-se depois de uma longa separação. Enquanto Camille ficou encerrada num convento, aprendendo religião e boas maneiras, o jovem Perdican foi estudar em Paris. Voltam para o castelo da família. O velho barão quer que os dois se casem; não há como o projeto não dar certo.
Mas Camille está mudada. Desconfia dos homens. Prefere se tornar freira a ter de suportar uma vida conjugal infeliz. Pressiona o primo: seria ele capaz de amá-la para sempre? Não vai arranjar amantes? Aliás, já não terá tido amantes enquanto estudava em Paris?
O jovem Perdican parece esmagado pelas perguntas e cobranças de Camille. Responde que sim, que já teve amantes. Esqueceu-as depois? Sim, o amor não durou. Não teve nenhuma que marcou mais profundamente o seu coração?
Perdican se esquiva. O que quer a prima? Obter uma fala de confessionário? Ele não acredita em Deus, acha que as freiras do convento contaminaram a menina com histórias amargas. O “debate”, se podemos dizer assim, vai se tornando cada vez mais inteligente e insolúvel. Perdican se levanta.
“Adeus, Camille, retorna a teu convento.” É um golpe e tanto, quando sabemos que o rapaz ama a prima perdidamente. Mas Perdican continua. “Quando as freiras vierem repetir suas histórias de maridos infiéis, de amores desfeitos, de traições e promessas falsas, responde-lhes o seguinte…”
Vem um desses grandes discursos que são a glória do teatro clássico. “Todos os homens são mentirosos, inconstantes, falsos, falastrões, hipócritas, orgulhosos ou covardes, desprezíveis e sensuais; todas as mulheres são pérfidas, cheias de artimanhas, vaidosas, bisbilhoteiras e depravadas; o mundo é um esgoto sem fundo…”
Ele toma fôlego. É verdade que, com frequência, as pessoas erram quando amam, saem feridas e infelizes de cada paixão. “Mas amaram.” Quando se voltarem para olhar o passado, poderão dizer para si mesmas: “Sofri muito, errei algumas vezes; ainda assim, amei. Fui eu que tive essa vida, e não uma pessoa inventada, criada por meu próprio orgulho e por meu próprio tédio”.
Fim do segundo ato.
Não vou contar o resto. Há mais do que um emocionante (e um pouco retórico) embate de vistas sobre as desventuras do coração. Esse momento de grande ênfase contrasta, na peça, com um entrecho bastante leve, do qual participam dois abades trapalhões, prontos à bebedeira e à inconfidência.
Em tese, o espectador não espera mais nada além de uma historiazinha no estilo do século 18, em que depois de algumas intrigas, cartinhas e mal-entendidos tudo termina dando certo.
Acontece que Musset escrevia mais de um século depois de Molière, e mesmo um inocente casal de apaixonados já tinha, em pleno período romântico, outras sombras e complexidades. O jovem que finge indiferença, ou que finge estar apaixonado por outra moça, já não sabe mais até que ponto, dentro de si mesmo, seu comportamento é puro jogo ou sentimento verdadeiro.
Como dizia o herói de “Lorenzaccio”, outro drama de Musset, a máscara já não se desgruda mais da face. Dentro da própria história, os personagens fazem teatro o tempo todo.
A ambiguidade entre amor real e amor fingido é traduzida admiravelmente na montagem de Anne Kessler, da Comédie Française, que ironiza as convenções do teatro, acentua a ligeireza quando o assunto é sério, e dá ritmo de comédia aos movimentos, muito sofridos, do amor com que se brinca.
Ou não? Vale a pena acompanhar esse debate.
Se você reclama de seu filho passar horas e horas com joguinhos no computador, talvez seja melhor relaxar. Pode ser que ele não esteja apenas esmagando marshmallows falantes ou quebrando os ossos de algum malfeitor.
Pela minha experiência com filhos pré-adolescentes, existe também outra possibilidade. Com frequência, é menos de diversão que se trata, e sim de trabalho.
Tudo começou com um game chamado “Minecraft”. Apesar de ter inúmeras variantes (algumas das quais exigem armas mortíferas e ânimo implacável), a ideia toda do entretenimento é construtiva.
Não há correrias acrobáticas nem efeitos visuais de impacto. O que aparece na tela é bastante básico: cubos relativamente grandes, de cor escura, e ferramentas de trabalho, como pás e picaretas, de escasso realismo.
Apela-se menos para o espírito de aventura e destruição do que para os prazeres paleotécnicos da carpintaria, do tijolo, da viga e da argamassa. Brinca-se de trabalhar, sem dúvida, e de enriquecer também.
O passo seguinte é mais decisivo. Com programas adequados, é possível produzir vídeos nos quais você conta que procedimentos adotou para a construção de seu palácio. Alguns desses “gamers” pontilham suas demonstrações técnicas de comentários humorísticos e obscenos, tornando-se pequenas celebridades no Youtube.
Mais tarde, o computador oferece a qualquer menino ou menina condições de fabricar seus próprios desenhos animados. Pode produzir música de fundo para o filminho, ou apresentar os créditos de autoria por meio de introduções estroboscópicas e tridimensionais.
Daí para se envolver em alguma atividade lucrativa o passo é mínimo. O garoto que se envolve nisso não está perdendo tempo: com 12 anos ou menos, é quase um pré-profissional.
Mais impressionante é o caso dos pequenos cozinheiros. Uma série exibida na Discovery Home and Health põe à prova o talento culinário de meninos e meninas, com menos de 12 anos.
Apresentados a ingredientes como lagostas, ouriços ou costelas, aquelas crianças produzem pratos feéricos.
Turbantes de molusco em coulis de pêssego silvestre ou coulibiacs de polvo em massa crocante de macadâmia antecedem charlotes desconstruídas de tangerina com calda de jasmim. A vencedora foi uma loirinha banguela, sem idade sequer para começar a usar aparelho ortodôntico.
Com algumas doses de mel e lágrimas, próprias à Sessão da Tarde, o filme “Chef”, dirigido e estrelado por Jon Favreau, também mostra a ansiedade de um garotinho em se integrar ao mundo do trabalho adulto.
É uma produção bem simpática, aliando com delicadeza ingredientes caros ao cinema americano: a reconstituição de uma vida familiar minada pelo egoísmo produtivista, o reencontro entre pai e filho, a viagem de carro pelo interior dos Estados Unidos, a mensagem de que o trabalho duro é importante, mas nada se consegue sem a amizade.
“Last but not least”, demonstra-se o triunfo da livre iniciativa individual sobre os interesses predatórios do empresariado constituído (com o paradoxo de que esse triunfo se traduz em lucro e sucesso empresarial também).
Tudo isso, e mais uma visão positiva dos valores latinos, faz de “Chef” um bom programa para crianças de 10 ou 12 anos. O que há de mais sedutor, entretanto, é o fato de que o filho do protagonista (ótimo desempenho de Emjay Anthony) passa as férias ajudando o pai, ex-chefe de cozinha num restaurante metido, a vender sanduíches numa van.
Dito isto, retomo o tema de Hélio Schwartsman, em sua coluna de domingo passado. Ele se refere a uma verdadeira “histeria da pedofilia” na sociedade contemporânea.
Naturalmente, qualquer pessoa fica chocada com cenas de sexo envolvendo crianças de quatro ou cinco anos; coisas assim são hediondas.
O problema é que os ideais adultos de beleza (que se aproximam da androginia e da esqualidez) são tudo, menos adultos: no mundo contemporâneo, a luta contra o tempo se intensifica. Ninguém quer parecer três anos mais jovem: quer ter 15, 20 anos a menos.
A luta contra o tempo também se dá no sentido inverso. Aos 12 anos, ninguém mais quer ser criança; a escola é perda de tempo; no computador, ou na cozinha, ou na vida de modelo, qualquer um se sente mais útil. E, como qualquer adulto bem sabe, mercado de trabalho e competição sexual nem sempre são fáceis de separar.
Depois de vários colapsos, estou esperando que instalem a fibra óptica da internet aqui em casa. Mas reclamar desse tipo de coisa é cansativo. Não vale usar o espaço do jornal para advogar em causa própria.
Faço, primeiro, alguns elogios.
Como todo mundo, fico nervoso com o “call center”, e me confundo teclando opções e mais opções a respeito do serviço “que eu quero solicitar”. Mas uma coisa me desarma e tranquiliza.
As atendentes, pelo menos numa empresa, têm o mais maravilhoso sotaque mineiro. Tudo se torna calmo e racional com essa pronúncia. Não há pressa, claro. Nada se processa com a velocidade de que gostaríamos. Mas não há moleza tampouco.
Na escuridão da linha telefônica, imagino a paisagem recolhida e pausada dos cerros verdes, cobertos de neblina e musgo. No ar, cheirando a fogão de lenha e ainda fresco da manhã, suspende-se a esperança (“um momento, por favor”), como os doces balões de junho parados numa tela de Guignard.
Serão todas mineiras as moças da TIM? No próprio nome da companhia, há algo de tímido e diminuto, que evoca as terminações típicas do sotaque regional. Em vez de “Joãozinho”, é “Joãozim” que se fala.
Podem também ser mineiras as atendentes da Claro. Penso em quartzos, turmalinas, caxambus. É a limpidez de águas serenas que se cristaliza em fibra óptica.
Não entendo de eletrônica, mas quero acreditar que, em vez de impulsos elétricos, o novo cabeamento virá em forma de luz. Vale esperar, portanto –ao menos pela poesia da coisa.
E se for a Vivo? Também aqui a mineirice do nome diminui a minha belicosidade de paulista. O mineiro é matinal e desperto; se são esquivos os seus modos, isso não é dubiedade, mas cortesia. “Mais um momentim, p’favôh.” Há vivacidade, com efeito, mas não açodamento, nesse jeito de omitir as vogais.
Tudo vai dar certo, tenho certeza, ainda que o homem da instalação não chegue. Essas empresas sabem das coisas. Devem ter escolhido Minas de propósito para ser a sede do atendimento geral.
Um segundo elogio. Antigamente, era inútil: o dia e a hora marcada não tinham como ser levados a sério. Muitas vezes fiquei de plantão, sentinela de fuzil em punho, sem sinal do inimigo, muito menos sinal no cabo da TV.
Na verdadeira febre de modificações que acomete a minha vida digital, verifiquei um ganho de pontualidade nesses prestadores de serviço. Há os que, por determinação da empresa, chegam com protetores de pano nos sapatos, como se estivessem entrando numa UTI.
Certo, pois em quase todo apartamento há veias entupidas, estreitamentos coronários, escleroses capazes de inviabilizar o mais moderno wireless. A eletrônica, como a medicina, é ainda uma mecânica.
Luto pela minha sobrevivência digital, enquanto as empresas lutam pela sua. O modelo estatal das telecomunicações não tinha como prosseguir, sem dúvida. O governo perdeu, ao longo de décadas, sua capacidade de investimento.
Mas quando me ligam todo dia propondo novos combos e descontos, confesso que a livre concorrência também é capaz de incomodar um bocado. Acabo me acostumando; antes dizia que nada me interessava, hoje escuto e vou aderindo a todos os planos possíveis. Sou cliente simultâneo de várias marcas; quando uma pifar, tenho outra. Estatizei o meu consumo.
De qualquer modo, o modelo da livre concorrência continua guardando semelhanças com o sistema estatal. Um exemplo. O homem da fibra óptica trabalha para uma empresa terceirizada. Não consigo, entretanto, contratar eu mesmo o homem da fibra óptica.
Tenho de ligar para a TIM, a Vivo ou o que seja, passar por toda a burocracia das teclas, das confirmações, das esperas e dos CPFs, para que de lá, das profundezas de Minas, determinem ao homem terceirizado da fibra óptica que passe no meu endereço. Ele não chega; sua Kombi parou entre o Tucuruvi e a Anhaia Melo.
A quem reclamo? À central de tudo, que me conduzirá aos corredores e subdivisões dos que querem novos serviços ou interromper os que já tinham; dos que querem falar sobre a TV, ou o celular, ou o fixo, ou sobre o homem da fibra óptica. Não há um centralismo estatal em tudo isso? Estou na fila de uma espécie de cartório telefônico, vivendo a ilusão da modernidade.
Paro por aqui. Tocaram o interfone, que ainda funciona. Deve ser o homem da fibra óptica; ele está chegando.
Como não podia deixar de ser, está aberta a temporada de críticas a Marina Silva. É saudável. Todo candidato com chances de ganhar a eleição deve passar por esse tipo de obstáculos.
Azar, na verdade, do comentarista que se aventura no debate. Algum tempo atrás, se falava mal do PT, via-se incluído imediatamente na lista do “PIG” (Partido da Imprensa Golpista). No caso de criticar Aécio, seria estigmatizado como “petralha”.
A ascensão da “terceira via” complica o jogo. O crítico que tentava escapar da dicotomia PT-PSDB precisa agora se afastar de Marina também.
Falar mal dos três ao mesmo tempo! Mas que jornalistas incontentáveis! Será que apoiam Levy Fidelix? Seja como for, o momento é de arregaçar as mangas contra Marina. A tentativa acaba produzindo críticas que me parecem forçadas.
Faço muitas ressalvas à candidatura do PSB, mas prefiro deixar isso para mais tarde. Começo com uma injustiça.
O físico Rogério Cezar de Cerqueira Leite, meu colega de Conselho Editorial, escreveu domingo passado que não se sentia confortável em ter como presidente da República “alguém que acredita concretamente que o universo foi criado em sete dias”.
O criacionismo de Marina Silva, diz Cerqueira Leite, “não decorre da ignorância, mas de um defeito de percepção”. “Os especialistas”, prossegue o cientista, “chamam essa condição de desordem do desenvolvimento neural”.
Fico assustado com um diagnóstico tão irrecorrível. Cerqueira Leite fala dos chamados “idiots-savants”. Pelo que sei, são aquelas pessoas com grande deficiência mental mas que, ao mesmo tempo, conseguem por exemplo decorar listas de nomes intermináveis, ou fazer contas dificílimas de cabeça.
Será que a capacidade política e verbal de Marina entraria nesse mesmo tipo de habilidades? E o que seria um “defeito de percepção”?
Se a candidata insistisse em dizer que, na mesa à sua frente, está sentado um tamanduá, quando todos podem ver que só existe um copo de água, eu chamaria isso de desordem neurológica.
Acreditar no relato bíblico do Gênese não me parece um fenômeno equivalente. Não tem nada a ver com uma percepção errada da realidade. Tem a ver com fé religiosa.
Sou o primeiro a considerar essa fé totalmente irracional. Não chego a ser cético, amistoso ou tolerante quanto a isso. Passo a eternidade no inferno, mas continuarei dizendo que a Bíblia está errada, que a ciência terá sempre a última palavra, e que acreditar em Adão, Eva, arca de Noé e tudo o mais não passa de total bobagem.
A questão é outra. O que significa “acreditar”? Milhões de pessoas acreditam em bobagens tremendas, mas levam sua vida de modo tão razoável e sensato quanto o mais austero cientista.
Acreditar, para essas pessoas, é quase uma reverência pessoal à tradição. Exceto em casos de fanatismo delirante, o religioso está pronto a aceitar que dois mais dois são quatro, e que se uma porta está aberta, não está fechada. Só não leva esses princípios ao reino misterioso da religião, onde Deus pode ser uno e trino, ou pode ter corpo de homem e cabeça de elefante ao mesmo tempo.
Aliás, o especialista em física quântica também aceita a realidade da porta e da parede à sua frente, ainda que no mundo subatômico as evidências pareçam contrariar o mais sólido senso comum.
O religioso, se não for maluco, sabe fazer a separação entre o mundo real e o plano de sua fé. Pode haver duplicidade mental nisso, mas não se trata de uma percepção deformada da realidade.
O problema não é cognitivo, mas prático. O religioso se complica quando age mais em função da fé do que do bom senso. Segue, por exemplo, a teoria da indissolubilidade do casamento, mesmo que isso seja fonte de infelicidade para toda a família. Sofrerá culpas inúteis porque sua religião não aceita a homossexualidade.
É esse plano prático, e não o funcionamento cerebral de Marina Silva, que cumpre avaliar. Do ponto de vista subjetivo, ela pode acreditar nas maiores tolices. Mas não é tola como candidata.
Aliás, é uma candidata nada inovadora nesse aspecto. Segue, em suas declarações, o que lhe der mais votos, e especialmente aquilo que não lhe tirar os votos que já tem.
Oscila e enrola tanto quanto os outros; um pouco mais, talvez. Incomoda-me, na verdade, mais sua esperteza do que sua tolice. Mas vejo que, para falar disso, preciso do espaço de outro artigo.
Comecei a reparar no fenômeno durante a Copa do Mundo. Não era apenas o italiano Pirlo (esse usava uma barba aparada, de arquiteto, de economista ou apresentador de TV). Alguns jogadores gregos —ou croatas, não sei bem— mais pareciam seguidores de Bin Laden, tal o comprimento de suas barbas.
Primeiro, tivemos a moda das cabeças raspadas. Seguiu-se, e agora diminui, o capricho de apresentar um penteado diferente a cada jogo —do moicano ao garnizé.
A moda vai deixar saudades, porque ao menos permitia variações divertidas. Não será apenas por motivos religiosos que imensas barbas pretas entram em campo, quase todas iguais.
Não se limita, é claro, aos jogadores de futebol. Talvez signifique a rejeição definitiva da metrossexualidade, já um pouco “out” desde a aposentadoria de Beckham, e mais ainda depois do fracasso de Cristiano Ronaldo.
Um aspecto mais bárbaro, e por enquanto bastante avesso à estética publicitária, ganha força no jovem público masculino.
Razões políticas podem estar presentes. Depois de tanto tempo cultuada, a imagem de Che Guevara sai das paredes.
Passemos, terá dito alguém, da teoria à prática! Dos contestadores com rosto de anjo, dos atletas de brinco e dos skatistas críticos do sistema, transita-se para uma versão mais enfezada e radical.
A volta da barba grande coincide, não sei se por acaso, com o retorno a táticas mais violentas de protesto. Assim como as balaclavas, a barba corresponde ao desejo de dificultar a identificação policial.
Claro que a explicação não se resume a isso. Nos anos 1970, a barba era ao mesmo tempo uma defesa do “mundo natural” —onde não vigorasse a obediência às convenções repressivas da gilete e do sabonete— e uma homenagem aos mestres pensadores do passado: Marx, Darwin, Freud.
Não deixa de ser estranho, aliás, que uma das épocas mais repressivas em termos de sexualidade, como a vitoriana, tenha conhecido tamanha exacerbação da pelagem masculina.
A respeitabilidade do adulto se impunha, talvez, pelo ato de marcar sua completa diferença com relação à criança e ao adolescente. A partir dos 25 ou 30 anos, o homem aparecia com uma barba capaz de fazê-lo parecer um sábio de 60.
Raspar o próprio rosto terá surgido, aí por 1920, como um ato liberador. Barbas cerradas tinham os combatentes nas trincheiras da Grande Guerra —os chamados “poilus”, “peludos”. O rosto glabro talvez correspondesse a uma nova vida, ou à tentativa de recuperar a própria mocidade, violentada no “front”.
Seria, ademais, uma rejeição a tudo o que houvesse de brutal e autoritário naqueles governantes de antigamente: o rei da Inglaterra, o czar da Rússia, o imperador austríaco com suas imensas suíças brancas submergiam no passado, depois que o quase adolescente Gavrilo Princip —um mal esboçado buço no rosto— desferira seus tiros em Sarajevo.
A surpresa, neste centenário da Primeira Guerra, foi ver em alguns lugares a volta de barbas barrocas, enceradas e ostensivas. Recentemente, no aeroporto, vi um rapaz de ares europeus levando avante seu bigode de pontas para cima, no estilo do kaiser Guilherme 2º.
Aqui, nada de contestação de esquerda parece estar em jogo. O estilo é imperial, retrógrado, prussiano.
Alguma saudade do século 19 já se manifesta há tempos. A onda do “steampunk”, por exemplo, associa cartolas, locomotivas a vapor, parafernálias de Júlio Verne a uma música de rock sutilmente cômica.
O Sherlock Holmes de Robert Downey Jr. e “A Invenção de Hugo Cabret” elaboram esse gosto pela tecnologia antiga. É a velha Europa que, mais uma vez, estrebucha, cem anos depois da Primeira Guerra.
Mas é também o Velho Testamento que renasce. Com barba bíblica e manto de rabino, Edir Macedo inaugura seu Templo de Salomão num estilo que não é mais o de quem deseja identificar-se com o empresariado moderno.
Não se trata propriamente de um figurino reacionário. É o fundamentalismo, em inúmeras versões, o que vai sendo apropriado pela moda destes dias. Guevara, Moisés, Darwin, Guilherme 2º renascem na exaustão da modernidade “clean”.
Na culinária, depois de longa ausência, molhos espessos substituem a limpeza minimalista da “nouvelle cuisine”. Com os molhos, vêm as barbas. Não é a combinação mais inteligente, em termos de modos e de higiene à mesa —mas eis um sinal, sem dúvida, de que a racionalidade está mesmo saindo de moda.
Recebo de Jorge Furtado, diretor de “O Mercado de Notícias”, um email discutindo o que escrevi no post anterior. Transcrevo-o.
Agradeço as boas referências ao “Mercado de Notícias”, que segue em cartaz em São Paulo. Ao contrário do que você afirma, considero você inteiramente insuspeito para falar do filme. Há, de fato, muitos outros deslizes jornalísticos e talvez fosse mesmo divertido um filme só sobre eles, mas o meu objetivo era também despertar algumas dúvidas, propor um debate sobre um assunto que me parece importante e é quase interditado na mídia. (A coluna do Ombudsman da Folha e o site/programa Observatório da Imprensa são louváveis exceções) .
O tema é vasto e o tempo do filme (84 minutos) é curto. Por isso o projeto inclui, desde sempre, um site, com a peça e as entrevistas na íntegra e muitos outros assuntos, até do mensalão se fala. Toda a pesquisa e fontes estão lá:
No filme, evitei intencionalmente o assunto mensalão, apenas sobre ele se faria uma série, ou vários longas. (Na verdade, se farão, sei de pelo menos dois filmes sobre o mensalão a caminho). O mensalão, acho que ninguém ignora, inclui vários crimes (o de caixa dois foi, inclusive, confessado) mas é, antes de tudo, uma palavra. A palavra “mensalão”, criação de Roberto Jeferson tornada pública na Folha em reportagem de uma das minhas entrevistadas, Renata Lo Prete, é um poderoso hashtag, um buraco negro que suga o debate. Minha pauta, que pretendia ser uma conversa sobre os rumos do jornalismo, teria que ser inteiramente outra.
Por exemplo:
Alguém razoavelmente bem informado ainda acredita que os milhões da Visanet, pilar que sustenta a condenação dos réus do mensalão petista, eram dinheiro público?
Que estes milhões foram desviados de sua função e não gastos em publicidade, como atestam as notas fiscais de grandes empresas de comunicação e os eventos publicitários realmente realizados?
Que o único responsável pela liberação do dinheiro foi mesmo o diretor petista do banco e não os outros quatro diretores tucanos que assinaram as liberações mas não foram indiciados?
Que a teoria do domínio do fato faz sentido? E, se faz, explica por que Lula não foi indiciado?
Que pedir aos réus que provem sua inocência – e não ao tribunal que prove sua culpa – faz sentido?
Que um único julgamento, do qual os réus (comuns) não possam recorrer do resultado, faz sentido?
Que um julgamento criminal transmitido ao vivo pela televisão pode ser justo?
Que é moral e juridicamente defensável a posição do ex-ministro Joaquim Barbosa que confessou, no plenário do STF (está gravado) ter manipulado a dosimetria das penas com o objetivo de evitar a prescrição dos crimes?
Que é moral e juridicamente defensável a posição do ex-ministro Joaquim Barbosa que manteve “escondido”, longe do olhar de seus colegas da corte, o inquérito 2474, sob sua guarda, alegando que ele não tinha importância no julgamento do mensalão, apesar de conter, como se soube mais tarde, provas fundamentais para o julgamento de um processo criminal em curso?
Alguém desconhece o feito midiático (e cruel) que incluiu o ministro Luiz Gushiken entre os indiciados apenas para fechar a conta de 40 acusados, facilitando manchetes engraçadinhas? (Gushiken teve que enfrentar, nos últimos anos de sua vida, além do câncer, toneladas de calúnias só para esperar que o relator, ao apresentar a denúncia, reconhecesse que não havia nada contra ele, coisa que poderia ter feito dois anos antes.)
Alguém desconhece o caráter midiático de uma prisão arbitrária feita às pressas no dia 15 de novembro?
Alguém desconhece a arbitrariedade de conceder um habeas corpus ao perigoso psicopata Roger Abdelmassih, como fez o ministro Gilmar Mendes, e negá-lo ao pacífico cardiopata José Genoíno?
Alguém desconhece o desequilíbrio da mídia no tratamento aos mensalões petista e tucano, em Minas, anterior e com os mesmos “operadores”, onde não há dúvida alguma do uso de dinheiro público na tentativa de reeleger o então presidente do PSDB, Eduardo Azeredo?
Alguém ignora os descalabros e incoerências pronunciados por vários ministros da corte, em frente às câmeras, e depois suprimidos, a pedido dos próprios, dos autos do processo?
Alguém ainda defende, seriamente, o comportamento do ministro relator Joaquim Barbosa na condução do processo?
Perceba que, fosse falar do mensalão neste filme, sem tratar do assunto apenas como um mantra anti-petista repetido acriticamente por quem quer agradar seus fãs e patrões ou apenas fazer picuinha, o tema tomaria conta do filme. Falar seriamente sobre o mensalão, este evento político-jurídico-midiático que emburrece o debate no país desde 2005, requer um tempo que o filme não tinha. Espero que os filmes que se farão sobre o tema tratem de aprofundá-lo.
Procuro filmes brasileiros, de qualquer época, sobre este assunto, o jornalismo, e não encontro. (Há muitos bons filmes americanos sobre o tema, só o Billy Wilder fez dois.) O filme que você imagina sobre “os problemas da imprensa” nos tempos de Fernando Henrique realmente não foi feito. Os exemplos que uso no filme são de barrigas (erros), não reportagens críticas que se mostraram verdadeiras. Na entrevista do Fernando Rodrigues (na íntegra no site) ele conta em detalhes a grande matéria da Folha que revelou a compra de votos para a reeleição de FHC, por exemplo. E o Jânio conta o caso da denúncia de maracutaia na licitação da ferrovia Norte-Sul, outro grande feito da Folha. Mas não foram barrigas, os casos se comprovaram plenamente, nunca foram desmentidos. Ao contrários das incontáveis barrigas contra Lula e Dilma, há algumas no filme, outras tantas no site (e muitas outras, semanalmente).
Nos debates que tenho participado sobre o filme peço a quem souber – e reforço o pedido a você – de alguma barriga séria da imprensa contra FHC e seu governo que me avise, gostaria muito de publicar no site do filme. Ou, quem sabe, fazer um curta.
A vontade implícita do filme eu não sei (o filme é de quem vê). Minha vontade implícita e explícita era, e é, a defesa do bom jornalismo. Bom jornalismo na minha opinião, é claro.
Não sou nem me pretendo apartidário (embora nunca tenha sido filiado a qualquer partido) nem independente (dependo do meu trabalho, desde sempre.)
Sou naturalmente suspeito para comentar “O Mercado de Notícias”, documentário de Jorge Furtado sobre os problemas da imprensa brasileira.
Fiquei bastante embaraçado com uma das principais “descobertas” do filme: uma matéria escandalosamente errada que saiu na “Folha” há anos, apontando a existência de um quadro de Picasso na parede de um corredor burocrático do INSS.
Não era um Picasso autêntico, evidentemente, e a ideia da notícia –mostrar o descaso do poder público com o próprio patrimônio—caía por terra.
Não me lembro de ter visto a reportagem, que saiu com foto e tudo. O suposto quadro de Picasso era a reprodução de uma obra razoavelmente famosa, de um museu em Nova York, e quero imaginar que eu teria reconhecido o engano. Só agora, passados anos da notícia, saiu na “Folha” um “erramos” sobre o caso.
É um dos momentos mais interessantes do filme, ainda que incômodos para quem é da Folha.
Mas “O Mercado de Notícias” (veja horários no Guia da Folha) não se dedica muito ao divertido recenseamento dos deslizes jornalísticos. O principal do filme –e aqui surge um segundo motivo para minha suspeição ao comentá-lo—está numa série de entrevistas com jornalistas, seja os da grande imprensa (Fernando Rodrigues, Renata Lo Prete, Cristiana Lôbo), seja os que a criticam (Mino Carta, Luis Nassif, Raimundo Pereira).
Para quem é jornalista, muitos dos temas abordados nessas entrevistas trazem pouca novidade. “Existe imparcialidade?” “Existe liberdade de expressão nos grandes jornais?” “Os interesses econômicos prevalecem sobre a verdade?” “O que é verdade?”
Há opiniões radicais, e outras menos, sobre isso. Talvez para o público mais amplo seja interessante ouvir tantos jornalistas expondo seus pontos de vista. De minha parte, acho que tudo termina abstrato demais, com frases que tendem à exposição de princípios ou de julgamentos já consolidados.
Talvez sabendo desse risco, Jorge Furtado entremeia os depoimentos com cenas da montagem de uma peça, intitulada justamente “O Mercado de Notícias”, escrita por Ben Jonson (1572-1637). É outra descoberta muito boa do diretor –além do caso Picasso. A comédia mostra um jovem perdulário que se envolve na empreitada de comprar e vender “notícias”, (“novidades”?) numa época anterior à da consolidação dos jornais tais como os entendemos hoje.
Vendo a peça e pensando nos jornais de hoje, pode-se sempre traçar aquele gênero de paralelos que leva uma pessoa a dizer: “puxa, já naquela época, hein!” Mas a aproximação não é das mais esclarecedoras, e novamente escapamos do concreto, do real, para um plano de julgamentos mais ou menos fáceis.
Como a perspectiva adotada é sempre a da generalidade, é um alívio quando se vê Luis Nassif, por exemplo, apontar um caso específico de miopia jornalística. Ele se refere à excessiva atenção dos jornais com respeito às oscilações do mercado financeiro, e de que modo se deu pouca importância a uma queda violentíssima na venda de máquinas agrícolas, em 2008 se não me engano.
Mais exemplos como esse enriqueceriam o filme de Furtado.
Sem dúvida, o grande exemplo, que “O Mercado de Notícias” recalcou, não é o das máquinas agrícolas. Metade dos entrevistados, mais ou menos, considera que os jornais perseguem o governo do PT, e teria longas considerações a fazer sobre o caso do mensalão.
Imagino que um filme sobre “os problemas da imprensa” sequer teria sido feito nos tempos de Fernando Henrique, quando choviam denúncias contra os tucanos.
A vontade implícita deste documentário é colocar em questão uma imprensa que foi duríssima contra Lula. Por que não falar disso de uma vez? Curiosamente, o tema do mensalão foi recalcado, abafado, suprimido (auto-censurado?) em “O Mercado de Notícias”. Por esse cuidado do diretor, que talvez tenha querido parecer “apartidário e independente”, o filme me pareceu ficar girando na periferia de seu assunto real.
A viúva de Eduardo Campos, Renata, recebeu condolências do senador petista Lindbergh Farias, candidato ao governo do Rio de Janeiro. Diz a Folha que ela vestia uma blusa com estampa floral —e que respondeu a Lindbergh sem chorar.
“Esse negócio de tristeza, aqui, não combina”, afirmou. “Aqui é força, alegria e coragem.” Tem sido esta, segundo se informa, a atitude de Renata Campos ao longo destes dias.
Na Flip deste ano, assisti a uma mesa sobre os 50 anos do golpe militar, da qual participava Marcelo Rubens Paiva. Ele começou lendo um artigo de Antônio Callado sobre sua mãe, Eunice.
O autor de “Quarup” lembrava ter encontrado Eunice em Búzios, nadando de biquíni, bronzeada e magra. O marido dela, Rubens Paiva, estava preso. O ano era 1971.
Eunice estava animada, depois de ter passado ela própria um tempo na prisão. Recebera informações de que Rubens Paiva estava bem e seria libertado nos dias seguintes. Não era verdade. Àquela altura, seu marido já estava morto, não tendo resistido às sessões de tortura no DOI-Codi.
Marcelo Rubens Paiva leu o artigo de Callado com muita dificuldade, parando para chorar; solidária, a plateia o aplaudia longamente. Ele pediu desculpas, mencionando o fato de estar agora com um filho de poucos meses —o que mudava a sua perspectiva diante da tragédia.
Pediu desculpas, também, porque sua mãe fizera recomendações enfáticas a toda a família. Ela e os filhos nunca seriam fotografados com lágrimas nos olhos.
Sorrir sempre e demonstrar força pessoal seriam a melhor resposta, dizia Eunice, aos assassinos de Rubens Paiva. “Nossa família não será fraca, e não será vencida.”
Marcelo deu um sorriso de autoironia, como a dizer “e olhem para mim agora, chorando…”, mas continuou sua participação no debate, com a notável informalidade que o caracteriza.
Não apenas Rubens Paiva estava longe de ser um “comunista”, como a direita gostava e ainda gosta de dizer, mas sua mãe não passava de uma “dondoca”. Jogava vôlei na praia com a Marieta Severo, conta o filho. Depois do assassinato, Eunice pôs-se a pedir informações, a procurar o corpo do marido. Envolveu-se com a causa indígena e, naturalmente, com a luta pela redemocratização.
Marcelo tirou desse relato a conclusão surpreendente. “Não foi meu pai quem lutou contra a ditadura”, disse ele.
Pelo menos a seus próprios olhos, os de um menino que estava com onze anos na época do desaparecimento do pai, quem lutara de fato tinha sido a sua mãe.
O que impressiona, no caso de Eunice ou de Renata, viúva de Eduardo Campos, é essa disposição para falar de alegria —ou, ao menos, para não chorar.
Talvez se tenha tornado mais comum entre as mulheres uma atitude que, em tempos antigos, correspondia apenas a outro sexo.
Refiro-me à ideia de “homem não chora”. Ao contrário, hoje cai bem certa sentimentalidade no sexo masculino. Cai melhor ainda, entretanto, a capacidade de uma mulher para o enfrentamento e a resistência.
O clichê da “viúva inconsolável” vai sendo esquecido. Que o diga, aliás, a própria Marina Silva. Tomou para si o legado e as lutas de Chico Mendes, líder ambientalista assassinado em 1988; agora, sem ser exatamente uma “viúva” política de Eduardo Campos, vem a substituí-lo com a própria força renovada pelo imprevisto histórico.
Cabe falar ainda de outra mulher, a própria Dilma Rousseff. Goste-se ou não de seu governo e de sua pessoa, uma circunstância merece ser colocada, no meu modo de ver, acima de qualquer outra.
Refiro-me ao fato, que por diversos motivos não se explora nem se menciona suficientemente no confronto político, de ela ter sido torturada durante o regime militar. Sempre penso que, se isso tivesse acontecido comigo, eu seria incapaz de superar a experiência.
Eis que vemos Dilma priorizar, contudo, sua estratégia política, e os projetos de seu partido, sem tomar em termos pessoais o entusiasmo com que muitos de seus aliados (especialmente o ministro Edison Lobão) defenderam o que havia de pior na ditadura.
Força pessoal das mulheres, sem dúvida; força da política, também. Não conhecemos melhor forma de superar uma perda do que pensar no futuro, tentando submetê-lo ao nosso poder. Candidatos, por definição, dedicam-se a coisas desse tipo.
(artigo publicado na “Folha” de hoje)
Lembrar de carreiras políticas atingidas pela morte repentina, como a de Eduardo Campos, é tarefa relativamente fácil: logo vêm à mente os exemplos de Tancredo Neves e Getúlio Vargas –para não falar dos acidentes com Juscelino Kubitschek e Castello Branco e dos casos médicos de Carlos Lacerda, Jango ou Costa e Silva.
Sim. Mas com todo o respeito que se possa ter pela figura de Eduardo Campos, a comparação parece muito exagerada. O candidato do PSB não era o favorito nas pesquisas, e sua representatividade política, pelo menos em São Paulo, ainda era coisa a ser construída.
A possibilidade de que Campos viesse a empolgar a classe média e os empresários paulistas se baseava no fato de que, pela primeira vez, a oposição tucana tinha um candidato nascido “fora do ninho”.
Esgotados os cartuchos de Serra, de Alckmin e de Fernando Henrique, o mineiro Aécio Neves deixou o eleitorado antipetista de São Paulo órfão de um candidato “natural”.
Por isso, Eduardo Campos apostava (ou “era apostado”) numa proximidade com o poder econômico paulista que poucos políticos fora do Sudeste puderam alcançar. Havia muito a ser trabalhado, contudo, para que esse projeto se consolidasse até outubro.
O maior assemelhado de Campos, dessa ótica, não seria nenhuma dessas grandes lideranças desaparecidas tragicamente, mas outro ex-governador nordestino de olhos azuis: o tucano cearense Tasso Jereissati. Que se contenta, atualmente, em ser candidato a senador por seu Estado, numa coligação monstro que tem Eunício de Oliveira (PMDB) disputando o governo.
As comparações iniciais com Tancredo e Getúlio, motivadas sem dúvida pela emoção do choque e pela simpatia que Campos despertava, vão assim se atenuando. Os casos que surgiram imediatamente à memória se revelam menos pertinentes. Para dimensionar o caso de Eduardo Campos, temos de buscar nos arquivos –o que não deixa de ser triste— tragédias políticas um bocado obscuras.
Foi lembrado, assim, o acidente de helicóptero com Clériston Andrade, candidato ao governo da Bahia em 1982, ou o desastre aéreo que matou Salgado Filho, postulante gaúcho nas eleições estaduais de 1950.
Mas aí já estamos escavando muito fundo nas camadas arqueológicas da história regional.
Podemos ir mais longe, contudo. E aí as coisas ficam especialmente cruéis para todos os envolvidos na comparação.
É estranho que um nome de outro político muito promissor, que também morreu de repente, não seja lembrado de imediato quando se analisa o destino de Eduardo Campos. Estou pensando em Luiz Eduardo Magalhães, do DEM, vitimado por um enfarte aos 43 anos.
Não era candidato à presidência da República –aspirava ainda ao governo baiano. Mas tinha sido presidente da Câmara dos Deputados e surgia como um nome mágico, capaz de garantir uma alternância entre PSDB e DEM no Palácio do Planalto. Quando morreu, em 1998, muitos comentários aludiam a seu papel insubstituível como articulador no governo Fernando Henrique.
Tornou-se, como Salgado Filho em Porto Alegre, nome de um aeroporto (que Deus nos livre desse destino)—e de um município na Bahia.
Indo mais para o passado, o PTB de João Goulart depositava muitas esperanças no nome de um jovem político fluminense, Roberto Silveira. Dizia-se que era um grande talento. Morreu num acidente de helicóptero em 1961, deixando seu legado político a familiares de expressão local.
Outro acidente de helicóptero matou Ulysses Guimarães e Severo Gomes em 1992. Ambos já tinham cumprido missões históricas na redemocratização do país.
Não foram lembrados agora –e nem nome de município, pelo que eu sei, terminaram virando. A política, por mais cruel que seja dizer isso agora, é sobretudo a arte da sobrevivência.